Prova de Vida
01 setembro 2024 às 00h56
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Marco Paulo: maravilhoso coração  

Quando se pesquisa e garimpa o seu nome por essa Internet fora, o que o Google nos devolve são coisas aterradoras – “Marco Paulo Cancro”, “Marco Paulo Idade” ou “Marco Paulo Esposa” –, como se pudéssemos resumir àqueles tópicos sinistros a existência terrena, de resto enternecedora e belíssima, de um dos mais populares cantores portugueses, com mais de cinco milhões de discos vendidos, que viu a luz em Mourão aos 21 de Janeiro de 1945 com o nome de baptismo João Simão da Silva e que se mantém celibatário ao fim de 79 anos,  mais recentemente marcados pela ocorrência de sucessivos tumores malignos: no abdómen, na mama, no pulmão e agora no fígado (além de uma grave falha renal em 2017).  

Um prodígio de sobrevivência, está visto, mas que não começou ontem nem hoje, bem longe disso, e que pode ser datado inclusive até à mais tenra infância, mormente ao momento em que o Joãozinho, como assim era chamado, quase ia morrendo afogado num tanque de água bem fundo, desses de lavar a roupa, valendo-lhe nesse transe, como em muitos outros da sua vida, a acção salvífica da sua mãe sempre querida, Maria Isabel Simão Caeiro, que o resgatou de um fim mais que certo: com infinito desvelo, Isabel tirou-o do tanque fundo, virou-o de barriga para baixo e fê-lo regurgitar as muitas águas que tinha ingerido, num arrepiante episódio que o astro de “Mais e Mais Amor” recorda da seguinte forma: “O que eu sei é que se a minha mãe não estivesse ali presente e não me tivesse socorrido naquele dia, a história de Marco Paulo nunca teria existido.”   

João tinha então seis anitos e tudo isto se passou em Celorico de Basto, terra onde deu o seu primeiro beijo, o qual teve por obscuro objecto do desejo uma menina da sua idade de que hoje nem sequer recorda o nome, mas que lembra ser “muito bonitinha, de cabelo louro, que de vez em quando ia lá a casa.” E o afogamento e o beijo ocorreram em Celorico porque era lá que o seu pai, João Marques e Silva, um austero funcionário das finanças, havia sido colocado, mas, como estamos a embrulhar um pouco a história, convém remontar às primícias ou, como diria Maquiavel, ridurre ai principii, no caso ao Baile das Pinhas, anualmente realizado na Aldeia da Luz, hoje também afogada, pois foi aí e então que Maria Isabel, moça de invulgar beleza, que antes trabalhara no campo, na monda e na apanha da azeitona, mas que agora servia como dama de companhia numa casa de gente abastada, conheceu o rapaz João, que era beirão de Manteigas e filho de um cabo da GNR colocado além-Tejo. Nessa noite quente de Verão, com a abóboda lá no alto toda cravejada de estrelas, Maria Isabel bailou quanto pôde com aquele rapaz bem-falante, com fama de namoradeiro e, rezam as crónicas, muito disputado pelo mulherio campesino. Conversaram-se, namoraram, casaram anos depois, tiveram quatro rebentos, floridos por esta ordem: Ernesto, Fátima, João e Alfredo. Com os dois primeiros, João conviveu pouco, já que Ernesto era seis anos mais velho do que ele, e Fátima, quatro anos mais velha, estava a viver em Lisboa com a avó paterna, por umas questões de saúde que aconselhavam, por indicação médica, que tomasse banhos de sol e andasse com os pés na água do mar.  

Estamos, portanto, em Janeiro de 1945, poucos meses antes do findar da Guerra Mundial, e a família vivia numa casa humilde, de divisões acanhadas e terra batida, naturalmente sem luz eléctrica. Tem o cantor o projecto de a converter em museu, com as receitas das entradas a serem usadas para ajudar “as crianças com cancro que vivem na província”, informou o Marco à revista Nova Gente (cf. “A Televisão”, de 11/4/2024). Fomos, como é óbvio, compulsar as actas das reuniões camarárias mouranenses, disponíveis em linha, e, efectivamente, aos dias 20 de Março de 2023, pelas 10 da manhã, na Sala de Sessões dos Paços do Município, na presença do presidente João Fernandes Fontes e da vice-presidente Maria Luísa Poupinha Ralo, entre outras individualidades, além do protocolo com a Clínica Sorriso Vaidoso, cremos que em matéria de ortodontia, e além da questão do escoamento das águas dos polibans nos sanitários do Lar da Granja, ventilou-se a visita efectuada, no dia 13 desse mês, “à casa do cantor Marco Paulo na sequência das declarações que o mesmo proferiu à imprensa sobre a intenção de ter um museu. Manifestou a disponibilidade do Município no sentido de arranjar um espaço para o seu acervo, sendo que caso tal iniciativa se concretize fique salvaguardada a hipótese da receita a angariar ser destinada a uma instituição que se dedique ao acompanhamento de crianças que sofram de doenças oncológicas.”   

