Relatório sobre assédio no CES
14 março 2024 às 00h31
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Denúncias de abuso tratadas como “assuntos privados entre pessoas adultas”. Boaventura diz-se “mais tranquilo”

“Toques nas nádegas e genitais”, “relações sexuais com alunas”, “sob efeito de substâncias”. Testemunhos a Comissão que investigou CES garantem que ante tais denúncias membros da instituição “normalizaram”: “São assuntos privados entre adultos”. Reação no CES ao relatório foi “tensa”, Boaventura frisa não ser nomeado.

"O relatório tanto é visto como provando a existência de assédio como não provando nada. A dada altura, uma colega perguntou: depois disto, vocês [Comissão Independente] podem dizer ‘houve abuso sexual, houve assédio sexual no CES, houve ou não?’”
A descrição é de quem assistiu à apresentação, que ocorreu à porta fechada, na tarde desta quarta-feira, num auditório cheio, do relatório da Comissão Independente de Esclarecimento de Situações de Assédio no Centro de Estudos Sociais à “comunidade CES” (investigadores, professores na instituição e outros funcionários, assim como representantes de alunos de pós-doutoramento ligados ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra). A Comissão, prossegue quem conta - e que requer anonimato -, foi questionada, “num debate duro”, e “sempre respondeu ‘Nós não somos um tribunal, não podemos fazer uma afirmação dessas.’”
Em resultado, “a Comissão acabou por levar um pouco dos dois lados: de pessoas que esperavam mais, e queriam que o relatório fosse quase uma sentença - disseram que as conclusões indicavam um padrão de abuso, de assédio -, e de outras, sobretudo das mais próximas dos acusados, ou denunciados, que intervieram para questionar o trabalho, a metodologia e o facto de a Comissão validar os testemunhos pela “coerência” e pela “consistência”, ou seja  por haver relatos de situações muito semelhantes. Essas pessoas disseram que 'uma ficção também tem coerência interna'.”
A sessão, na qual “houve palmas, e bem sonoras, quando a Comissão terminou a apresentação”, acabou assim por evidenciar, frisa quem assistiu, a clivagem existente no CES, bem expressa nas questões sobre “reparações”. “É curioso”, comenta esta fonte, “porque a pergunta foi feita tanto em relação a quem denunciou, as vítimas, e como poderia haver reparação dos danos, como a quem foi denunciado”.
Essa divisão face ao relatório pode ser constatada no contraste entre a carta aberta que no início da tarde foi divulgada pela direção do CES, na qual se pede desculpa às vítimas e se promete agir em relação aos denunciados - o que o diretor da instituição, Tiago Santos Pereira, reforçou no final da sessão, fazendo referência ao Código do Trabalho, sendo tal entendido como uma alusão a processos disciplinares -, e o comunicado que mais tarde Boaventura de Sousa Santos enviou às redações.
Neste, intitulado “Relatório sem acusações diretas a Boaventura de Sousa Santos”, o principal denunciado no escândalo de assédio revelado em abril de 2023 (na sequência da publicação de um livro sobre assédio sexual na academia - Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of Care in the University /Má conduta sexual na Academia -Para uma Ética de Cuidado na Universidade, publicado no final de março de 2023 - entretanto retirado pela editora devido a ameaças de processo, e no qual um dos capítulos descrevia, sem nomear a instituição, um padrão de abuso e assédio no CES, e o designava como “Professor Estrela”, personagem mais importante de um triunvirato de que faziam também parte “A Sentinela”, uma mulher, e outro homem, “O Aprendiz”), diz-se “mais tranquilo hoje do que estava há um ano”.
E, apesar de reconhecer que a direção do CES “optou por não garantir o fim da suspeição”, afirma: “Nunca esperei uma absolvição das suspeitas que sobre mim pairaram porque, efetivamente, nunca fui confrontado com acusações concretas de abuso de poder ou de assédio - como, aliás, o próprio documento agora atesta. (…) Acredito que as mais de 600 páginas de prova que juntei ao processo tenham contribuído para que nada de objetivo contra mim tenha sido concluído.

