Forte de Peniche
29 abril 2024 às 10h40
Leitura: 12 min

“A prisão dos presos que não cometeram crimes”

A inauguração do Museu Resistência e Liberdade juntou no Forte de Peniche muitas centenas de milhar de pessoas. De todo o país chegaram 37 autocarros com resistentes antifascistas. O DN viajou num deles em dia de homenagem aos presos que passaram por uma das prisões mais duras da ditadura.

De facto, que esplêndido hotel teria dado. Espaço sobre o mar, soalheiro na primavera, a permitir jardins floridos, aconchegado no inverno pelo barulho das ondas na costa acidentada. Terraços privativos com vistas únicas. Um mergulho no bom gosto, exclusivo, para hóspedes escolhidos a dedo. Quem pensou transformar o Forte de Peniche em luxo para turistas sabia o que fazia. Cenário perfeito, para - cereja no topo do bolo - uma lenda romântica. “Há muitos anos, conta-se, um homem chamado António ter-se-á atirado daqui ao mar por amor.”

Não é uma lenda, aconteceu. Foi em 1954, mas parece ontem. O homem chamava-se António, António Dias Lourenço, e atirou-se ao mar da última grade, a mais brutal de todas as que foi obrigado a transpor. Por amor, é verdade. Amor a uma ideia para o país dele.

Estudado o movimento dos guardas, provocara um castigo que o levasse ao “segredo”, a “cela de castigo”, obscura, sem ventilação nem mobiliário, situada no baluarte redondo do forte. Com uma faca que um guarda desatento deixara cair, removeu uma parte da porta. Ao fim de longos dias de trabalho, conseguiu sair do buraco onde o encarceraram. De um cobertor desfiado fez uma corda, lançando-se à água.

Na inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade, 50 anos depois da libertação dos últimos presos políticos daquela prisão, mais de duas mil pessoas reunidas no forte afirmaram a uma só voz: passem os anos que passarem, sucedam-se quantos séculos forem, haverá sempre quem grite: “Foi ontem, e não voltará a repetir-se.”

Inauguração do Museu da Resistência em Peniche
Peniche 27/04/2024 - Inauguração do Museu da Resistência em Peniche com os antigos presos politicos.
(Rita Chantre / Global Imagens)
Rita Chantre / Global Imagens | Rita Chantre / Global Imagens

O avô José, numa visita guiada improvisada, faz junto às celas o relato vívido, realista, “sem choradinho”, dos dois anos (1970-1972) que ali viveu. Porém, encostada à parede do estreito corredor, a neta não segura as lágrimas. “Oiço o meu avô contar estes tempos desde criança. Continuo a emocionar-me. De mim, o testemunho passará aos meus filhos, e assim sucessivamente”, diz Joana. Tem 24 anos.

A viagem

O autocarro com 55 antifascistas, muitos deles casais, deixou Lisboa cerca das 11.00 da manhã. Alguns dos viajantes foram vizinhos de cela na Prisão de Peniche. Outros, nunca estiveram presos. Mas todos têm uma história para contar dos anos da ditadura.

Ao almoço, tomado a meio caminho, Amílcar Ildefonso, eletricista de 77 anos, e a mulher, Aurora, recordam “a miséria e a fome” que sentiram na pele. “Por isso nos tornámos comunistas.”

Nas mesas fala-se daquele tempo. Dos truques para enganar os guardas: mortalhas de cigarros escondidas nas bainhas das camisas que propositadamente se deixavam à mercê de outros presos; pedidos de reforços vitamínicos na esperança de guardar as pequenas serras que acompanhavam as ampolas; a limpeza dos espaços dos guardas, para assim poderem estar mais perto dos portões de saída. 

“Começamos por recusar esse trabalho; mas depois percebemos que era um gesto revolucionário”, conta um dos presentes. À chegada de um novo preso, a recomendação de sempre: “Tens 24 horas por dia para pensares em como sair daqui.”

Para estes homens e mulheres, os presos políticos não fogem: “Cunhal e Dias Lourenço não fugiram. Evadiram-se, para que na clandestinidade pudessem continuar a trabalhar naquilo em que acreditavam”.

Pensa como fugir. Esquece a vida lá fora, ou o perigo de vislumbrar o mar por uma fresta. “Se pensas na família, estás desgraçado”, diziam uns aos outros.

Na mesa ao lado, Duarte Nuno toma café. O pai, monárquico, escolheu para os filhos nomes de cabeças coroadas. Descendente de uma família abastada de Torres Vedras, este filho traiu, a alto preço, a sua classe. Esteve preso em Peniche durante cinco anos e meio.

Foi no convívio com operários da fábrica de família que começou a perceber o país em que vivia. Os trabalhadores, na maioria analfabetos, pediam-lhe que lhes lesse os jornais. Começou a “matutar”. A não “engolir aquela injustiça. Uns tinham tudo e outros nada”. Com 18 anos, saiu de casa. Pediu emprego a um amigo do pai, que de imediato contactou o progenitor. “O meu pai disse-lhe para me colocar nas oficinas, que assim eu voltaria depressa para casa”. Engano. Pouco depois, Duarte Nuno era o responsável por uma célula do Partido Comunista Português.

