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Sociedade
14 agosto 2024 às 00h29
Leitura: 14 min

Vítor Cardoso: “Não ‘falar’ matemática impede-nos de ler o Dom Quixote da natureza”

Vítor Cardoso, físico e especialista em buracos negros, dá-nos um livro sobre ciência e curiosidade; sobre o princípio de tudo e os seus possíveis fins. Também se detém no tempo, enquanto construtor, mas também na sua ruína. O Eclipse do Tempo trata de desinquietações e de angústias. E de como avançar.

Ao longo de anos, o baterista americano, amador da música, Ralph Leighton sentou-se frente a um colega de banda e gravou demoradas conversas. O produto de tal empresa originou o livro de 1985, Está a Brincar Sr. Feynman. As páginas desta obra traçam um roteiro no continente intelectual do homem que recebeu o Prémio Nobel da Física em 1965.

A vida de Richard Feynman [1918-1988] combina acontecimentos improváveis: Participou no Pojeto Manhattan, conducente à bomba atómica, arrombou os mais “seguros” cofres de Los Alamos, estudou a velocidade de rotação do prato, investigou o desastre do vaivém espacial Challenger da NASA, foi considerado intelectualmente débil por um psiquiatra das Forças Armadas americanas.

Feynman teve também o dom de mudar muitas vidas. Uma delas, a milhares de quilómetros de distância e num outro tempo. Em Portugal, um jovem aspirante a físico leu Está a Brincar Sr. Feynman. O jovem, agora professor catedrático e professor distinto do Instituto Superior Técnico, refere a propósito do livro do norte-americano: “O meu respeito pela ciência subiu ainda mais quando li este livro. Ali aprendi que podemos, e devemos, explorar os limites da nossa mente, da nossa capacidade, mas que nunca nos devemos levar demasiado a sério. E creio que me diverti sabendo que podemos ser os protagonistas do nosso próprio filme, uma estrela de rock  no nosso concerto”.

Vítor Cardoso, físico, é autor do livro O Eclipse do Tempo (edição Oficina do Livro).

No prólogo que escreve no livro, o físico teórico Emanuele Berti baliza-lhe os objetivos: “É acerca de grandes questões. O que é o tempo? O que é a luz? Como mudou, a mecânica quântica, a nossa visão do mundo? O que são os buracos negros e ondas gravitacionais?” As perguntas alongam-se, o texto de Vítor Cardoso viaja até aos buracos negros, ao princípio e ao fim do Universo e a conceitos como a queda da luz (já lá iremos).

O livro “nasceu da vontade de partilhar”, como confidencia o autor na introdução à obra, para acrescentar: “Gostaria de partilhar a imagem que tenho da ciência e de como cada uma das conquistas que fizemos ao longo de centenas de anos se encaixa no edifício científico.”

O objeto que Vítor Cardoso abarca é vastíssimo. Trará ao autor angústia? Numa entrevista anterior, o físico confidenciara que o “move o desejo de sair da angústia”. Dá-nos mote para perguntar: A vida de um físico faz-se na angústia, especialmente quando a dedica a estudar buracos negros e ondas gravitacionais?  Vítor Cardoso reitera na afirmação: “Move-me o desejo de sair da angústia da ignorância. A passagem das trevas para a luz é dos maiores prazeres que podemos experimentar, e é um prazer tão grande que queremos repetir o processo. Vamos atrás de outras grandes questões às quais ninguém sabe responder para, durante umas horas ou dias sermos os únicos seres no planeta a saber a resposta. Neste processo, uma angústia ficou por satisfazer: a de que os meus recursos intelectuais são finitos, o que me deixa numa luta constante contra a vozinha que sussurra ‘não és bom o suficiente, não consegues ir além disto’, e eu sussurro ‘ai consigo, consigo’ e aprofundo mais um pouco, leio mais um pouco, vivo mais um pouco. Nisto, desgasto-me, aprendo. A voz está sempre lá a incomodar-me, mas de cada vez que faço algo novo, ela cala-se.”

