Viagem ao coração do Diário de Notícias
03 fevereiro 2024 às 09h16
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“Gostaria que este jornal não morresse nas minhas mãos”

O amor ao jornalismo não paga contas, repetimos. Mas trabalhámos 25 dias sem salário - e continuamos sem saber quando receberemos o próximo. Como e porquê? Que é para nós ser jornalista? Por que queremos tanto ao DN? Por que queremos tanto que o jornalismo sobreviva? Viagem ao coração (ferido) de uma redação em luta. 

Aprende-se isto nas escolas como o bê-á-bá do jornalismo - quem, onde, quando, como, porquê. Outra coisa que se aprende é “o jornalista nunca é a notícia”. Uma espécie de preconceito (por que não hão-de jornalistas ser notícia, se o que lhes acontece é notícia?) que é também um logro, esse que nos ensina a fazer desaparecer o jornalista no jornalismo. Como se a voz que nos relata, anuncia, denuncia, conduz e guia - isso a que costumamos chamar “informar” - não tivesse um corpo, não dependesse de um olhar, de uma perspetiva, de uma mundividência, de uma condição social, económica, cultural, tecnológica até. Como se não houvesse aqui alguém. 

Há aqui gente, sim. No último plenário de redação, a 19 de janeiro, face ao reiterado não pagamento, pela empresa que detém o DN - o Global Media Group/GMG - quer do subsídio de Natal quer do salário de dezembro, decidimos, além de efetuar um pré-aviso de greve se não nos pagassem dezembro até 31 de janeiro (pagaram; agora está em dívida janeiro, para além do subsídio do Natal, que também ainda não recebemos), usar o jornal na luta. A luta pelos salários a que temos direito e a luta pelo jornalismo que queremos continuar a fazer, pelos jornalistas que queremos continuar a ser, por este jornal que queremos que continue a existir. Que é também, acreditamos, a luta pela democracia, portuguesa e mundial - porque acreditamos que não há democracia sem jornalismo, e jornalismo sem jornalistas. 

Não estamos todos de acordo sobre muitas coisas, e nem sequer sobre qual a forma certa de fazer refletir no jornal essa luta. Houve quem torcesse o nariz a esta reportagem, quem a visse como “umbiguista”, quem não vislumbre interesse em relatar, descobrir, dar a conhecer e sentir quem somos, ouvir a nossa respiração. Para mim, que insisti nisto - porque, como para vários dos que aqui falaram comigo, o jornalismo é sobretudo decifrar pessoas, narrá-las, contar-lhes a história, dar testemunho, partir, em grande angular, do individual para o geral - esta reportagem foi também uma descoberta, como todas devem ser. Porque é possível, foi possível, trabalhar décadas (entrei no DN em 2004) ao lado de pessoas sem saber, sem nunca perguntar, esta coisa simples e básica: por que és jornalista? O que é para ti o jornalismo? O que é este jornal para ti? Por que quiseste e queres, para usar uma frase de um de nós - o João Pedro Henriques, no 5º Congresso dos Jornalistas, que decorreu de 18 a 21 de janeiro sob o mote “Jornalismo, sempre” -, ter “o melhor dos ofícios e o pior dos trabalhos”? 

E essa pergunta inicial, essencial, que guardamos para os desconhecidos, porque com os conhecidos temos pudor: quem és tu?  Como chegaste aqui? Que queres de ti e do mundo? 

Usar aquele que é o nosso maior poder, esse poder extraordinário de pôr as pessoas a falar e a contar o que normalmente não diriam nem contariam (e por que o fazem, por que o fazemos, por que confiamos, que há neste pacto, será sempre para mim o mais cintilante mistério da profissão) com estas pessoas. Os meus camaradas. 

Vamos então ao quem, onde, quando, como e porquê, agora por dentro, de dentro deste jornal que no primeiro mês do seu centésimo quinquagésimo nono ano luta por continuar a existir. De dentro de quem o faz, de quem ele é. 

“É como se tivesse uma doença terminal”

“As pessoas perguntam ao meu marido como estou. Como se eu estivesse com uma doença terminal.”

A voz é de Valentina Marcelino, 55 anos, no DN desde 2008. Delegada sindical e membro do Conselho de Redação, tem sido, nas TV, nas notícias sobre a situação no GMG, a principal cara da luta do jornal. Incansável, com Isaura Almeida, a outra delegada sindical, na informação, nos contactos, no alento para que continuemos unidos, para que encontremos um caminho para fora dessa espécie de antecâmara da morte laboral que são os salários em atraso.

Esse lugar para o qual o pai de Valentina, “tristíssimo com o que me está a acontecer, é um anti-fascista, para ele salários em atraso é a maior vergonha para uma empresa”, enviou um certificado de amor e respeito. “Pôs-me 500 euros na conta sem me dizer nada. Quando dei por isso, nem me deixou protestar: ‘Já sei que me vais dizer que não queres, mas trabalhas desde os 18, nunca me pediste dinheiro e não quero que aos 55 peças dinheiro a ninguém.’”

A primeira coisa que ela fez, quando finalmente, a 25 de janeiro, o salário de dezembro lhe apareceu na conta, foi devolver esses 500 euros. O que fez a maioria - devolver os empréstimos para pagar a renda, a prestação da casa, o seguro do carro, despesas que para muitos caíram em contas vazias. Mesmo temendo, como todos temíamos, que no fim de janeiro se repetisse a falta - assim foi - e tudo recomeçasse. Que recomeçasse o matinal “já alguém recebeu?” no whatsapp da redação - criado, com o nome “DN em luta”, precisamente pela Valentina, para manter sempre viva a conversa, a energia, a terapia - e no grupo “Jornalistas de Portugal”, que reúne grande parte dos profissionais portugueses, dos quais umas centenas, entre DN, Jornal de Notícias, TSF, O JogoDinheiro Vivo e Açoriano Oriental, são do GMG. Um grupo no qual se lê muitas vezes “foi preciso acontecer uma coisa destas para nos unirmos, finalmente”.