Foi nessa casa que Marco Paulo viveu até aos cinco anos de vida, uma infância feliz e humilde, marcada pelo racionamento e pela carência de bens essenciais. João/Marco nasceu em casa, como era costume naquele tempo, com o auxílio de duas parteiras vizinhas, uma das quais ainda chegou a conhecer. À época, o seu pai, que antes estivera empregado numa farmácia, trabalhava já nas finanças, mas o ordenado mal chegava para alimentar quatro filhos. João só viu uma mesa farta, com bolos e uma garrafa de vinho do Porto, no dia do seu baptizado, que teve lugar na Matriz da Nossa Senhora das Candeias, sendo o padrinho “o sobrinho de um casal vizinho, com que eu costumava almoçar e passear de charrete várias vezes” e a madrinha “uma jovem espanhola muito bonita”, amiga de casa, natural de Vila Nueva del Fresno, lê-se na bela biografia Marco Paulo. Palco, Amores e Fé. As Histórias Nunca Contadas, da autoria de Miguel Azevedo (Cofina Media Books, 2019).     

Como era Portugal: Marco Paulo conta-nos que, em criança, sempre que podia, escapulia-se até à escola do irmão mais velho na esperança de que algum menino tivesse faltado às aulas, o que lhe dava o direito a ficar com o pão com manteiga e o copo de leite destinados ao faltoso. Na casa dos seus pais, era raro beberem leite, o que ainda hoje não impede o cantor de “Taras e Manias” de considerar ter tido “muita sorte em nascer naquele meio” e de ter “um orgulho enorme em dizer que as minhas raízes estão ali.” As mulheres do campo trabalhavam de sol a sol, 12 a 14 horas por dia, “a maior parte das vezes mal alimentadas, apenas com pão, azeitonas, chouriço e toucinho.” Porém, acrescenta, “parecia que andavam sempre felizes”, pelo menos aos olhos de uma criança pequena, que as via e ouvia enquanto iam e vinham do trabalho a cantar em coro ou ao desafio: “Quando o sol se punha, lá regressavam elas a casa para tomarem conta dos filhos e fazerem o jantar. E, uma vez mais, voltavam a cantar.” Noutras ocasiões, João ia brincar para as eiras, onde, de novo, grupos de mulheres e homens cantavam entre si, sem se aperceberem que, com isso, contribuíam para a formação musical de um dos mais populares cantores portugueses do século XX (e, já agora, do primeiro quartel deste XXI).   

Mourão é hoje uma lembrança remota, uma terra onde Marco Paulo deixou poucas amizades, desde logo porque, ao contrário do irmão mais velho, não frequentou a escola da terra e, por isso, não tem hoje colegas daquele tempo. Ainda assim, sempre que lá vai faz questão de ir à Igreja da Nossa Senhora das Candeias, onde cumpre dois rituais: benzer-se à entrada, por um lado, e, por outro, espreitar a pia baptismal onde foi iniciado na fé que ainda hoje mantém, sem dramas nem sobressaltos.  

A profissão do pai levá-lo-ia a ter uma vida itinerante desde muito novo: quando tinha cinco anos, a família mudou-se para Alcabideche, depois para Arcos de Valdevez e a seguir para Celorico de Basto. Uma vez mais, onde outros veriam um infortúnio nesta constante errância, Marco Paulo, sempre luminoso, sempre radioso, encara-a como o factor-chave da sua trajectória artística: “Se não fosse a profissão do meu pai, que nos permitiu andar pelo país, se calhar ainda estaria em Mourão a trabalhar numa farmácia ou num escritório qualquer. Não seria a pessoa que sou hoje e não seria, certamente, um homem feliz.” Caso para dizer: maravilhoso coração, maravilhoso.   