“Os buracos negros são o fim do mundo”

Serve o título da presente obra de mote para alargarmos o conceito de eclipse. Este remete-nos, em sentido lato, para obscurecimento, desaparecimento ou ausência, Associamo-lo a um evento astronómico que relaciona dois objetos celestes. O livro do também docente na Universidade de Copenhaga empurra-nos para outro tipo de eclipse. “A etimologia da palavra vem do latim eclipsis, -is, do grego ékleipsis, -eôs, abandono, destruição, ruína, eclipse.

O livro é sobre a ruína do tempo em diferentes sentidos. Porque os séculos derrotaram ideias, e elevaram outras, e sobre essas ruínas construímos o que sabemos hoje. E aquilo que sabemos hoje, o nosso edifício científico será talvez as ruínas sobre as quais iremos construir o futuro. Mas a ciência constrói e destrói apenas depois e ao longo de um diálogo com a natureza e com a comunidade. Há algo de mágico neste processo, em que conseguimos ser mais do que nós próprios, ir para além dos nossos defeitos. A noção de tempo relativo é bem ilustrativa disto, fomos da noção de tempo absoluto de Newton, para uma noção relativa de Einstein. As ruínas têm um propósito, são o ponto de partida para algo melhor”, sintetiza Vítor Cardoso.

Do subtítulo da obra também extraímos as palavras Guia para Entrar em Buracos Negros. “Nos buracos negros o tempo não existe, está sempre de mão dada com o espaço. O tempo eclipsa-se por trás do tecido espaciotemporal. É claro que faz sentido falar em tempo, também ao pé de buracos negros, mas aí é uma medida tão ‘arbitrária’ que perde o uso que lhe damos na Terra. O tempo eclipsa-se, podemos ver o tempo de outros a parar, objetos eternamente (ou quase) em queda.”

Vítor Cardoso dá-nos o mote para nos aproximarmos - cuidadosamente - dos buracos negros. Perguntamos: o que há de tão magnifico num buraco negro que o tornou durante décadas uma impossibilidade no Universo? 
Responde-nos o físico: “Os buracos negros são o fim do mundo, e do nosso conhecimento, literalmente. São um rasgo no Universo e, por isso, defendemos durante décadas que o Universo nunca poderia criar uma besta como esta, até percebermos que não havia saída - o Universo tinha de os produzir, pelo menos sabendo o que sabemos hoje. Mas ainda não sabemos descrever o interior de um buraco negro.”

Em teoria se mergulhássemos num buraco negro, “seria o fim, o nosso fim. Mas morreríamos vendo coisas que nunca mais ninguém viu”, exalta Vítor Cardoso, e acrescenta: “Um buraco negro é um vazio no espaço-tempo, torcido sobre si mesmo, de tal forma que criou um cisma entre o interior e o exterior: o interior não consegue comunicar com o exterior. O interior abriga a mãe que deu origem à distorção, mas abriga-a em condições que desconhecemos. O tempo para no cisma, se me atirar em direção a um buraco negro, nunca mais me hão de ver a envelhecer”, elucida o especialista em ondas gravitacionais para acrescentar: “O exterior é um vazio, mas distorcido, e, portanto, interessante. Por exemplo, existe uma região no exterior de um buraco negro onde a luz orbita, onde a luz cai continuamente. Isto é, se acender uma lanterna nesta região, alguma da luz vai atingir-me na parte de trás da cabeça.”

O livro traz-nos, precisamente, conceitos como o atrás abordado: A luz cai? “Sim. Enquanto lemos esta frase a luz caiu. Não o conseguimos perceber, o que é interessante, e nos mostra a quantidade potencial de segredos invisíveis, apenas porque não somos bons o suficiente a ver ou a ouvir. A luz cai, devido à gravidade. Tudo cai. E a implicação, como mostro no livro, é que pode haver estrelas de onde a luz nem sequer consegue sair. E o nosso Universo é tão interessante que, se algo pode acontecer irá, sem dúvida, acontecer”.

Matemática, a língua da natureza

Todo o livro de Vítor Cardoso está imbuído de alternância. O próprio explica-o na introdução que escreve à obra: “Por vezes faço ligações que gostaria de ver em tudo o que me rodeia (...) Outras vezes descrevo o que se passa como gostaria que me fosse explicado numa conversa de café (...). Alguém uma vez escreveu que por cada equação se perde uma percentagem dos leitores.”