Uma coisa destas é aquilo que tem feito o noticiário sobre o GMG: a ameaça, proclamada pelo próprio presidente da Comissão Executiva da empresa, José Paulo Fafe (que esta quarta-feira, ao fim de quatro meses no cargo, se demitiu), em sucessivas entrevistas e comunicados, de fim, pela insolvência, dos títulos que esta detém - incluindo a mais carismática rádio de notícias portuguesa, aquela que nos garantiu ser sempre capaz de, por uma boa história, ir ao fim da rua e ao fim do mundo, e o mais antigo jornal diário nacional, o DN, fundado em dezembro de 1864.

Uma ameaça, formulada como alternativa ao despedimento de 150 a 200 trabalhadores, à qual se adicionou a certificação de que um fundo internacional (o World Opportunity Fund), que terá alegadamente comprado a maioria do GMG - e cujos beneficiários finais não foram, até ao momento, identificados, apesar da ameaça da Entidade Reguladora da Comunicação Social  (ERC) de, perante o que considera uma violação da obrigação de transparência imposta legalmente aos detentores de media, lhe retirar direito de voto - “não mete dinheiro para salários”. Foi essa ameaça e o efetivo não pagamento de salários a desencadear a greve que, a 10 de janeiro, paralisou todas as redações da empresa à exceção da do Açoriano Oriental (a única que recebeu antes do dia 10) e mereceu a paragem solidária, por uma hora, de várias redações de outros órgãos, incluindo da agência Lusa, assim como uma extensa cobertura mediática cujo embalo se tem prolongado nas redes sociais, com dezenas de “personalidades” a, nas páginas criadas pelos trabalhadores de cada órgão para o efeito, apoiar a respetiva luta e a continuidade dos títulos.

“Surpreendeu-me a capacidade que tivemos de mobilizar a sociedade. Mostrou que o jornalismo não está morto, e que o DN não está morto. Foi muito importante”, comenta Valentina. “Porque pela primeira vez houve uma luta num grupo inteiro de comunicação social. No caso do DN, a situação dramática a que chegámos, ficando, por sucessivos despedimentos coletivos, reduzidos ao que costumo chamar uma ‘nano-redação’, resultou de termos ficado sozinhos. Foi importante o empurrão dado pelo JN e pela TSF, que têm muito mais gente. Percebermos que juntos somos muito mais fortes.”

“Continuo a acreditar em melhorar o mundo”

Às vezes, brincamos com o nome dela - chamamos-lhe “valentona”. Mas não sabíamos - eu não sabia, até agora, e já trabalhámos muitas vezes a quatro mãos, por exemplo na longa investigação sobre o cidadão ucraniano Ihor Homeniuk cuja morte, a 12 de março de 2020, sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), levou ao fim desta polícia - o quão isso é apropriado.

Iniciada aos 16 anos, em 1984, no jornalismo, nas páginas do África Jornal, com um artigo sobre o apartheid na África do Sul - “Estava no 12º ano, tinha um namorado que colaborava com o jornal e me desafiou, no regresso de uma viagem à África do Sul (o meu pai trabalhava na TAP, tínhamos passagens gratuitas), a escrever sobre o que vira” -, nem cinco anos depois é África que a faz abandonar as colaborações com jornais (passara pelo Semanário e pelo O Jornal). “Foi por causa de outro namorado, que tinha vindo para Portugal a seguir ao 27 de maio de 1977 [golpe e contra-golpe em Angola, no seio do partido do governo, o MPLA, no âmbito dos quais se crê terem sido assassinadas dezenas de milhares de pessoas]. Quis regressar e fui com ele.”

Primeiro esteve a trabalhar numa loja de importação de material de construção em Luanda, onde teve de aprender a fazer contabilidade (e ainda por cima em kwanzas, uma moeda tão desvalorizada que, conta, para ir ao mercado tinha de levar um saco de dinheiro). “Ao fim de dois meses concorri a um programa de desenvolvimento agrícola da ONU, e entrei. Andava com técnicos estrangeiros pelo sul, no Lubango, a servir de tradutora, a conhecer aquelas aldeias todas.”

Fez lá os 21 anos, num lugar onde para falar para a família tinha de pedir uma chamada à Marconi e esperar até conseguirem efetuar a ligação. E pensava ficar: “Íamos comprar uma pequena quinta, sonhava com uma coisa tipo Out of Africa”. Há na voz um sorriso que não prepara para o que se segue. “Tive um grande acidente. Ia sozinha no carro, apanhei óleo e caí numa ravina. Foi a 25 de março de 1991. Só me salvei porque um mumuila - tribo local - me apanhou e me levou ao colo por ali acima, para a estrada.”

Muito ferida, é mandada para um hospital na Namíbia e vem a Portugal para se restabelecer. É em Lisboa que, a 25 de setembro, recebe a notícia de outro acidente de viação, desta vez com o namorado. A sorte gastara-se toda com ela: não houve um anjo para o salvar. “Foi um ano trágico”, conclui.

E avança, na conversa como há 31 anos: “Matriculei-me em Antropologia na faculdade - era ainda a ideia de regressar a África.” Mas começa entretanto a “fazer desgravações de entrevistas para o Expresso” e depois a escrever para o jornal. Ainda concorre para o BBC World Service e vai oito meses para Londres, como correspondente da TSF e do Público, e depois para os EUA, no programa de jornalismo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. 