Maravilhoso é também outro episódio: muitos anos volvidos, quando já era uma estrela cintilante no firmamento musical nacional, Marco Paulo foi visitar a Pensão Central, em Arcos de Valdevez, onde a sua família se instalou durante alguns meses após terem chegado àquela localidade. Os donos da Pensão Central nem queriam acreditar quando lhes disse que, em miúdo, passara lá uma boa temporada, da qual guarda, como sempre, excelsas recordações. Foi em Arco de Valdevez, aliás, que o seu pai comprou um aparelho de rádio, daqueles monumentais, colocados em lugar de honra em todas as salas de estar. Qual ersatz das lareiras de outrora, era em torno dele – e dos seus botões para ondas médias ou curtas – que a família Silva se reunia nas noites de Natal, para ouvir, em absoluto silêncio, a transmissão radiofónica da Missa do Galo. Nessa ocasião, cada um dos filhos tinha na mão um santinho de papel, que Maria Isabel guardava religiosamente numa gaveta, para distribuir pela prole na Noite Santa. O patriarca, ao que parece, era protestante, o que não o impediu de tentar que João entrasse no seminário, desde logo para o desviar de uma vocação musical que ia despontando aos poucos, nos intervalos das transmissões das missas, quando a futura voz de “Morena, morenita” aproveitava a distração dos adultos para ouvir, enlevado, os fados e as canções de Maria de Fátima Bravo, Maria José Valério e Tristão da Silva. Mais tarde, seria também no rádio de família, que um dia a mãe lhe ofereceu, que escutou as emissões trissemanais do programa “Voz da Liberdade”, feitas a partir de Argel, narradas por outra garganta famosa, Manuel Alegre. Ao tempo, porém, era pouco ou nada politizado, característica que em larga medida se mantém, naquela que constitui outra prova, mais uma, da sensatez e do bom gosto do artista que conhecemos por Marco Paulo, na infância alimentado a sopas de cavalo cansado, pelo menos no tempo em que a sua família residiu em Celorico, por sinal numa casa que ficava por cima de uma adega. O dono desta adorava ver aquele miúdo a cantarolar e, em sinal de gratidão, presenteava-o com uma mistela revigorante de broa de milho, vinho e açúcar, ainda hoje recordada: “Eu sabia que aquilo que me davam para comer tinha vinho, e de vez em quando é possível que me tenha sentido um pouco zonzo, mas os mais velhos diziam que aquelas sopas nos davam força, saúde e ajudavam a crescer.”  

Foi em Celorico que, como vimos, João deu o seu primeiro beijo, fugacíssimo, e teve uma experiência de quase-morte, da qual foi resgatado in extremis por Isabel, sempre ela. Foi também em Celorico que, segundo diz, passou as Páscoas e os Natais mais felizes da sua vida, ainda que sem brinquedos ou guloseimas, ainda que sem a camioneta de cor vermelha com que sonhou anos a fio, para descobrir, nas manhãs do dia 25 de Dezembro, que no sapatinho estava tão-só um par de meias, ou umas calças, uma camisa ou uma camisola, que ademais tinham de durar um ano inteiro. Facto que, todavia, e como sempre, que não lhe deixou mágoas nem ressentimentos, muito pelo contrário: “é verdade que não existiam brinquedos, mas isso nem era o mais importante para nós. O dia de Natal nunca deixou de ser especial. Era uma alegria quando chegava a hora de nos levantarmos de manhã. Eu e os meus irmãos saltávamos da cama a correr para ver quem chegava primeiro ao sapatinho. (…) Nunca tive brinquedos, porque embora o meu pai fosse funcionário público não era muito bem pago. A minha mãe era doméstica e tínhamos de governar a casa muito bem. Não havia luxos.”        

Em 1952, nova mudança, desta feita para Alenquer, primeiro na zona da Vila Alta, numa moradia com quintal, depois para a Vila Baixa, para o quarto andar daquele que era, à data, o prédio mais alto do município, orgulho dos Silva: “fomos nós que o inaugurámos e lembro-me que aquilo foi como que um grande acontecimento para toda a família.” Família agora alargada, porquanto a irmã regressou novamente ao seio do clã, após ter vivido anos na casa dos avós paternos, à Rua Gervásio Lobato, Campo de Ourique.  

Em Alenquer, João fez a instrução primária, numa escola só para rapazes, como era timbre do tempo. Não foi aluno brilhante, pecha que justifica por um motivo auditivo: “Por ser muito distraído, as coisas entravam-me num ouvido e saíam-me por outro. Por isso, de manhã não tinha vontade nenhuma de sair de casa para ir estudar. Era um enorme sacrifício”, tormento adensado pelas sevícias que levou no lombo e que ainda hoje guarda no espírito: “Ainda me lembro das muitas reguadas que levei. No Verão eram mais fáceis de suportar, mas no Inverno doíam-me muito por causa do frio. Com as mãos geladas sentia-se mais o impacto.”          

João acabaria por aprender a ler e a escrever com uma senhora vizinha, casada com um colega do pai, que vivia duas casas abaixo da sua. Foi com ela e com o marido, e com os dois filhos do casal, o Tozé e a Leninha, que passaria muitas das suas férias, nomeadamente em Porto de Mós, conta-nos o seu biógrafo Miguel Azevedo. Já em matéria escolar, desistiu no final da 4.ª classe, por causa das matemáticas e pese a insistência do pai para que prosseguisse os estudos. A cabeça, porém, andava nas nuvens, a ver os aviões da Base da Ota (chegou a sonhar ser piloto), ou perdida nas canções de Maria José Valério ou Tristão da Silva, que amava cantarolar nos intervalos das aulas ou nos aniversários dos coleguinhas.  