“Boaventura tem tentado descredibilizar as vítimas e distorcer os factos”  

De facto, o relatório, que informa terem sido denunciadas 14 pessoas por 32 denunciantes, num total de 78 denúncias, não “nomeia nomes”, e portanto não o nomeia, não apresentando, assim, “nada de objetivo” contra Boaventura - ou qualquer outra pessoa.
Porém, ressalvando terem sido  “as versões apresentadas por várias pessoas denunciantes e por várias pessoas denunciadas (...) em muitas situações incompatíveis entre si, tornando-se, nessas situações, impraticável aferir evidências das mesmas”, e que  “a documentação apresentada e as audições realizadas, tanto de pessoas denunciantes como de pessoas denunciadas, não permitiram esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas à CI”, a Comissão conclui ainda assim que “a análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES.”
Não é pois nada evidente que Boaventura não seja uma das pessoas denunciadas cujo nome está na lista que a Comissão entregou à direção do CES.
E não é decerto verdade que nunca tenha sido confrontado com acusações concretas de abuso de poder ou de assédio. Foi-o publicamente, em abril de 2023, por uma ex-aluna de doutoramento do CES cujo caso é mencionado no referido capítulo do livro (diz respeito a uma situação em que o “Professor Estrela” teria, numa reunião de trabalho, tocado o joelho de uma estudante de doutoramento de quem era orientador, “convidando-a a aprofundar o relacionamento” como “paga” do seu apoio académico”) - acusação em relação à qual não apresentou até hoje uma refutação pública.  
A denunciante em causa é a hoje deputada estadual brasileira do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Isabella Gonçalves, que testemunhou ante a comissão e, confrontada pelo DN com o comunicado de Boaventura, se manifesta indignada.
“O relatório do CES não é um documento judicial - não é um julgamento sobre o que é verdade e não é verdade, apresentando nomes de culpados e de vítimas. O objetivo não era esse, mas observar se existem ou não casos de assédio e abuso de poder no CES, e conclui que sim. Boaventura tem tentado desde o início descredibilizar as vítimas e distorcer os factos. Mas dessa vez está tentando fazer uma torção de entendimento que extrapola qualquer razoabilidade. Porque o relatorio é contundente em afirmar que há padrões de assédio e abuso de poder no CES que precisam de ser revistos”, afirma a deputada, que integra um coletivo de vítimas que testemunharam perante a comissão e estão a preparar uma reação aos últimos acontecimentos. “O relatório não veio do nada. As denunciantes são denunciantes contra ele, Bruno Sena Martins e Maria Paula Meneses ["O Aprendiz" e "A Sentinela", as outras personagens descritas no capítulo]. Pode ter havido outros professores que tenham sido colateralmente denunciados, por ação ou omissão, mas a centralidade da formação da Comissão se deu em função de denúncias que vieram a público contra eles, inclusive relatos contundentes apresentados, como foi o meu caso.”
Isabella Gonçaves, deputada estadual do PSOL, que foi estudante de doutoramento no CES, tendo Boaventura de Sousa Santos como orientador, e o acusou publicamente de assédio em abril de 2023.
E Isabella Gonçalves refere, como já o fizera ao DN em setembro de 2023, a tentativa que o sociólogo terá feito de “construir uma mediação” com ela através de uma advogada brasileira, “chegando a tentar fazer um pedido de desculpas no Expresso [refere-se a um artigo publicado por Boaventura no semanário em junho de 2023, no qual este pedia desculpa por eventuais “comportamentos inapropriados mas recusava ter cometido “atos graves”]…” Concluindo: “Ele está tentando construir uma torção impossível num ponto como esse. De um homem que se diz anti-patriarcal, a gente esperava uma atitude mínima de reconhecimento, de pedido de desculpas, que foi o que o CES fez, e de reparação. Mas mais uma vez o Boaventura perde uma oportunidade de inspirar outros homens, que eventualmente tenham errado na sua trajetória, tenham cometido equívocos, e sentem que gostariam de os reconhecer para tentar repará-los. Ele joga contra a própria ideia de justiça restaurativa que sempre defendeu. Perde a oportunidade de contribuir para o enfrentamento de situações de assédio. Porque tanto o relatório como a carta do CES deixaram bastante claro que os padrões foram identificados.”