De regresso, assenta no Expresso. É aí que, em 2004, se começa a especializar na área que traz como sua ao chegar ao DN: segurança, forças armadas e polícias. “Saí do Expresso para poder crescer, ali era sempre ‘a miúda’. Onde me senti já madura como jornalista foi no DN.” É no DN que faz alguns dos trabalhos que mais a marcaram como jornalista: PSP/Cova da Moura/Alfragide (2015) e Ihor/SEF. “Até então fazia a área da segurança sempre ouvindo muito as polícias, e saí dessa trincheira. Percebi que não diziam sempre a verdade, passei a ver as coisas de outra forma, a ser muito mais desconfiada das fontes. E sinto que pressionar as polícias a serem mais humanas é muito importante.” Sorri: “Ajuda um pouco a melhorar o mundo”     
 
Mudar o mundo. A ideia romântica do jornalismo que nos inflama em miúdos e ainda nos move tão para além dos 50 - talvez até ao fim. Valentina assente: “Lembro-me de um jornalista mais velho a quem disse que queria fazer o mundo melhor e respondeu que nesse caso devia ir para um partido político ou uma associação. Fiquei tão triste. Mas continuo a acreditar. Lembro-me sempre de quando no Expresso escrevi sobre uma família que vivia numa cave que parecia uma gruta: "A menina da casa sem janelas". Cheguei lá através de uma professora, tinha como aluna essa menina de 12 anos que fazia desenhos horríveis sobre a casa. Falei com a Câmara para perceber como era possível viverem ali, e arranjaram uma casa para a família. Fiquei tão feliz por ter conseguido aquilo. ”


Respira fundo. “Uma amiga que foi jornalista disse-me: ‘Não percebes que o jornalismo morreu, que já não interessa nada? Deixa lá isso’. Mas não, não deixo. Sinto que as pessoas precisam de nós. Que o nosso trabalho é importante e necessário. Nestes dias em que tenho escrito menos por causa desta história toda, tenho pessoas a ligar a perguntar quando volto a escrever.”

“Sou a Susana da Musgueira, lembra-se?”

A paixão pelo jornalismo pode ser um sorvedouro. Foi para isso que um dia um chefe alertou Ana Mafalda Inácio, a jornalista que aqui conta mais anos de redação: “Olhem que há vida para além do DN." Aos 59 anos, prestes a fazer 32 no jornal - entrou em 1992, no ano seguinte ao do nascimento da única filha - ecoa o aviso. “Trabalhávamos tanto que ele nos dizia para nos lembrarmos de viver.” 

Nascida em Moçambique, veio para Lisboa em outubro de 1974 por uma doença da mãe (o pai, eletricista na fábrica Laurentina, ficaria em Moçambique até 1976) e é um caso de vocação precoce: descobriu aos 15, no nono ano, que queria ser jornalista. Atribui-o à influência materna - “ela nunca se deitava sem ler o jornal” -, e à fé: “Sou católica e fiz sempre trabalho junto de algumas comunidades mais desfavorecidas - Curraleira, Alto da Eira -, havia a questão da missão. Era um projeto de vida para mim, o denunciar e anunciar. Sentia que tinha de fazer algo na vida em que tivesse intervenção junto das pessoas com quem me cruzava.” 

Essa espécie de ação direta, como a da menina sem janelas de Valentina, regressou-lhe em telefonema há três anos: “Atendi e uma pessoa diz ’sou a Susana da Musgueira, não se recorda de uma menina de sete anos que tomava conta dos irmãos?’” Recordou-se: “Foi uma reportagem que fiz para o Diário Popular em 1987. Os vizinhos ligaram para o jornal [lançado em 1942, este vespertino fechou em 1991] a contar de umas crianças a quem os pais toxicodependentes deixavam o dia todo sozinhas, e fomos lá. Depois de publicarmos, a Segurança Social foi logo buscá-los, puseram-nos numa instituição e a seguir foram os três adotados por uma família. Ela disse que quis sempre falar comigo, que andou estes anos todos à minha procura: ‘Lembro-me de si de cabelo aos caracóis e a escrever e achei que um dia se a visse na rua a reconhecia.’” Como chegou a ti passado tanto tempo? “No outro dia conheceu um jornalista da SIC e ele deu-lhe o meu contacto.” Uma pausa breve dissipa a comoção. “É uma coisa que faz pensar que bastaria isto para ter valido a pena ser jornalista.”

Com o curso de Comunicação Social da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa (fomos da mesma turma, a de 1983/1987), Ana Mafalda fez a reportagem da Susana da Musgueira no jornal que a acolheu para o estágio curricular. Saltou daí a dois anos e meio para um projeto novo “que era para ser um jornal que se ia chamar 24 horas, depois Zero Horas e acabou por ser uma revista, a Face, semanal, dirigida pelo João Mendes e pelo Manuel Falcão, e que só saiu durante nove meses.” Foi aí, após o confronto, na Praça do Comércio, entre pró-sindicalistas da PSP e o corpo de intervenção dessa mesma polícia, crismado como “secos e molhados” (pelo canhão de água usado contra os manifestantes), que, diz, percebeu que preferia o jornalismo diário: “Aquela coisa de vir da reportagem e escrever logo para o dia [ou seja, no papel, para o dia seguinte], não ter de esperar para publicar”.

“É uma luta interior: pagar contas ou continuar no jornalismo”

Dito e feito: vai para o Diário de Lisboa, onde encontra uma direção de luxo: o fundador do PS, deputado constituinte, jornalista, ex-diretor do DN de 1978 a 1986 e académico Mário Mesquita (desaparecido em maio de 2022), e a repórter veterana Diana Andringa. “Era um projeto de diário com departamento de investigação, foi uma experiência excelente, era a ideia de jornalismo que professava desde miúda.” 

Fugaz, porém: o DL fechou em novembro de 1990. Foi a sua primeira e até agora única situação de desemprego: “Estava grávida e resolvi pedir o subsídio de desemprego. A situação de grande instabilidade que estou a viver agora no DN faz-me reviver esses tempos.” Mas na altura, lembra, havia muitos projetos jornalísticos por onde escolher, o que lhe permitiu colaborar com a Marie Claire, a revista Pais, o semanário Sete. Após a filha nascer, começou a escrever para o suplemento de verão do DN e um ano depois estava na redação.   

E ei-la cá mais de três décadas depois, desde o tempo em que o jornal atribuía, por via de um júri que incluía pessoas de fora, prémios monetários mensais aos jornalistas para a melhor “cacha” (notícia exclusiva marcando a atualidade), melhor entrevista e melhor reportagem - e ela ganhou muitos - até este em que não paga salários. “Nunca quis sair, tive outros convites e chegaram a dizer-me ‘não quer saber o que temos para oferecer?’ Respondia ‘não, porque o DN é um projeto de jornalismo para mim, o meu projeto’. Porque apesar dos solavancos que o jornal tem levado tive sempre esperança. Sempre acreditei que íamos encontrar a forma certa de chegar às gerações mais novas; não concebo uma sociedade democrática e livre sem jornalismo. E espero que esta história - a situação deste grupo de media - sirva para a sociedade repensar o papel do jornalismo.”