Passado o sonho da aeronáutica, teve ganas de ser toureiro, imagine-se, talvez porque os pais o levavam muito a Vila Franca, terra de grande afición. Nas memórias desse tempo, outro episódio animalesco, mais precisamente uma ida da família ao Jardim Zoológico de Lisboa. Na véspera, uma algazarra: João nem dormiu, ante a perspectiva de conhecer bichos raros, como ele; e a mãe, de seu lado, passou a noite acordada a confeccionar o farnel da família Silva. No caminho, ainda longo, João veio colado ao vidro da viatura, extasiado ante um mundo novo: “Achei aquilo deslumbrante. Foi um momento muito diferente para nós crianças, até porque não tínhamos acesso a muita coisa. O mundo era totalmente desconhecido.”  

De facto, o mais exótico a que Alenquer dava acesso eram os filmes do Joselito, muitas vezes vistos por especial favor do funcionário do cinema, que o deixava entrar de borla já a fita ia a meio. Como é evidente, aprendeu de cor a letra e música de “El Pequeño Ruiseñor”, um dos maiores êxitos do cantor de Belas de Segura, Xaém, hoje um cavalheiro de 81 anos e que, como é sabido, chegou a ser acusado de trabalhar como mercenário em África e foi detido pela polícia de Angola por tráfico de droga e armas, acabando condenado em Espanha a cinco anos de cárcere. Pois bem, uma vez, estava João na rua com os amigos, jogando à bola e trinando músicas de Joselito, quando um dos convidados de uma boda próxima – mais precisamente, o senhor Renato, que tinha uma tipografia e que era muito amigo do seu pai – decidiu fazer uma surpresa à noiva e convidar o miúdo a cantar. João esmagou com “Campanera” (Porque ha pintao en tus ojeras/La flor de lirio real/Porque te han puesto de seda/ 
Ay, campanera, ¿por qué será?) e sucede que naquela boda estava o director do jornal A Verdade de Alenquer, ou seja um representante da mídia e estava também um tio da noiva que, não muito depois, tinha João 12 anitos, organizou as Festas do Orfanato de Alenquer. Foi lá que João Simão se estreou nos palcos, sendo o cachê nesse ensejo um arroz de cabidela e um punhado de rebuçados.  

Aos 14, foi convidado a integrar, como vocalista, o rancho folclórico de Alenquer, onde esteve dois anos e graças ao qual pôde percorrer o país inteiro, além de ter namoriscado uma das moças do grupo, naquilo que parece ter sido uma paixão efémera ou, como ele diz, “sol de pouca dura.”  

O pai de João, como vimos austero, é que não achou graça nenhuma a tanta cantoria (de resto, fazia questão, mais tarde, de nunca o ver sempre que aparecia na televisão) e, claro, impôs-lhe que trabalhasse. E João, claro, obedeceu, empregando-se numa farmácia em Santana da Carnota, a oito quilómetros de casa, o que o obrigava a acordar às seis da madrugada para apanhar a camioneta e a passar o dia num trabalho menoríssimo, a tirar rótulos de garrafas, com as mãos mergulhadas numa banheira de água gélida – e tudo isto, note-se, sem ganhar um tostão, apenas para saber quanto custava a vida, enrijecer corpo e alma.  

Nisto surgiu o destino, ou o fado, ou os deuses. Um amigo do pai convidou-o para ir até Lisboa, actuar no mítico Café Luso, ao Bairro Alto, e foi aí que se estreou na capital, cantando com “um quadro de Malhoa por detrás” e saindo pela frente debaixo de grande aplauso. Tinha 14 anos.  

Nem isso fez desarmar o pai, que, apesar de em novo ter sido músico numa filarmónica, continuou a insistir para que João arranjasse uma profissão de jeito, um emprego para a vida, longe dos fados e das cantorias. A família, entretanto, mudara-se para o Barreiro, Rua Júlio Diniz, n.º 20, e foi lá que o futuro Marco Paulo se matriculou na Escola Industrial e Comercial Alfredo da Silva, “para tirar um daqueles cursos que davam para arranjar trabalho num escritório.” A par disso, começou a trabalhar nos escritórios de uma fábrica de plásticos em Coina, propriedade de um turco. Acordava às seis, pegava às oito, saía às cinco da tarde, tinha aulas das nove até perto da meia-noite. Esteve dois anos assim, sem faltar a uma aula. Nas idas e vindas entre casa, o trabalho e a escola passava o tempo a cantar, nunca desistindo do sonho de um dia ser grande artista. Na fábrica, todos admiravam o seu talento e, um dia, recebeu um telefonema salvífico, convidando a actuar na Feira do Marítimo, fazendo a primeira parte de um espectáculo de Madalena Iglésias. Nem hesitou.  