O membro fundador da Sociedade Portuguesa de Relatividade e Gravitação não as arreda, às equações, do seu livro. Fá-lo em respeito às explicações que nos traz. A matemática não foge à escrita fluente do autor: “Este canal ou linguagem [a matemática] é a única através da qual conseguimos descrever o mundo, apreender a realidade, de uma forma sistemática, elegante, poderosa. Não ‘falar’ matemática impede-nos de ler o Dom Quixote  ou os Cem Anos de Solidão da natureza, ou impede-nos de ver o Guernica  do Cosmos. Já nem falo de ter uma vida ativa totalmente funcional. Falo de coisas muito mais profundas, falo da capacidade de encantamento”, detalha Vítor Cardoso e continua: “A capacidade de nos deliciarmos com o número pi ou de perceber padrões no mundo que nos rodeia, só pode ser plenamente apreciada sabendo falar matemática. A matemática não é difícil, é bela e é necessária. Vamos usá-la.”

Vítor Cardoso olha para uma equação matemática e detém-se em encanto. Di-la “povoada de segredos”. “Em Física, uma equação descreve a realidade, tal como a conhecemos. Tomemos a Lei de Newton, que é um exemplo paradigmático: a força entre dois corpos (“corpos” pode ser qualquer coisa, como duas pessoas, ou dois planetas) vale m1 m2/r^2, onde m1 e m2 são as massas de cada um e r a distância entre eles. Esta relação foi escrita por um ser humano, na tentativa de capturar matematicamente o que observamos no dia a dia ou através de experiências cuidadosas. Mas o Universo é tão fantástico que esta mesma relação é universal: descreve a atração gravitacional entre quaisquer corpos, em qualquer parte do Universo e em qualquer altura. Este é um segredo. O outro segredo que as nossas equações encerram é que são uma caixinha de surpresas para entender o mundo. Por exemplo, algum tempo depois de ser formulada, pensamos: se quaisquer corpos se atraem, com uma força tanto mais forte quanto menor for a distância, então a Lua atrai mais a parte da Terra que lhe está mais próxima. E com isso conseguimos descrever as marés: não só as duas marés diárias, mas a amplitude das marés.”

A data em que tudo se alterou

O livro de Vítor Cardoso dá-nos uma data muito precisa: 7 de outubro de 1900. Escreve que nesse dia “tudo se alterou”. “Esta data corresponde ao nascimento da Mecânica Quântica. Um dos saltos no nosso conhecimento, que implicou uma mudança de linguagem e de filosofia na forma como vemos e medimos o que nos rodeia. É uma data histórica, que aconteceu porque somos curiosos e queremos saber como as coisas funcionam. E foi ao fazer medições precisas que percebemos que a matemática que tínhamos até então não era boa o suficiente. Demos um salto quântico em 1900, enquanto espécie.”

“Somos curiosos.” A expressão dá-nos mote para a pergunta seguinte: Falta-nos presentemente curiosidade? Aquela que nos dá o impulso para um conhecimento científico e filosófico mais completo? “Não nos falta curiosidade, mas falta-nos mais estímulo para a satisfazer até ao fim. Acarinhemos mais quem quer saber, sem querer construir nada de útil, sem querer começar uma startup ou registar uma patente. Digamos sim a quem quer perder o jantar para estudar uma equação, porque há um detalhe interessante. Preocupa-me que sacrifiquemos a profundidade em prol da quantidade. Mas, acredito na espécie, ainda.”

O Eclipse do Tempo também trata do fim, ou melhor de vários fins (“o fim do interesse pela ciência”, “o fim do mundo”, “a teoria final”). Fins que nos são externos e aqueles que potencialmente podemos provocar. Diz o autor que “um fim causado pela nossa curiosidade não seria um mau fim”.

Porquê? Responde-nos com humor: “Se temos de acabar, que acabemos porque quisemos saber mais. Não somos nada, mas caramba, tenhamos pelo menos a capacidade de nos pasmar e entusiasmar.”