Suspira. “Porém não sei até que ponto é que quem está à frente do grupo Global Media quer de facto manter o DN. Tem-me sido muito difícil encarar a ideia de avançar com a suspensão do contrato.” 

Parêntesis: a suspensão do contrato permite ao trabalhador que não recebe salário há pelo menos 15 dias manter o vínculo com a empresa e requerer subsídio de desemprego até que aquela cumpra os seus deveres. A conversa com Ana Mafalda ocorreu a 24 de janeiro; os salários de dezembro foram pagos no dia seguinte, mantendo-se no entanto a incerteza sobre quando será pago o subsídio de Natal e agora também o salário de janeiro.  

Suspender custa, parece uma desistência. Mas, diz Ana Mafalda, “não posso continuar a trabalhar sem receber. Porque preciso de sobreviver. Chego a esta idade, oiço ‘o amor do jornalismo não paga contas’ e caio nisso: como sobreviver para lá do jornalismo. E percebo que é mesmo uma coisa muito importante para mim. Já estive noutros jornais que fecharam e nunca me passava pela cabeça sair da profissão. Mas agora a idade é outra, é a porta do jornalismo a fechar-se. E uma luta interior: pagar contas ou continuar jornalista.”

Trabalhadores do Global Media Group - DN, TSF, Dinheiro Vivo, Jornal de Notícias e O Jogo junto às instalações dos títulos em Lisboa, na tarde do dia da greve geral de 10 de janeiro. Foto de Reinaldo Rodrigues, repórter da Global Imagens, também ele em greve.

“Estas pessoas não são do DN, são o DN”

O que é a vida sem um bocadinho de risco? O sarcasmo é de Rui Miguel Godinho, 27 anos, dois de DN completados no exato dia da greve, o dia em que nas escadarias do parlamento posou para a câmara do Reinaldo Rodrigues - repórter da Global Imagens também ele em greve -, tshirt negra com o logo clássico do jornal, olhar determinado, duro, no cinzento da manhã. “Uma banda de death metal”, comentou alguém no nosso whatsapp. 

O caminho até à escadaria de São Bento passou pelas férias de verão de 2015, quando convenceu a rádio da sua região - é de Vila Viçosa, Alentejo - a deixá-lo trabalhar lá: “Percebi que gostava muito de ouvir as pessoas, de ouvir histórias”. 

Seguiu para jornalismo no Politécnico de Portalegre, veio para Lisboa para um mestrado na FCSH da Nova, fez estágio curricular no Público e mais outro no DN, a partir de janeiro de 2022. Convidado a ficar com contratos a prazo, teve em outubro de 2023 uma proposta de outro lado mas, ante uma contra-proposta do DN, recusou. Agora viu-se a um triz de, vivendo em Lisboa num T1 que os pais pagam com esforço, não conseguir pagar a conta da luz: “Quando caiu o salário de dezembro fui a correr pagá-la, o prazo era até ao dia seguinte. A sorte é que sou muito poupadinho. Fiz anos há pouco tempo e ainda tinha os presentes das avós, ajudaram nesta situação.” 

E se gosta tanto do que faz que “não me vejo a fazer outra coisa”, espera que “a crise na GMG e noutras publicações como a Visão [que também esteve com o salário de dezembro em atraso] e afins lance uma discussão sobre as condições em que se faz jornalismo, a precariedade, os baixos salários. E também sobre novas formas de financiar este trabalho. Não creio que haja uma bala de prata, mas é preciso pensar sobre isto, encontrar soluções. Acho que deve ser quase um setor de mecenato.”

31 anos à frente na vida e no jornalismo, Alexandra Tavares Teles partilha o desconsolo. “Gostava de ter um patrão que gostasse de jornalismo. Que gostasse de jornais. Acho que as pessoas que investem na Comunicação Social têm de gostar e perceber jornalismo, entender o seu valor para a democracia e para a vida.” 

Filha de um jornalista - António TavaresTeles - e com um avô materno que escrevia nos jornais regionais, Alexandra pode dizer que seguiu uma tradição familiar (mesmo se os seus planos iniciais não passavam por aí - tirou o curso de História, “queria ser arqueóloga”). Pode até dizer que foi o jornalismo a determinar o lugar onde nasceu: os pais viviam em Moçambique quando ele foi preso devido à publicação de um artigo; a mãe, grávida, veio então para a dita “metrópole”, para Trás-os-Montes. António partiria depois para o exílio, na Bélgica, do qual só regressaria após o 25 de Abril. "Foi direto trabalhar no ministério da Comunicação Social, no Palácio Foz, dirigir uma revista chamada Correio do Povo. Andava pelo país a fazer reportagem, jornalismo neo-realista sobre a miséria.”

A "respirar jornalismo desde criança”, Alexandra só pelos 21 ou 22 se entregou ao destino. “A ausência de ficção e a renovação constante, a ideia de que no dia seguinte o jornal está a embrulhar peixe, combinam muito com a minha natureza. Tenho muita falta de imaginação, só consigo escrever sobre o que vejo e o que me dizem. Aquelas histórias de pessoas que inventam reportagens deixam-me atrapalhada. Outra coisa de que gosto no jornalismo é a ideia de deixar pontas soltas. Porque as pessoas não são redondas.”

