Linha SNS24
11 fevereiro 2024 às 12h23
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Utentes referenciados sem resposta nalguns centros de saúde e até em hospitais

A falta de médicos gerou constrangimentos nas urgências hospitalares e os apelos aos utentes para ligarem primeiro para a Linha SNS24 vieram de todos os lados. Os utentes passaram a fazê-lo, mas queixam-se que, depois, não têm resposta. A Linha bate recordes de chamadas. Os médicos de família falam em desorganização.

Depois de um dia de escola, R., de oito anos, chegou a casa na tarde de terça-feira com um pé meio roxo, inchado e com dificuldade em andar. Nesta altura, as dores já eram muitas e a sua impaciência também. A mãe queria ir à urgência do hospital da área de residência, mas o pai achou por bem responderem aos apelos quer do primeiro-ministro, da própria Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e até de alguns diretores de urgências que têm vindo a pedir para que se ligue primeiro à Linha SNS24.

Mas, verdade seja dita, seis horas mais tarde arrependeu-se. Aliás, a conclusão que tira do episódio de doença do filho é que são os utentes a pagar a fatura das falhas do SNS, tendo que “andar de um lado para o outro”, só conseguindo ter uma resposta final nos cuidados a 35 Km de casa e a mais de 50 minutos de carro.

“Fomos para o centro de saúde, que não nos recebeu, depois fomos encaminhados para o hospital da nossa área, que deu alguma resposta, mas a criança precisava de ser observada presencialmente, e acabámos em Lisboa, na Estefânia, para termos um diagnóstico”. Por cada unidade que passavam e comentavam a situação, a resposta de quem os recebia foi sempre a mesma: “Não é o único. Todos os dias há casos assim”.

O caso de R. começou com a mãe, Joana, a ligar para a Linha SNS24 pelas 18:00. O técnico que a atendeu fez a triagem aos sintomas do filho, pedindo que este movimentasse o pé para perceber o conseguia fazer e o que doía.

No final, decidiu reencaminhá-lo para os cuidados primários da área para ser observado presencialmente. Joana recebe uma mensagem no telemóvel a confirmar o reencaminhamento e arranca com o marido, Miguel, e o filho para o centro de saúde, onde não têm médico de família.

São recebidos pelo segurança que lhes diz que não serão atendidos. Joana mostra a mensagem da Linha SNS24 e insiste em falar com um funcionário do centro de saúde. A secretária clínica permite que entrem nas instalações e Joana mostra o pé de R., cada vez mais inchado, mas a resposta é a mesma. “A Linha SNS24 sabe muito bem que não temos capacidade para dar resposta a todas as urgências que reencaminham para cá”. À pergunta, “então o que faço com o meu filho?”. A secretária aconselha: “Ligue de novo para o SNS24 e diga que não podemos atender aqui”.

Assim que entra no carro com o marido e o filho, Joana liga de novo  e conta o que aconteceu. R. é reencaminhado para a urgência do hospital do Montijo. Chega e pouco depois vai à triagem, espera para ser observado e a médica pede um RX. Faz o exame e aguarda, quando é finalmente chamado os pais pensam que terão um diagnóstico, mas a médica diz-lhes que o RX é inconclusivo e queria que o exame fosse observado por um colega ortopedista. Compreendem. A médica envia o exame para o colega de serviço na urgência do Hospital do Barreiro, que diz o mesmo: “O RX é inconclusivo”, e aconselha a que criança seja observada presencialmente para se perceber se há lesão mais profunda. Só que, avisou logo, R. não poderia ir ao Barreiro,  a urgência pediátrica estava fechada.

Perante isto, a médica do Montijo diz aos pais que a opção é ir à urgência pediátrica do Garcia de Orta, embora não soubesse se lá haveria ortopedista pediátrico, ou à do Hospital da Estefânia, em Lisboa.


Para não andarem mais de um lado para o outro com R., que já não punha o pé no chão, os pais decidem ir à Estefânia. Quando chegam assustam-se - a sala de espera está cheia -, mas pouco depois de se apresentaram no balcão com a carta da médica do Montijo a descrever a situação de R. e o motivo porque estão ali, são chamados à triagem e depois  encaminhados para a sala de ortopedia. Daqui até à observação e ao diagnóstico final, foi rápido também. R. fez “uma fissura no osso do tornozelo”. 

O regresso a casa aconteceu já pela 01:00 da madrugada. Para os pais, “seguir as regras custou-nos caro, mais de seis horas de um lado para o outro e muita despesa. Confesso que se houver uma próxima vez, a tentação é ir logo direito à Estefânia”, conclui o pai.


Depois dos apelos, Linha SNS24 bate recordes de chamadas


O primeiro apelo aos utentes para que ligassem à Linha SNS24 antes de se dirigirem a uma urgência hospitalar foi feito pelo próprio primeiro-ministro António Costa no mês de outubro, quando aumentavam os constrangimentos nestes serviços devido à falta de médicos para assegurar as escalas.