Regressado ao Continente, largou a fábrica dos plásticos, para desespero do turco, e decerto de seu pai, e abraçou em definitivo uma carreira artística, que ao tempo já despontava em mil e uma actuações nas colectividades e bailaricos do Barreiro, da Moita, do Montijo, de Setúbal. Com o dinheiro que ganhava em Coina, pagou aulas particulares de canto, primeiro com Corina Freire, depois com a ensaiadora Bia Belo, pianista do conjunto Zé da Silva (e os leitores que nos perdoem, mas não conseguimos apurar mais nada de sobre Bia Belo ou sobre o conjunto Zé da Silva, isto apesar de termos escavado muito, muitíssimo, por essa Internet fora).           

Então, por um daqueles súbitos prodígios que trazem o maravilhoso ao mundo, houve duas conjunções astrais, ambas venusianas ou, se quiserdes, femininas: uma tia paterna inscreveu-o num concurso do Rádio Clube Português, a que João compareceu – apesar de não ter vencido, ganhou calo e certa experiência, um módico de notoriedade; por outra banda, e mais decisivamente, no final de uma das aulas com Corina Freire foi abordado por Cidália Meireles, que já ouvira falar dele que viera convidá-lo para cantar num programa que ela, ela Cidália, apresentava na RTP, intitulado “Tu Cá Tu Lá.” Perguntam agora as gerações mais recentes, as mais qualificadas de sempre, quem foi, é ou terá sido Cidália Meireles. Esclarecemos que Cidália, juntamente com as irmãs – a saber, a Rosária, ou Rosália, e a Emília, ou Mirita – formou um lendário terceto, conhecido como “Os Rouxinóis de Portugal.” Mas nada disso impediu que, num sábado aziago, o autor destas linhas tenha visto, de alma parva e coração em sangue, o espólio de uma das manas Meireles a ser esventrado, eviscerado, desmembrado e vendido ao desbarato no chão da Feira da Ladra. Onde estavam vós, autoridades? Onde estavas tu, Museu do Fado? E mesmo tu, Marco, que és Paulo, logo santo?  

É que foi ela, ela Cidália, que lhe franqueou as portas da RTP, numa performance de música ao vivo, para a qual ele, que era menor de 17 anos, teve de obter, inclusive, autorização de seu pai. Mais ainda: como João não tinha repertório, Cidália ofereceu-lhe duas músicas dela, dela Cidália, com letra de Eduardo Damas e música de Manuel Paião, autores, entre outros êxitos, de “Ó Tempo Volta para Trás”, expressão que deu mote e senha a estas “Provas de Vida”, que hoje terminam.   

A aparição televisiva no programa de Cidália Meireles abriu a João da Silva as portas da glória ou, em termos mais prosaicos, fez com que a prestigiada Valentim de Carvalho o cobiçasse para o seu catálogo, de onde constava o nome do seu ídolo maior, Amália, obviamente. Porém, antes de proceder à gravação do EP com as canções “Não Sei” (versão aportuguesada de “Vorrei”, de Alain Barrière), “O Mal às Vezes é um Bem”, “Estive Enamorado” e “Vê”, João decidiu adoptar um nome artístico, como é próprio das grandes estrelas. Na TV, Cidália apresentara-o como João Paulo, mas desistiu dessa opção, pois já havia uma banda com esse nome, o Conjunto Académico João Paulo (que começara por uma brincadeira de rapazes no Liceu Jaime Moniz, da Madeira, e que depois nos deu maravilhas como “Hully Gully do Montanhês”, “Capri C’est Fini” ou “Milena da Praia”). Assim sendo, pensou-se em Marco António, por um lado por ser uma celebridade da Roma Antiga (a biografia oficial, contudo, não explica esta paixão do João Simão pelas Antiguidades clássicas) e, por outro lado, por os seus pais terem ponderado dar-lhe esse nome, desistindo de tal intento, deveras pecaminoso, poucos dias do nascimento. Por insistência da editora, a nova identidade do cantor deveria resultar da conjugação de dois nomes, mais memorável e vendável, e, crê-se que por sugestão do próprio, escolheu-se Marco Paulo. No celeste firmamento, que antes cobrira os amores dos seus pais no Baile da Pinha, erguia-se agora uma nova estrela, cintilante como poucas. 

  E seria já com aquele nome, ou nomes, que João Simão/Marco Paulo editou o seu primeiro disco, em cuja capa aparece recostado a um Porsche 911 vermelho, propriedade de Rui Valentim de Carvalho, fotografia tirada por um funcionário dos estúdios de Paço d’Arcos e que tinha queda para tirar retratos, o senhor Belchior, e sem recurso a cabeleireiros ou maquilhadoras. Quanto ao Porsche, os mais incautos julgaram que era dele, e começaram no gozo, e ele vingar-se-ia anos mais tarde, quando pôde, comprando três Porsches de uma assentada (guarda um deles, um 944). Para os fãs da retromania: o EP “Não Sei”, uma peça histórica a vários títulos, está hoje à venda em “O Covil do Vinil” pela apetecível quantia de 10 euros, mais portes.  