Iniciou-se como jornalista desportiva, na Gazeta dos Desportos, passou pelo Expresso e foi fundar O Independente. “Entrei lá em dezembro de 1988 e saí em setembro de 2001. A seguir estive dois anos no subsídio de desemprego até que o João Marcelino, então diretor do Correio da Manhã, me convidou para colaborar - sempre a escrever sobre desporto.” Quando Marcelino sai do CM para dirigir o DN, em 2007, trá-la. “Comecei aqui a fazer trabalhos fora do desporto. Depois pus-me a escrever também para a Notícias Magazine [a revista dominical do DN e JN) e em 2011 passei só para a revista.” No final de 2023, com a entrada de uma nova direção no DN, regressa ao jornal. “E zás, fiquei com salários em atraso, e fiz greve, pela primeira vez na minha longuíssima carreira.” Assumindo-se, “como cristã”, “muito optimista, vejo sempre o copo meio cheio”, achou no início que “isto se ia resolver bem e depressa, mas comecei a mudar de ideias por não se ver nada à frente, por não haver ninguém a dizer ‘vão receber no dia X’”. Sendo que, acrescenta, “ao mesmo tempo também acho que é difícil acabar com um jornal como o DN. E que houve uma prova de vitalidade destas pessoas, que deram uma lição a si próprias mostrando que iam fazer tudo, não por si mas pelo jornal. Foi uma espécie de renovação, acho que nos fez muito bem.” 

As ganas, garante, sentiram-se de fora: “As mensagens que recebia de pêsames de repente passaram a ser mensagens encorajadoras e de louvor. Acho que agora é um bocado ‘tenham cuidado connosco, porque não desistimos’. Fizemos sentir que estas pessoas não são do DN, são o DN.” 

“Preferia que me pagassem, mas gosto muito”

“Há bocado perguntei à Mariana: gostas do DN? E ela respondeu: gosto muito. Preferia que me pagassem, mas gosto muito.” 

Quem fala é João Pedro Henriques, 57 anos, na profissão desde 1991 e no DN desde 2006 (depois de uma passagem anterior, de 1994 a 1996), decano da secção de política e humorista nas horas vagas (e nas outras). Rebentamos a rir. Comentamos como algo tão mau - salários em atraso - pode revelar coisas tão boas. No caso do João Pedro, “uma rede de amigos que tem sido inexcedível a apoiar-me, porque não tenho nenhuma retaguarda familiar”. E reforçar outras, como “a alegria de trabalharmos uns com os outros”, que se calhar, reflete, “tem um fator de alienação, tipo orquestra do Titanic, mas tem ajudado nesta crise. Temos tentado não tornar isto ainda mais difícil do que é”. 

Temos. Por exemplo a Mariana, Mariana de Melo Gonçalves, 24 anos, a caçula da redação, desde dezembro de 2021 no DN, primeiro num estágio não remunerado de três meses e depois, como Rui, em sucessivos contratos a termo de um ano, sempre a escrever sobre cultura - artes plásticas, literatura, música, teatro, dança. 

A Mariana que nas artes só não se dedica ao cinema (a cargo de colaboradores como Rui Pedro Tendinha e João Lopes), sendo que foi o cinema que a trouxe aqui: começou a escrever aos 14, depois de ver O Clube dos Poetas Mortos, “ainda hoje o meu filme preferido”. A Mariana que no secundário, ao ter de escolher uma área, hesitou entre Artes e Humanidades mas se decidiu pela segunda “a pensar ser jornalista, para entrevistar pessoas”. E que agora se diz “super confusa e à toa por não saber como vai ser o futuro do jornal", que em dezembro não teve sequer dinheiro para tirar o passe e recorda o aviso da coordenadora do curso de jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social: “Ninguém vai para jornalismo para ser rico”. 

Então como agora, o sonho resistiu. Mas, admite, “não tinha noção de que a situação era assim tão grave como tenho agora. No último ano da faculdade falámos de um estudo que mostrava que muitos jornalistas tinham desistido da profissão e ido para marketing, mas nunca pensei que chegasse a este ponto. Nunca pensei estar a fazer greve ao fim de dois anos de profissão. Mostra bem como está o setor. E sinto que nos outros países o jornalismo não é tão desvalorizado. Acho que em Portugal as pessoas não têm noção de que os jornalistas vivem desta forma precária. Não queria nada desistir da profissão, já tive experiências incríveis a trabalhar aqui, sinto muito orgulho pela marca que é o DN, pela história - sempre que digo que trabalho no DN as pessoas dizem ‘uau’ - e queria muito que isto continuasse. Mas quero sair de casa dos meus pais e não consigo - para pagar uma renda teria de utilizar o meu salário todo.”

As jornalistas Mariana de Melo Gonçalves e Sara Azevedo Santos (nos extremos) com Carla Lopes e Susana Rocha Alves, secretárias de redação, na concentração dos trabalhadores do DN no dia da greve. O primeiro da vida de Mariana e Sara, de 24 e 25 anos (foto do repórter da Global Imagem Reinaldo Rodrigues).

“Este país não gosta de jornalistas, como não gosta de políticos”

Comparativamente, João Pedro tem sorte. “Aos 57 anos, não sabia o que é o sufoco. Habituei-me à ideia de ter um emprego estável, com um salário garantido ao fim do mês, a fazer uma coisa que absolutamente adoro. Claro que conhecemos dezenas de jornalistas que estiveram em produtos que acabaram- eram editores de fecho e um dia foram editores de encerramento. Mas nunca estive nesta situação, de ter um problema de sobrevivência. Achei que tinha feito boas escolhas.” Hélas: “Isto também te confronta com a tua inteligência. E coloca problemas ao nível da auto-estima: que raio de jornalista sou que não consigo sair de um jornal que não paga?”

E que pode morrer. “Nada, claro, obriga a que o DN sobreviva. Mas é o título vivo mais importante da história da imprensa portuguesa. E se acabar, o pluralismo de um jornal nacional de referência fica por conta de um único jornal, o Público (o Jornal de Notícias tem uma dimensão regional que é muito cultivada pelo próprio). Títulos com o DN, o JN e a TSF são fatores de moderação na vida política, não alimentam os novos populismos do ressentimento e da raiva, têm uma utilidade. Se calhar o país dos democratas devia pensar não na rentabilidade mas na utilidade. Esta situação confronta-nos com a tristeza de haver democratas com dinheiro e fundações riquíssimas como a Gulbenkian, a Francisco Manuel dos Santos, a Oriente, que poderiam ter um papel importante para salvar o DN para efeitos do pluralismo e de moderação e não se chegam à frente. É uma tristeza ver a anomia cívica do país, este medo que é o mesmo que têm os políticos, que vem de saberem que o país não gosta de jornalistas, como não gosta de políticos. É a triste confirmação de uma suspeita, a de que este país não quer saber da democracia - só deve ter querido saber da democracia em 1974 porque havia miúdos a morrer na guerra.”