O movimento médico “nem mais uma hora extra, além das 150 horas legais”, que começou com um grupo de Viana de Castelo, estava a ter efeitos em todo o país, levando ao encerramento de urgências gerais, pediátricas e ginecologia-obstetrícia, a ponto de o diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, vir alertar para o facto de novembro poder ser o pior mês da história do serviço público.

Novembro chegou e, desta vez, o alerta veio do diretor do serviço de urgência do maior hospital do país, Santa Maria. João Gouveia pedia aos utentes que não fossem à urgência sem ser mesmo necessário porque estavam sem capacidade de resposta. Outros diretores fizeram o mesmo.

No início de dezembro, a tutela informou que os hospitais iriam reencaminhar para os centros de saúde os utentes que fossem à urgência sem necessidade e sem serem referenciados. 

A partir daqui, a Linha SNS24 passou a bater recordes de chamadas, no primeiro mês, dezembro, recebeu quase 240 mil (239 800), quando em novembro tinham sido 187 mil e em outubro 173 mil. Em janeiro, novo recorde com 271 100 chamadas. E nos primeiros dias de fevereiro já vai em 49 300.

Ao todo, e segundo os dados disponibilizados ao DN pela Linha SNS24, o número de atendimentos em 2024 já vai em 320 400. Destas, menos de 30% foram reencaminhadas para os cuidados de saúde primários e entre 30% a 35% para os serviços de urgências hospitalares (quantas destas acabaram por ser atendidas em cada uma das unidades, não sabemos).

As restantes situações, ficaram em autocuidado, por técnicos da linha considerarem que os próprios utentes conseguiam controlar os sintomas.

Na resposta ao DN, fonte da Linha SNS24 explica que a procura deste serviço neste período “está ligada a diferentes situações de saúde, nomeadamente ao frio e à circulação de vírus que afetam, maioritariamente, as vias respiratórias”.

No entanto, a mesma assume, que o  aumento da procura “tem a ver também com o esforço de comunicação que vem sendo feito para aumentar a literacia em saúde e levar os cidadãos a um uso correto dos serviços de urgência”.

E continua: “É um trabalho que está a ser feito aos poucos, pode levar algum tempo e  os utentes não terem já a resposta que pretendiam, mas há projetos piloto que estão a ter bons resultados”.

Por exemplo, “na Póvoa do Varzim e Vila do Conde, o encaminhamento para os cuidados primários acontece já com agendamento de consulta com data e hora. Este projeto - Ligue Antes, Salve Vidas - ocorre sob a responsabilidade da DE-SNS, a SPMS e a ULS PVVC, prevendo-se o seu alargamento a outras zonas do país”.

Mas o vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) alerta para outro facto: “Estamos a trabalhar com um pais muito desigual, e as medidas que podem ter bons resultados em determinados locais, podem não ser solução para outros, porque não  só estamos a falar de populações com literacia diferente, como de áreas com recursos diferentes, algumas com equipas muito subdimensionadas para a população que servem”.

E dá um exemplo: “Numa unidade da região de Lisboa e Vale do Tejo que tenha muitos utentes sem médico de família, nenhuma solução irá resultar enquanto não forem colocados profissionais suficientes. Se os utentes não tiverem uma resposta de proximidade, não é por haver mais atendimento na Linha SNS24 ou mais mecanismos ao dispor dos utentes, como APP, emails, telefones, que estes vão conseguir obter respostas”. Que o diga Maria, residente no centro de Lisboa.


Maria ligou para a Linha SNS24, foi referenciada mas acabou por ter de ir ao privado


Maria, tal como a família de R. não tem médico de família. Cada vez que precisa de cuidados tem o hábito de ligar à Linha SNS24, mas quase sempre não consegue acesso ao centro de saúde, acabando muitas vezes por ter de recorrer aos serviços médicos da junta de freguesia do Areeiro, que “apesar de serem privados é mais barato do que ir a um consultório”.

No início da semana, Maria ligou para o SNS24 por ter sintomas que indiciavam algo nos rins, “podia não ser grave, mas estava cheia de dores”, explica-nos. Quem lhe fez a triagem considerou que não era necessário ir à urgência hospitalar, mas que deveria ser vista por um médico. Por isso, explica, “tentou reencaminhar-me para o meu centro de saúde, mas não conseguia. Disse-me que o sistema não aceitava o reencaminhamento”.

E Maria fez a pergunta óbvia: “Qual é a solução?”, ficando boquiaberta com a resposta do outro lado. “Não tem nenhuma alternativa?”, ao que Maria respondeu: “Não, estava à espera que me desse uma opção”.

Foi então que “tentaram reencaminhar-me para o hospital Santa Maria, que também não aceitava o pedido. Explicaram-me que era por ter de ser o centro de saúde a atender-me”, mas  insistiram e conseguiram o reencaminhamento, avisando logo Maria que iria receber pulseira amarela e que teria de esperar muitas horas.