Um ano depois, em 1967, Marco participou no Grande Prémio TV da Canção, o antecessor do Festival RTP da Canção. Não se saiu bem no confronto com o Duo Ouro Negro, com Eduardo Nascimento (que ganharia com “O Vento Mudou”), com António Calvário e com Maria de Lurdes Resende, ficando em último na grande final, num modesto sexto lugar, com cinco pontos.  

Fosse como fosse, o certo é que a sua carreira estava lançada e bem lançada e, nesse mesmo ano de 1967, foi convidado a gravar um disco em dueto com aquela que era já ao tempo uma monstra sagrada da canção portuguesa, Simone de Oliveira. Ao lado de Simone, em sincronia perfeita, perpetraram “Tu Só Tu”, versão do “Somethin’ Stupid” de Frank e Nancy Sinatra, mas com uma nota transformista: no ersatz lusitano, é Simone quem faz de Frank e Marco quem encarna Nancy, por razões e motivos a que só a produção saberá responder.      

Não foi esse, porém, e bem longe disso, o único pastiche de êxitos estrangeiros que Marco Paulo realizou: muito antes do mítico “Só Liguei Para Dizer Que Te Amo”, já o rouxinol de Mourão havia concretizado prodígios como “S. Francisco”, dos Mamas & the Papas, (Se tu fores a São Francisco/Leva flores no teu cabelo e uma capa piramidal), “Oh! Lady Mary” (Oh! Lady Mary / Desde o dia que te vi / Oh! Lady Mary / Eu ando louco por ti, com arrepiantes coros e outra capa assombrosa), a balada julioiglesiana “Gwendolyne” ou “Fala Amorosamente”, que é nem mais nem menos que o tema do filme “O Padrinho”, mas muito melhorado por Marco Paulo, mormente ao nível da lírica: “Fala baixinho, só nós dois/Do bem que existe em tanto amor.”         

Foi isto gravado no ano de 1973, mesmo na recta final do regime do Estado Novo. À conta deste, contudo, Marco ainda faria a tropa, e com colocação no pior dos teatros, Guiné-Bissau. Deu entrada em Beja com uma valente dor de dentes, adaptou-se aos ritmos castrenses, não se eximiu às tarefas menores, fez a faxina à parada, enquanto os altifalantes do quartel transmitiam os seus sucessos. Após 90 dias de recruta, seguiu para Leiria, onde tirou o curso de escritório, seguindo depois para Estremoz (Cavalaria) e dali para Bissau. “Eu fiz tudo para não ir. Rezi muito. Mas não resultou em nada”, diz, acrescentando o essencial: “Fiz por encarar o serviço militar com a maior naturalidade possível.” Eis o segredo de Marco: fazer das fraquezas forças, sorrir às adversidades. Um mindset que não está ao alcance de todos e é por isso que Marco só há um, mais nenhum, maior do que o de Roma, e que ademais é Paulo e nosso. 

“Na Guiné nunca tive de premir um gatilho, nem nunca andei com uma arma”, diz ele, recordando, no entanto, que, numa brincadeira muito estúpida, um camarada disparou sobre ele, com a bala a rasar ou raspar a cabeça, deixando sequelas que perduram até hoje. Além do trabalho de escriturário, os 18 meses na Guiné foram passados a animar as messes de oficiais, festas de Natal ou Páscoa, hospitais de campanha. Mais do que morrer em combate, apavorava-o que a Valentim de Carvalho se esquecesse dele, o que não aconteceu: da metrópole, Mário Martins mandava-lhe as canções e as letras para que Marco as ensaiasse e, depois, as gravasse mais rapidamente quando viesse a casa. Terminado o serviço militar, retomou a carreira artística e as digressões pelo país e pelo estrangeiro.  

O 25 de Abril apanhou-o no Canadá, onde se encontrava em tournée. “No início ninguém percebeu bem o que estava a acontecer. Estava a confusão instalada”, recorda, como recorda também que, no rescaldo da revolução, esteve um ano sem actuar em palco. À semelhança de outros, recorreu a um circuito alternativo – a que, aliás, já estava ligado, v.g. ao Circo Mariano –, o dos espectáculos circenses, tendo actuado no Circo Brasil, no Circo Mexicano e, claro, no Mariano, onde, com a indumentária da praxe – fato branco, calças à boca de sino, botas brancas – chegou a actuar três vezes na jaula dos leões, com as salas esgotadas por espectadores que, diz ele, estavam ansiosos por verem-no ser devorado vivo.  