Junta-lhe outra desilusão: “A regulação da Comunicação Social é um desastre democrático. Só tem atitudes musculadas, de exigir transparência da propriedade dos meios, depois da entrada de acionistas. Também culpo o legislador, que faz um regulador sem fazer um regulador.” E os jornalistas não deviam já ter denunciado essas falhas? “Pois, quando vivemos na carne as consequências confrontamo-nos com a evidência.” 

Às vezes levamos tempo a encontrar as evidências. Foi assim com o percurso de João Pedro até ao jornalismo, também - curioso - a passar na Musgueira. “Depois de cumprir o Serviço Militar Obrigatório, tinha 20 e tal anos, estava numa esquina da vida, não sabia o que queria fazer, sabia que não queria ir para a faculdade, estava farto do ambiente escolar, de fazer cursos do Fundo Social Europeu tipo introdução à informática, e um dia um amigo disse que tinha aberto um curso de jornalistas no CENJOR (Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas). Isto em 1990/1991. Na candidatura era preciso fazer uma reportagem, e decidi fazê-la sobre o apoio social na Musgueira, porque tinha um amigo lá. Ora eu vivia em Carcavelos, ao lado de um bairro de barracas violentíssimo, o das Marianas. E fui à Musgueira e pareceu-me um bairro agradável em comparação - de pré-fabricados, calmo - e chamei-lhe ‘Musgueira Sul: o estoril dos bairros de lata’.” Ri. “Fiquei muito assustado porque um dos membros do júri, um jornalista do Expresso, o Orlando Raimundo, me disse que o título era de mau gosto. Mas lá entrei. E no fim do curso, que era de oito meses, fomos todos para redações. Fui para a Lusa, onde me puseram na secção Nacional.”

“Nenhuma IA será capaz de elencar as questões pertinentes”

Aí falhou “a grande notícia da vida” e mergulhou de cabeça no sonho. “Na altura o Nacional da Lusa incluía política, cultura, sociedade, uma série de coisas. Interessei-me por uma área que tinha pouca cobertura - Timor. E ali estava eu quando, em novembro de 1991, houve o massacre do cemitério de Santa Cruz. Estava de turno nessa noite e o Ramos-Horta [atual presidente de Timor-Leste, então porta-voz, no exílio, da resistência timorense à ocupação indonésia] ligou-me tipo meia-noite a contar tudo, mas achei que tinha de confirmar, e comecei a ligar para Timor-Leste porque tinha contactos de pessoas lá. Era um tempo sem internet nem telemóveis, não consegui falar com ninguém. E acabei 'comido' pela France Presse, que tinha uma delegação em Jakarta [capital da Indonésia] e conseguiu chegar à notícia.” 

Mesmo perdendo a "cacha", ficou agarrado ao tema que  incendiava opinião pública portuguesa “e o jornalismo tornou-se uma matéria de sonho”: “Com um ano de profissão estava a voar para a Austrália para ir apanhar o Lusitânia Expresso [o barco que em 1992, numa iniciativa da revista Forum Estudante, foi para o largo de Timor com o objetivo de sensibilizar a opinião pública internacional para a causa da ex-colónia portuguesa].” 

Incrível olhar daqui as condições dessa reportagem: “Para a RTP, tinha de ir um helicóptero apanhar um saco com as cassetes e levá-las para a Austrália para serem editadas, e depois de lá mandar as imagens para Portugal”. Pausa para gargalhada. “Eu levei um telefone por satélite partilhado com a equipa da Antena 1, que não o largava. A certa altura lá consegui sequestrar o telefone e ditar um texto. Quando ao fim de duas noites o barco aportou em Darwin [na Austrália], saí a correr para uma cabine telefónica ligar collect call para ditar a reportagem.”

Malgrado essa experiência épica,  prefere a adrenalina, o caminhar no arame da notícia diária. “Acho que sou bom em reportagem, mas do que gosto mesmo é do jornalismo de mastigar e deitar fora, fazer e seguir em frente. E não sei se esse jornalismo tem muito futuro. Acho que o jornalismo tenderá a ser mais autoral e menos de breaking news, por estarmos no início da revolução da Inteligência Artificial [IA]”.

Ricardo Simões Ferreira, 52 anos, no DN desde 2009, sempre na área digital - o chamado online, o site do jornal - tende a concordar: “Vejo a informação em dois momentos: o do breaking [o dar a notícia na hora] e o do jornalismo explicativo. A IA pode, desde que baseando-se em informação credível, fazer o primeiro, aqueles dois parágrafos que se põem no site quando a notícia surge. Mas o jornalismo é antes de mais fazer perguntas, e nenhuma inteligência artificial vai ser capaz de elencar as questões pertinentes. Além de ser também um ato de criatividade: é preciso escolher o ângulo; é a escolha do ângulo que faz o jornalismo.”

Porque, obviamente, a realidade é a perceção que temos dela, e a perceção é sempre uma construção. Se - em princípio - é incontroverso se num dado instante chove ou faz sol, o mesmo discurso pode, para duas pessoas, dar origem a relatos muito diferentes, atribuindo-lhe muita importância ou nenhuma, destacando frases e ideias diversas. E isso sem que nenhuma dessas pessoas esteja a falsear ou a mentir.

 

“Para falarmos foi preciso chegarmos ao limite dos limites”

E essa diversidade, essas traduções distintas - desde que honestas, seguindo as regras e a ética jornalísticas - da realidade fazem falta, crê Ricardo: “O negócio dos jornais está lixado, mas o jornalismo é necessário”.

Parte do trabalho dele, como editor com o pelouro do online, é convencer as pessoas disso - de que o jornalismo lhes interessa e faz falta. “Coordeno o online. Não há nenhum conteúdo que entre no site do DN e no Facebook do jornal que não passe por mim; tenho de, usando critérios jornalísticos, hierarquizar o site. Temos de aproveitar as plataformas que existem para chegar às pessoas. Porque elas não vêm atrás de nós, esperam que o título vá ter com elas, que a info lhes seja dada às colheres. Parte do trabalho dos jornalistas é fazer isso para os seus leitores: escolher o melhor ângulo, o melhor título, melhor foto e a melhor plataforma.”