“Toda a gente sabia das situações de assédio”?

Quando em abril de 2023 o DN ouviu membros do CES a propósito das acusações contidas no capítulo do livro Sexual Misconduct in Academia, foi referido que, a propósito de um conjunto de pichagens que surgiram nas paredes do centro em 2017/2018, nas quais se lia por exemplo “Fora, Boaventura. todas sabemos” (e que são referidas no título do capítulo do livro referido - The walls spoke when no one else would/ As paredes falaram quando ninguém se atrevia), o sociólogo foi questionado numa reunião académica e respondeu algo como “Só tenho conversas adultas com pessoas adultas”.
Este mesmo tipo de fórmula é reproduzido, no relatório da comissão, como algo que terá sido usado no CES como resposta a denúncias: “Algumas pessoas denunciantes referiram que informaram pessoas dentro do CES sobre situações de assédio e abuso, acrescentando que estas normalizaram as situações e referiram que se tratava de assuntos privados entre pessoas adultas.”
Essas denúncias diriam sobretudo respeito a “assédio e abuso sexual (no sentido de contacto físico sexualizado, indesejado e não autorizado) por parte de pessoas em cargos de poder/chefia ou hierarquicamente superiores em relação a pessoas diretamente dependentes das mesmas e/ou que se encontravam em grupos vulneráveis, como sendo pessoas estrangeiras, mulheres (…)”.
Mas há mais nos relatos feitos à comissão que “toques no joelho”. Há por exemplo, classificadas no relatório como relativas a “abuso sexual”, denúncias de “toques indesejados e não consentidos em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais; abraços demasiado longos e apertados”; “manutenção de relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de vulnerabilidade, enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido”; “manutenção de relações sexuais com alunas/investigadoras cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas que as procuravam”.
No assédio sexual, são elencadas situações como “erotização de gestos e comportamentos por parte de alguns investigadores principais/professores na relação com as investigadoras/alunas”; “excessiva proximidade e contacto corporal, não autorizado e desadequado em função da relação/grau de intimidade entre professores/investigadores e alunas - beijos húmidos e demorados, olhares lascivos”; “propostas, mais ou menos subtis, de relações íntimas, sugerindo ou não, ganhos secundários e benefícios académicos como troca”; “comportamentos reiterados de importunação sexual, como comentários sobre o corpo, convites, mostrar-se disponível para relações com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de vulnerabilidade, e tentativas de controlo da vida sexual de alunas através da realização de questões diretas sobre a vida íntima das mesmas”; “insistência para consumo de álcool por parte das alunas/investigadoras/visitantes, com o intuito de obter contacto sexual”. São também referidas variadas situações de “assédio moral”.
No relatório lê-se que “a maioria das pessoas denunciadas rejeitou liminarmente as acusações descritas no Capítulo [do livro] e/ou publicamente feitas, apontando razões políticas, ideológicas, pessoais e académicas para as mesmas”, mas “uma minoria confirmou vários dos factos alegados nas denúncias apresentadas pelas pessoas denunciantes, nomeadamente a existência de relações íntimas de cariz sexual entre professores/investigadores e alunas/investigadoras, e a presença de situações de assédio moral e de abuso de poder, usando a posição de superioridade hierárquica”. E algumas terão mesmo afirmado que “‘toda a gente sabia’ das situações de assédio”.
Resta agora saber se a conclusão da Comissão de que existiram “padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES” poderá levar a alguma ação efetiva contra essas pessoas. O membro do CES ouvido pelo DN, e que descreveu a apresentação do relatório, tem dúvidas: “A Comissão não pode revelar os nomes das pessoas que denunciaram. Não sei como se poderão instruir processos disciplinares sem que as vítimas ou denunciantes sejam identificados."  Poderá assim suceder algo semelhante ao ocorrido com o relatório sobre os abusos sexuais na Igreja Católica: não houve praticamente consequências para os padres cujos nomes foram referidos por essa outra comissão à Conferência Episcopal.
 
Tiago Santos Pereira, o diretor do CES, informou, na apresentação do relatório aos jornalistas, que o relatório foi remetido ao Ministério Público.