Quando a PIDE reparou nele, escapou para a União Soviética, onde se licenciaria em Ciências Políticas. A clandestinidade, assumida no regresso a Portugal, levou-o a Caxias. Depois de condenado, o destino foi Peniche. “Nunca me arrependi do caminho que fiz”. Em Peniche, dono de letra miudinha, deram-lhe a tarefa de escrever nas mortalhas.” Eu escrevia, depois um outro teria de lhes dar carinho”.

Para cada preso, uma tarefa. “Não fazia ideia do que os outros faziam. Quanto menos soubéssemos, melhor. Um segredo partilhado por três tornava-se muito perigoso.”

Hoje, o filho foi ter com ele a Peniche. Levou-lhe os netos. Foi pela mão do avô que duas crianças visitaram agora as celas. “Em cinco anos e meio não recebi uma única pessoa da minha família. Abandonaram-me aqui”, diz Duarte Nuno.

A vénia de Marcelo

O desfile popular, com início às 15.00 horas, é encabeçado por antigos presos políticos, alguns deles membros da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), partilhando uma faixa onde escreveram uma das palavras de ordem mais gritadas da revolução: “25 de Abril Sempre, Fascismo nunca mais”. Acompanhados por uma banda, iniciam a subida para o Forte de Peniche. Marcelo Rebelo de Sousa espera-os. A poucos metros do portão, param. A banda toca Grândola ,Vila Morena.

Seguem-se vários minutos de “25 de Abril Sempre, Fascismo Nunca Mais”. De cravo na lapela, rodeado por dezenas de pessoas, é um Marcelo sem protocolo, mais um dos muitos que assistem. Só depois chegam os cumprimentos.

O desfile percorre o passadiço sobre as “cela de água”, uma galeria que desemboca na porta do túnel que passa por debaixo da fortaleza, ligando o mar à Prainha de São Pedro. Entra-se no forte ao som do hino do MFA.

O presidente, que tinha visitado as celas durante a cerimónia oficial que ocorrera durante a manhã, dilui-se informalmente nos manifestantes, dando lugar aos protagonistas do dia. Cede o espaço defronte do palco para os convidados. Canta, discreto, o hino nacional, encostado um dos lados do palco, impercetivelmente vigiado pela segurança. Não escapando aos pedidos para que tire umas selfies, ouve e aplaude os discursos.

“Esta é a prisão dos presos que não cometeram crime nenhum”, diz Herculana Velez, filha de Joaquim Diogo Velez, aprisionado durante 13 anos nos vários cárceres do regime. “Pensem em mim como uma menina”, pediu. A menina que ia visitar o pai pela mão da mãe. Quanto mais rigoroso fosse o dia de inverno, mais tempo os guardas levavam a abrir o portão.

Era no parlatório que os presos recebiam os familiares, sempre na presença de guardas. A separá-los, um vidro encaixado entre tramas de arame. “Deixei crescer a unha do dedo mindinho para, através desse pequeno buraco, poder tocar no pequeno dedo da minha filha, ainda criança”, conta José Tavares Marcelino.

O historiador António Borges Coelho, num discurso lido por um jovem, presta homenagem ao povo da terra, na figura da mulher que lhe pediu um abraço no dia em que foi libertado desta prisão. José Pedro Soares, dirigente da URAP e um dos últimos presos a deixar o forte, releva a importância da celebração 

“Hoje é um dia para erguermos de novo os nossos cravos de abril. (…) Hoje, esta inauguração, representa assim uma importante vitória dos antifascistas portugueses, do povo, e da memória. (…) Por isso, é também o dia e o momento para felicitar todas, e todos, os que sonharam, propuseram e não deixaram que a memória do local fosse alterada, esquecida, que seja branqueado o fascismo e os seus crimes.”

Duas mulheres entre 2626 presos

No memorial aos presos que passaram por esta prisão de alta segurança, dois nomes femininos: Maria de Jesus e Teresa Marques. “Há uma terceira, mas não figura aqui”, diz-nos Domingos Abrantes. Chamava-se Maria do Outeirinho e seria a cabecilha da revolta.

Nascidas em Souto da Carpalhosa, as três mulheres foram protagonistas da Revolta do Milho, corria 1942. O episódio tem início com a notificação de um agricultor da terra - José Barbeiro - para entregar uma grande quantidade de milho por um valor substancialmente mais baixo do que o seu real valor de mercado, e está relatado na placa que homenageia as revoltosas, na terra onde nasceram.

Sabendo da intenção, a população impediu que o milho fosse levado, tocando o sino a repique. Só à terceira tentativa as autoridades garantiram o carregamento e o transporte do cereal. Maria de Jesus e Teresa Marques, destacadas do levantamento popular, foram presas, juntamente com cerca de uma dezena de homens das Freguesias de Souto da Carpalhosa, Monte Redondo e Bajouca.

De Maria do Outeirinho não há certezas. Tendo em conta as declarações de uma neta, prestadas em 2019 ao jornal Região de Leiria, foi uma das revoltosas. Segundo a neta, a mulher, solteira e com um filho de 13 anos, terá inicialmente conseguido fugir às prisões ocorridas durante a revolta, e andado fugida durante seis meses. Já doente, teria regressado à terra, sendo detida pela PIDE e encarcerada durante alguns meses.

O memorial aos presos políticos do Forte de Peniche, inaugurado em 2019, regista 2626 nomes. Detenções que ocorreram entre 1934 e 1974. A celebração começou com uma homenagem diante do memorial que venceu o hotel “para ricos”, nas palavras de José  Marcelino.