“As pessoas perguntam ao meu marido como estou. Como se eu estivesse com uma doença terminal.”
A voz é de Valentina Marcelino, 55 anos, no DN desde 2008. Delegada sindical e membro do Conselho de Redação, tem sido, nas TV, nas notícias sobre a situação no GMG, a principal cara da luta do jornal. Incansável, com Isaura Almeida, a outra delegada sindical, na informação, nos contactos, no alento para que continuemos unidos, para que encontremos um caminho para fora dessa espécie de antecâmara da morte laboral que são os salários em atraso.
Esse lugar para o qual o pai de Valentina, “tristíssimo com o que me está a acontecer, é um anti-fascista, para ele salários em atraso é a maior vergonha para uma empresa”, enviou um certificado de amor e respeito. “Pôs-me 500 euros na conta sem me dizer nada. Quando dei por isso, nem me deixou protestar: ‘Já sei que me vais dizer que não queres, mas trabalhas desde os 18, nunca me pediste dinheiro e não quero que aos 55 peças dinheiro a ninguém.’”
A primeira coisa que ela fez, quando finalmente, a 25 de janeiro, o salário de dezembro lhe apareceu na conta, foi devolver esses 500 euros. O que fez a maioria - devolver os empréstimos para pagar a renda, a prestação da casa, o seguro do carro, despesas que para muitos caíram em contas vazias. Mesmo temendo, como todos temíamos, que no fim de janeiro se repetisse a falta - assim foi - e tudo recomeçasse. Que recomeçasse o matinal “já alguém recebeu?” no whatsapp da redação - criado, com o nome “DN em luta”, precisamente pela Valentina, para manter sempre viva a conversa, a energia, a terapia - e no grupo “Jornalistas de Portugal”, que reúne grande parte dos profissionais portugueses, dos quais umas centenas, entre DN, Jornal de Notícias, TSF, O Jogo, Dinheiro Vivo e Açoriano Oriental, são do GMG. Um grupo no qual se lê muitas vezes “foi preciso acontecer uma coisa destas para nos unirmos, finalmente”.
Uma coisa destas é aquilo que tem feito o noticiário sobre o GMG: a ameaça, proclamada pelo próprio presidente da Comissão Executiva da empresa, José Paulo Fafe (que esta quarta-feira, ao fim de quatro meses no cargo, se demitiu), em sucessivas entrevistas e comunicados, de fim, pela insolvência, dos títulos que esta detém - incluindo a mais carismática rádio de notícias portuguesa, aquela que nos garantiu ser sempre capaz de, por uma boa história, ir ao fim da rua e ao fim do mundo, e o mais antigo jornal diário nacional, o DN, fundado em dezembro de 1864.
Uma ameaça, formulada como alternativa ao despedimento de 150 a 200 trabalhadores, à qual se adicionou a certificação de que um fundo internacional (o World Opportunity Fund), que terá alegadamente comprado a maioria do GMG - e cujos beneficiários finais não foram, até ao momento, identificados, apesar da ameaça da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) de, perante o que considera uma violação da obrigação de transparência imposta legalmente aos detentores de media, lhe retirar direito de voto - “não mete dinheiro para salários”. Foi essa ameaça e o efetivo não pagamento de salários a desencadear a greve que, a 10 de janeiro, paralisou todas as redações da empresa à exceção da do Açoriano Oriental (a única que recebeu antes do dia 10) e mereceu a paragem solidária, por uma hora, de várias redações de outros órgãos, incluindo da agência Lusa, assim como uma extensa cobertura mediática cujo embalo se tem prolongado nas redes sociais, com dezenas de “personalidades” a, nas páginas criadas pelos trabalhadores de cada órgão para o efeito, apoiar a respetiva luta e a continuidade dos títulos.
“Surpreendeu-me a capacidade que tivemos de mobilizar a sociedade. Mostrou que o jornalismo não está morto, e que o DN não está morto. Foi muito importante”, comenta Valentina. “Porque pela primeira vez houve uma luta num grupo inteiro de comunicação social. No caso do DN, a situação dramática a que chegámos, ficando, por sucessivos despedimentos coletivos, reduzidos ao que costumo chamar uma ‘nano-redação’, resultou de termos ficado sozinhos. Foi importante o empurrão dado pelo JN e pela TSF, que têm muito mais gente. Percebermos que juntos somos muito mais fortes.”
“Continuo a acreditar em melhorar o mundo”
Às vezes, brincamos com o nome dela - chamamos-lhe “valentona”. Mas não sabíamos - eu não sabia, até agora, e já trabalhámos muitas vezes a quatro mãos, por exemplo na longa investigação sobre o cidadão ucraniano Ihor Homeniuk cuja morte, a 12 de março de 2020, sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), levou ao fim desta polícia - o quão isso é apropriado.
Iniciada aos 16 anos, em 1984, no jornalismo, nas páginas do África Jornal, com um artigo sobre o apartheid na África do Sul - “Estava no 12º ano, tinha um namorado que colaborava com o jornal e me desafiou, no regresso de uma viagem à África do Sul (o meu pai trabalhava na TAP, tínhamos passagens gratuitas), a escrever sobre o que vira” -, nem cinco anos depois é África que a faz abandonar as colaborações com jornais (passara pelo Semanário e pelo O Jornal). “Foi por causa de outro namorado, que tinha vindo para Portugal a seguir ao 27 de maio de 1977 [golpe e contra-golpe em Angola, no seio do partido do governo, o MPLA, no âmbito dos quais se crê terem sido assassinadas dezenas de milhares de pessoas]. Quis regressar e fui com ele.”
Primeiro esteve a trabalhar numa loja de importação de material de construção em Luanda, onde teve de aprender a fazer contabilidade (e ainda por cima em kwanzas, uma moeda tão desvalorizada que, conta, para ir ao mercado tinha de levar um saco de dinheiro). “Ao fim de dois meses concorri a um programa de desenvolvimento agrícola da ONU, e entrei. Andava com técnicos estrangeiros pelo sul, no Lubango, a servir de tradutora, a conhecer aquelas aldeias todas.”
Fez lá os 21 anos, num lugar onde para falar para a família tinha de pedir uma chamada à Marconi e esperar até conseguirem efetuar a ligação. E pensava ficar: “Íamos comprar uma pequena quinta, sonhava com uma coisa tipo Out of Africa”. Há na voz um sorriso que não prepara para o que se segue. “Tive um grande acidente. Ia sozinha no carro, apanhei óleo e caí numa ravina. Foi a 25 de março de 1991. Só me salvei porque um mumuila - tribo local - me apanhou e me levou ao colo por ali acima, para a estrada.”
Muito ferida, é mandada para um hospital na Namíbia e vem a Portugal para se restabelecer. É em Lisboa que, a 25 de setembro, recebe a notícia de outro acidente de viação, desta vez com o namorado. A sorte gastara-se toda com ela: não houve um anjo para o salvar. “Foi um ano trágico”, conclui.