Atrair leitores: certo. O problema maior, como se sabe, é que “em Portugal há uma coisa que é um problema para todos os títulos: ninguém quer pagar pela informação. Porque não acham que valha a pena pagar, e porque é a noção de que se trata de um serviço básico, a que têm direito. Foram anos e anos em que se teve informação de borla nos sites dos jornais.”

A grande crise atual do jornalismo surge daí, disso que Ricardo resume numa analogia. “É como os esgotos, toda a gente acha que são importantes e devem existir, mas ninguém quer pagar por eles.” Essa recusa, aliada ao esmagamento causado pelas grandes plataformas digitais, que “usam” os conteúdos jornalísticos sem pagar, criou a tempestade perfeita. Uma tempestade na qual Ricardo, que partilha vida com Adelaide Cabral, revisora do jornal, tenta manter-se à tona. Perguntado como, enrouquece. “Neste momento sinto-me a roubar o meu irmão. Ele tem autismo profundo e está institucionalizado. Felizmente tem meios próprios para pagar as despesas e um fundo de maneio para emergências. E eu, que sou o responsável por ele, tive de ir lá retirar o valor do meu ordenado. Nem cheguei a tirar o da Adelaide, porque cortámos o suficiente para viver com a minha parte. Claro que reporei até ao último cêntimo, mas é uma sensação horrível.”

Recebido o salário de dezembro - fez questão de que ficasse aqui dito -, já devolveu o dinheiro ao irmão. Mas a "sensação horrível", “misto de depressão e revolta, aquela coisa de não poder fazer nada a não ser procurar outro emprego, mas não ir por querer que o DN se salve”, permanece. E merece, acha, ser comunicada. “Como jornalista considero uma história noticiável, um trabalho importante: quem são estas pessoas a quem não pagam o salário e como estão a viver. Há este hábito de falar de empresas como se não tivessem pessoas lá dentro, e pessoas que mandam nelas. Os jornalistas são pessoas, e inevitavelmente estamos a lidar com as dificuldades de pessoas a quem não pagam o ordenado.”

Acabada de chegar à profissão, Sara Azevedo Santos concorda. “Uma peça destas no jornal é estranha, no sentido em que as pessoas vão ler e saber estas coisas sobre nós, que o fazemos. Mas quando há problemas nos outros setores - educação, saúde, etc -, vamos falar com as pessoas. Nunca falamos de nós e isso faz zero sentido. Aliás mesmo para falar sobre esta situação da Global Media foi preciso as pessoas chegarem ao limite dos limites. Isso também acaba por contribuir para o desgaste da classe: os jornalistas interiorizam demasiado os seus problemas.”

O jornalista Vitor Moita Cordeiro ergue uma tshirt com o logo clássico do DN em frente ao parlamento, na manhã de 10 de janeiro. Foto de Reinaldo Rodrigues, jornalista da Global Imagens, também ele em greve.

“O fim de um jornal deve ser uma coisa muito triste”

Aos 25 anos, no seu primeiro trabalho - como Mariana, entrou no DN em 2021, para um estágio curricular, voltou para um estágio profissional e ficou em sucessivos contratos a termo -, Sara não esperava passar a vida em plenários, a reagir a comunicados da administração, a votar em greves e suspensões de contrato, a debater “formas de luta”. “Ninguém me disse que isto era assim. Que se há problemas entre os acionistas [refere o conflito público entre o representante do World Opportunity Fund, José Paulo Fafe, e um grupo de acionistas encabeçado por Marco Galinha, do Grupo Bel] são os trabalhadores a ser postos em causa. É tudo completamente surreal.” 

Mesmo se a ideia de que o jornalismo deixou de ser uma profissão atrativa lhe foi óbvia quando percebeu que das “150 pessoas que havia na minha turma da Universidade Católica só umas quatro ou cinco escolheram jornalismo”, estava, no precioso tempo que é o de todos os começos, encantada. “Tenho gostado muito de trabalhar no DN. Em miúda, quando passava no edifício do jornal, na Avenida da Liberdade, dizia ‘olha o DN’. Os grandes jornais portugueses para mim sempre foram o DN e o Expresso. E tenho uma tia em Cabo Verde - a família da minha mãe é de lá - que era jornalista e foi correspondente do DN. A minha mãe conta que quando a irmã acabava o texto era ela, mais nova, que ia a correr para os Correios entregá-lo para mandarem o telex.” Ri. “Poder trabalhar aqui, num jornal tão importante para Portugal, é um pouco um full circle moment [regressar ao lugar de onde se partiu, onde se pertence] para mim.”

Até porque, tendo experimentado, num estágio na RTP,  trabalhar em TV - geralmente, pelo apelo do estrelato, o sonho de quem hoje quer ser jornalista -, decidiu que prefere o jornalismo escrito, apesar de saber que “trabalhar na imprensa escrita não é muito valorizado”: “Gosto muito porque é uma forma de falarmos sobre o mundo, de nos expressarmos sobre o mundo, sem nos expormos. Acho que consegue de algum modo cimentar os temas na cabeça das pessoas de modo a pensarem sobre as coisas, ainda traz tanta coisa ao debate da sociedade. E percebi que pode ser muito criativo, foi uma das coisas que mais me surpreendeu, a possibilidade de nos podermos libertar daquela coisa de pôr ‘o quê, quem, onde, quando’ logo no início dos textos.”

Infelizmente, há cada vez menos gente a querer pagar para ler a espécie de organização da desorganização do mundo - mesmo que seja, precisamente, para mostrar que é desorganizado, que aquilo que se julga simples é complexo, que o que se julgava entender é afinal incognoscível - que o jornalismo é. “Lembro-me de que quando era criança o meu pai comprava o Expresso todas as semanas. Deixou de comprar em papel e também não assina  digital. Há aqueles grupos do whatsapp de partilha, e as pessoas leem assim - estou sempre a dizer ao meu pai que não pode fazer isso. A internet democratizou as notícias mas também fez com que as pessoas pensassem que podiam tê-las de graça.”