Em 1978, conquistou o seu primeiro disco de ouro com o single “Canção Proibida/Ninguém Ninguém”, 85 mil cópias vendidas (“Ninguém, ninguém/Poderá mudar o mundo/Ninguém, ninguém/É mais forte que o amor”). No ano seguinte, novo disco de ouro com “Mulher Sentimental” e, em 1980, o grande estrondo e arraso, “Eu Tenho Dois Amores”, versão de “Petra”, do grego Giorgos Hatzinasios, com 195 mil discos vendidos. A seguir, uma cornucópia de sucessos, como “Mais e Mais Amor” (1981), “Anita” (“É linda de blue-jeans e blusão de cetim”, versão de outro sucesso de outro grego, Costa Cordalis), “Morena Morenita” (“Morena, oh morenita/Cada dia tu estás/Sempre mais bonita”), “Só Falei Para Dizer Que te Amo”, “Joana”, “Sempre Que Brilha o Sol”, “Taras e Manias” (“Uma lady na mesa/Uma louca na cama”, obviamente proibido na Rádio Renascença).  

Para termos uma ideia da coisa, nada como a estatística: Marco Paulo arrecadou até hoje 140 discos de platina, ouro e prata e até um disco de platina e já vendeu mais de cinco milhões de discos, o que significa que um em cada dois portugueses tem um disco de Marco Paulo em casa. Números um pouco longe de Amália Rodrigues (30 milhões), Roberto Leal (entre 15 e 25 milhões), Linda de Suza (8 milhões) e Jorge Ferreira (6 milhões), mas ainda assim assaz expressivos, para não dizer fantásticos.  

Os números, todavia, não dizem tudo. E o que falta dizer, pois ainda nem foi estudado, é o papel histórico extraordinário, absolutamente extraordinário, que Marco Paulo e outros como ele tiveram para a reconstrução e a reconciliação nacional de meados/finais dos anos 70, princípios dos anos 80, passados que foram os tempos em que o país esteve dividido ao meio, com fronteira em Rio Maior e uma guerra civil no horizonte. Depois, foi necessário serenar os ânimos, fazer as pazes, congraçar irmãos desavindos, tarefa que só em parte competiu aos políticos e aos partidos, e que em larga medida foi desempenhada por coisas como a cultura popular de massas, eventos desportivos, novos padrões e hábitos de consumo. Quanto ao papel exercido por Marco Paulo, um artista que sempre se mostrou distante da política e equidistante de esquerdas e de direitas, bastará lembrar que, no ano escaldante de 1975, com o país mergulhado no PREC, lançou um disco intitulado “O Mais Feliz do Mundo.” A sua transbordante joie de vivre, o seu espírito luminoso, solar, o seu romantismo exacerbado, a sua aura de bom rapaz, de genro com que toda a mãe sonhava, foram e são elementos que irradiam o bem e a concórdia, o amor ao mundo e aos outros. Os que desdenham o seu “pirosismo” e o seu ar delicodoce, os que o confundem com o estilo “pimba” que lhe sucedeu, prenhe de brejeiradas e abomináveis alarvidades, deveriam fazer a pergunta crucial, a mais crucial de todas: ficou o mundo melhor ou pior à passagem de João Simão?       

Repare-se que até os seus dois principais ademanes – o microfone a bailar de mão em mão e os fartos caracolinhos – surgiram espontaneamente, naturalmente, não por um plano orquestrado ou por uma imposição do marketing. Quanto ao microfone, Marco diz que “aconteceu”, sem mais, que costumou a adoptá-lo para se distrair do enfado de cantar “Eu Tenho Dois Amores”, música que não aprecia particularmente, e que o público apreciava o número do microfone, sempre na mira, mui portuguesa, de o ver deixá-lo cair ao chão, o que garante só ter sucedido em duas ocasiões: uma em Viseu, na Feira de São Mateus, e a outro no Rio, no programa de Flávio Cavalcanti, em directo para milhões de espectadores. Já os caracolitos, que nos tempos áureos chegaram a atingir as dimensões de um farto enxame de abelhas assassinas, fazendo-o parecer um ursito de peluche, assevera que surgiram por acaso: quando estava a fazer espectáculos no Porto e vivia em Gaia, um dia precisou de sair às pressas de casa, indo para a rua de cabelo molhado, que depois, por um suave milagre, revolteou, encarapinhou, caracolou, ensandeceu até ficar naquela forma que todos lhe conhecemos, umas vezes em bola, como um globo piloso, outras em juba ferina, artisticamente revirada na nuca. 