Ela estava cheia de dores, acabou por ir à farmácia comprar um medicamento SOS e no dia seguinte foi aos serviços privados para ser examinada, ter a prescrição de uma análise e depois a receita de um antibiótico e anti-inflamatório. E recorda: “A única vez que consegui uma consulta no centro de saúde foi no tempo da pandemia.”


Médicos de família querem gestão de doentes mais próxima das unidades


O vice-presidente da APMGF relembra que a esmagadora maioria dos 1,7 milhões de utentes sem médico de família estão em Lisboa e Vale do Tejo (LVT), mas a grande preocupação é que o mesmo começa a acontecer no Algarve, Alentejo, Centro e até mesmo no Norte, no interior.

Por isso diz: “São urgentes medidas que possam inverter este trajeto, porque sabemos que nas zonas em que há falta de médicos os utentes acabam por ter o acesso mais limitado, e os médicos que lá estão trabalham a dobrar, porque têm de dar resposta aos utentes que não tem médico de família e aos que têm”.

Para exemplificar as dificuldades, António Luz Pereira refere os números que retirou do Portal da Transparência do SNS relativos a episódios de urgências e de consultas não programadas nos centros de saúde primários, em 2023. E estes revelam 6 405 102 urgências e 12 212 886 consultas não programadas nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), “isto significa que da totalidade de casos de doença aguda, em média, 65,6% foram observados nos CSP”, acrescentando: “Se excluirmos os fins de semana, em que nem todos os centros de saúde estão abertos, esta percentagem sobe para os 70,9%, sendo naturalmente variável nos dias da semana, já que as segundas-feiras são dias de maior afluxo nos CSP e nos serviços de urgência”.

Ou seja, “apesar de existir um grande afluxo de utentes às urgências hospitalares, existe ainda um maior aos CSP.” E porque é que tal acontece? “Porque Portugal é um país com uma boa taxa média de esperança de vida, mas esta não é acompanhada com bons níveis de saúde. Somos dos países europeus com a maior carga de doença nos idosos, o que representa logo um esforço acrescido para todos os cuidados de saúde”, argumenta.

“Muitos dos cuidados primários acabam por não estar dimensionados para a população que servem e os serviços de urgência também não. E se os médicos continuam a sair do SNS, isto faz com que as equipas estejam cada vez mais desfalcadas”.

António Luz Pereira considera haver mais justificações para a falta de resposta  aos utentes. “O que está a acontecer é que os utentes têm ao seu dispor vários mecanismos de referenciação e todos estão a reencaminhar para os CSP, até os próprios hospitais”, explicando: “Cada unidade tem um número expectável de consultas não programadas, mas, muitas vezes, estas acabam por ser mais de metade das consultas programadas do dia. Os utentes chegam via Linha SNS24, via email, por telefone e até diretamente e tudo isto acaba por ultrapassar a capacidade que as unidades têm para as consultas não programadas”. 

Por outro lado, relembra, “muitas situações encaminhadas pelo SNS24 não deveriam chegar aos CSP, o próprio utente poderia tratar”. Quando colocamos a questão à Linha SNS24, é-nos dito: “Em caso de dúvidas, a segurança do utente está em primeiro lugar e a orientação vai para a observação presencial”.

No entanto, explicam-nos, “o algoritmo usado para a triagem dos utentes que ligam à Linha SNS24 está a ser trabalhado para que as decisões de reencaminhamento sejam cada vez mais adequadas”.

O dirigente da APMGF sustenta que, apesar de tudo, “o sistema de antigamente, em que o utente quando precisava ia à unidade, permitia outra gestão das consultas não programadas, hoje é mais difícil por haver muitos mecanismos a interagir com os cuidados primários, mas sem comunicarem entre si”.

Na opinião da associação, e isto mesmo tem sido defendido nalgumas conversas com a tutela, “deve haver melhor organização de todos estes organismos”. E têm ideias de como se pode resolver: “Quanto mais próximo da unidade for feito o contacto para uma consulta não programada, mais fácil será a gestão dos doentes. Até porque, muitas vezes os funcionários dos cuidados primários conhecem os utentes e isso acaba por facilitar o atendimento. Se tiverem que continuar a ligar para uma linha que quem está a atender não conhece o histórico do utente nem o seu acompanhamento, o doente acabará sempre por ser reencaminhado”. E defende que “o reforço das unidades com pessoal que possa fazer a gestão da doença não programada e dar outra resposta aos utentes”.


Apesar de ligarem mais para a Linha SNS24, há utentes que ainda não conseguem ter acesso a cuidados quando deles necessitam. Os médicos de família continuam a queixarem-se que os cuidados primários estão assoberbados, defendendo que “é preciso um trabalho mais organizado para a triagem da doença aguda e urgências”.