Não é fácil ser uma jovem jornalista em 2024. Não é fácil encontrar um caminho para o jornalismo, para o DN, nestes tempos difíceis. “Há um sentimento de quase fim” diz Sara, voz pesada. “O fim de um jornal deve ser uma coisa muito triste.”

“O que quis fazer desde sempre não é assim tão bom para a minha vida”

Deve. Sobretudo um jornal tão antigo, com tanta história e histórias. Por exemplo esta, de Vitor Moita Cordeiro, aqui desde 2023: “A minha mãe nasceu em Coimbra em 1947, e veio para Lisboa com cinco anos, para casa de uma tia. Essa tia era casada com um senhor chamado António Júlio do Nascimento, que era gémeo do DN.” Ao espanto deste lado, Vitor responde:  “Nasceu no exato dia, 29 de dezembro de 1864, em que o jornal saiu pela primeira vez. A minha mãe cuidou dele até ele morrer, com 102 anos, e falou-me disso sempre. Nunca fui místico mas quando no ano passado a Rosália Amorim [anterior diretora do DN] me convidou, fiquei contente, achei que fazia sentido. Porque o DN fez sempre parte da minha vida.”

E assim veio do Correio da Manhã, onde desde 2021 “fazia” (como dizemos no jargão jornalístico) política e economia, e onde, assume, “estava bem, tranquilo, no quadro”. E onde há, assegura, “pessoas que me ensinaram coisas muito interessantes”, até porque “dos diários é o que está menos condenado - é feito para chegar às pessoas, tudo muito sintetizado. As pessoas que não leem e não têm o hábito de comprar jornais compram o CM. Claro que o DN consegue fazer as coisas de outra forma, com textos mais longos e explicativos, é mais apaziguador. Mas no CM nunca tive um ordenado em atraso. Nunca tive medo de não ser pago ao fim do mês.”  

O pior desse medo é, diz, “não saber quanto tempo vai durar. Uma pessoa ir trabalhar todos os dias sem saber se vai receber por esse trabalho.” Até porque “há precedentes: no Diário Económico, por exemplo, houve quem trabalhasse meses e meses assim. E um dia acabou e pronto, nunca mais viram esses salários”. 

A incerteza é tanto mais atormentadora quando, órfão há três anos e sem mais família, este jornalista de 45 anos só pode contar com os amigos. “Houve logo vários, até distantes, com quem não falava há algum tempo, a perguntar se precisava de dinheiro. O que marca também uma fragilidade: toda a gente do país sabe isso, que não estou a ser pago.” Mas é bom saber que há quem esteja a postos no caso de suceder o pior: “Creio que não ficaria sem-abrigo se deixasse de conseguir cumprir com as prestações da casa.”

O condicional é uma defesa: janeiro já acabou e nada de salário. Por isso mesmo, Vitor passou ao downsizing: “Achei que tinha de tomar medidas. A primeira coisa que cortei foi a natação, 27 euros por mês. Também cortei os 40 euros que pagava pelo estacionamento do carro ao pé do jornal. E obviamente que não jantei fora uma única vez desde que isto começou.” Faz silêncio. “É um jogo mental do qual ainda não recuperei. É que já fiz muitas coisas e nunca passei por uma situação assim. Olhando para o passado, e comparando, percebi que é muito pior ser jornalista do que outra coisa qualquer - fui operador de call center, por exemplo, e ganhei mais do que ganho aqui, trabalhei como músico [toca gaita de foles e flautas barrocas, procurem-no no Youtube], fiz produção em TV, assessoria de imprensa. Sempre quis, para aí desde os 11 anos, muito por influência da banda desenhada - há vários super-heróis jornalistas, o Super Homem, o Homem Aranha -, ser jornalista. Contar às pessoas histórias sobre pessoas, escrever bem, organizar o pensamento. Mas percebi que isto que quis ser toda a vida não é assim tão bom para a minha vida.” 

Não apenas por pagar mal ou pelo risco de não receber de todo, também “pelas horas intermináveis, por ser um trabalho do qual não se sai realmente. Não conheço ninguém que deixe de ser jornalista ao fim de semana, que consiga desligar.”

Não, de facto, é tudo menos um emprego de horários certos. E quanto mais se gosta, quanto mais se investe e se acredita, mais faz sofrer. Porque de cada vez, a cada texto, a cada reportagem - esta, por exemplo, e mais ainda por ser esta - tememos falhar, não entender, não ser rigorosos, não fazer justiça. Não passar o testemunho, a respiração, a vida. Não conseguir chegar aí - a quem lê. 

A cada vez, sempre em corrida com o tempo e os nossos limites, falhar um pouco melhor. Mesmo se sabemos, como diz Vitor, em cadência pausada, densa, que “temos o direito de viver, e viver bem, não é estar sempre a trabalhar”.

Mas, lá está, é uma missão. Um sentido, uma militância. E também este amor estranho, visceral, a um título, a um jornal, como se nos estivesse prometido e nós a ele, e a sua sobrevivência fosse a nossa e do mundo, dependendo de nós. 

“Quando o DN nasceu, na revolução industrial, o mundo estava a mudar para uma coisa que ninguém sabia que ia acontecer ou como. O futuro trouxe não só a máquina a vapor mas também os direitos dos trabalhadores, o horário de oito horas…” Vitor toma balanço, como quem procura esperança num passado de 159 anos, nesse percurso da monarquia para a República, para a ditadura e para a democracia, para o intenso agora. Um caminho da suprema desigualdade para um país que se esforça por ser igual, de todas as censuras instituídas para o tempo mais livre de todos os até agora conhecidos, para o quinquagésimo aniversário do dia que fez isso tudo possível, que nos fez possíveis. 

Um caminho que, sente Vitor, nos obriga: “E agora vejo o fim iminente desta publicação comigo próprio. E não quero isso. Gostaria que este jornal não morresse nas minhas mãos.”