Durante doze anos, sensivelmente de 1980 a 1992, Marco Paulo viveu a um ritmo frenético, com mais de 30 espectáculos por mês, e tomava comprimidos para se manter acordado. De um profissionalismo extremo, nunca recusou ou desmarcou um espectáculo, a que comparecia sempre à hora marcada, pontualíssimo, mas nem isso o impediu de ser alvo de burlas e cheques carecas, até porque odiava tratar de questões de dinheiro. Ao princípio, andava num Ford Capri, depois num Citröen XM, a seguir numa Datsun Urvan, igual à que vitimou Carlos Paião, mas, no início dos anos 1990, teve de passar a deslocar-se num camião Iveco de sete toneladas, tal era a pujança dos seus espectáculos, seguidos por milhares de fãs, algumas das quais disputaram a água em que se banhara num hotel do Porto e foram responsáveis pela explosão onomástica de Marcos e de Marcos Antónios das décadas de 80 e 90. Com as suas admiradoras, manteve uma tradição bem linda, materializada num almoço anual de convívio num restaurante para os lados de Fátima.    

Ao longo de uma vastíssima carreira, já objecto de várias biografias, séries televisivas e um sem-fim de homenagens, Marco Paulo actuou em muita espelunca, até por cima de caravanas de bifanas (uma vez, na Madeira, o palco rachou, e ele caiu e magoou-se), mas também nos maiores palcos nacionais, os Coliseus de Lisboa e Porto, Campo Pequeno, Altice Arena, e até num avião, a 30 mil pés de altitude! Em 2004, no Santuário de Fátima, cantou para 100 mil peregrinos, espera-se que poupados à letra de “Taras e Manias.” E note-se que foi honrado por dois Marcelos, de dois regimes distintos: em finais dos anos 70, Caetano chegou a subir ao placo, no final de uma actuação sua no Rio de Janeiro, para lhe entregar uma medalha especialmente cunhada para a ocasião; e, em 2022, Rebelo de Sousa fê-lo comendador da Ordem do Infante.   

Solteiro e sem descendência, mas com um afilhado muito querido, o Marco António (“o filho que nunca tive”), Marco Paulo vive numa quinta perto de Sintra, rodeado de vários cães (já teve uma Zuca, uma Rita, um Eusébio, um Simão, com o seu nome, e até um Goucha) e um zoo de aves canoras, como ele – periquitos, canários, galinhas e galos, um papagaio. Adora Lisboa, Nova Iorque e os países tropicais, não gosta do Inverno, mas não é fã de praia, até por questões de privacidade. Passa horas a ver TV, fazendo zapping, e é um desastre na cozinha; em matéria alimentar, aprecia feijoada, cozido à portuguesa no tempo frio, comida alentejana de toda a espécie (ainda hoje recorda com saudade as favas de sua mãe), regada com tinto do bom, e agora adora sushi. Além de cantor, gaba-se de ser um talentoso contador de anedotas. Garante nunca ter feito uma permanente ao cabelo nem operações plásticas ao rosto e, em matéria religiosa, diz-se cristão, quiçá católico (os pais eram protestantes e a irmã Fátima, falecida em 2015, era testemunha de Jeová). De política, futebol e amores, pouco fala. De sexo, menos ainda. Mas sobre a realidade de nossos dias, deixou observações sagazes: “Eu gosto de viver, mas não gosto da forma como o mundo é governado. A desigualdade que existe é uma coisa que me perturba muito. Gosto de acordar de manhã e festejar a vida, a Primavera, o Outono, o Verão ou o Inverno, mas apenas porque isso faz parte da natureza. O que o homem faz com o mundo não me agrada.” 

 Que Me Importa Morrer, assim se intitula uma das suas canções mais velhinhas, saída em 1971. De facto, para quem tanto viveu e nos deu, de pouco importará morrer, mesmo que lhe importe, é claro, continuar a viver. A nós, porém, importa-nos muito que morra, pois João Simão da Silva, a quem chamam Marco Paulo, não tem um, nem dois, nem três ou mesmo mil, mas dez milhões de amores – os nossos.    

P.S. – Com este texto sobre Marco Paulo, termina hoje a série “Prova de Vida”, para merecido descanso dos leitores, e meu. Agradeço as extraordinárias ilustrações do Vítor Higgs e o interesse dos que acompanharam os 61 capítulos desta saga, que procurou ser um retrato a sépia, com laivos nostálgicos, do Portugal contemporâneo nas suas grandezas e misérias e, em simultâneo, uma meditação despretensiosa sobre o efémero da vida e, logo, sobre a fatuidade da vaidade e da ganância. Ao fim de 61 crónicas, que descrevem outras tantas existências terrenas, gostaria de ter mostrado que, pese as tremendas injustiças deste país e do mundo, o bem triunfa sempre (quanto mais não seja, porque os maus da fita estão condenados a conviver ad aeternum com eles próprios, ou, como já dizia Séneca, podes fugir dos outros, mas não de ti mesmo). Por fim, mas não por último: aos que magoei sem razão, as minhas maiores desculpas.  

Historiador
Escreve de acordo com a antiga ortografia