Legislativas 2024
12 março 2024 às 07h04
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Na terra onde Ventura é "rei". "Tive amigos a pedirem-me desculpa por votarem Chega”

O partido Chega venceu no distrito de Faro. Em Albufeira a vitória foi a mais expressiva, com 32,6% dos votos. Mas foi na freguesia de Algoz/Tunes, no único concelho comunista do Algarve (Silves) que este partido populista de direita teve a maior adesão, com 36% da votação.

Sérgio Antão é presidente da Junta de Freguesia de Algoz /Tunes há 22 anos, eleito pelo PSD, e quando lhe dizemos, logo pela manhã, ainda em viagem, que 36% do seus fregueses tinham votado no Chega, do lado de lá da linha ouviu-se um suspiro. “Impressionante!”, reage. 

Depois, já refeito, procura justificações para a nova realidade do país, em geral, e para a da sua freguesia, em particular. “Na verdade, corresponde a uma certa expectativa que se anunciava. Tem havido um adensar de problemas em relação aos quais as pessoas não veem solução e que têm muito a ver com a atividade agrícola da região. Falta água e não se resolve, depois são os furtos de alfarroba, muitos, atribuídos a certos grupos de etnia cigana. Depois, houve um grande crescimento de população estrangeira aqui na freguesia, quer imigrantes da União Europeia, muitos de classe média-alta, quer de outras origens, com mais precariedade. Não há casas disponíveis para os locais. Há anos que pedimos posto da GNR e não vem, há anos que prometem acabar com as portagens da Via do Infante e nada. Há um acumular de saturação e deceção com a classe política. Há um grande sentimento de desproteção e as pessoas sentem que o discurso do Chega vem ao encontro dessas preocupações”, sublinha.

Algoz/Tunes tem cerca de sete mil residentes e está localizada no único concelho comunista do Algarve, Silves, cuja presidente Rosa Palma, no cargo há 10 anos, não quis falar com o DN sobre o resultado das eleições na sua região.

“Aqui as pessoas são muito de extremos, ou para os comunistas ou agora para o Chega”, salienta Sérgio Antão, 61 anos. “É a democracia a funcionar. Tenho aqui amigos que sempre fizeram parte da minha vida, que sempre confiaram em mim e no meu trabalho como autarca, mas agora vieram pedir-me desculpa por votarem no Chega. Sentiram que nenhum partido lhes deu respostas, nem soluções. Acho que não têm de pedir desculpa. Vamos ver se o Chega corresponde ao que ambicionam. É o que as pessoas sentem. Não posso ter medo da democracia”, reforça.

"O Chega ainda manda alguém matar-me"

Mas nos olhos de José Martins, 46 anos, etnia cigana, é precisamente esse o sentimento que sobressai quando o informamos de que está na terra do “rei Ventura”.

Vende caixas de morangos à porta da mercado mensal de Algoz e quando pedimos uma para lhe tirar uma fotografia, esconde a cara. “Não, não, que o Chega ainda manda alguém matar-me”, justifica. Nasceu no Algarve e confessa que vota “sempre PS” e teme que o Chega “dê cabo do Algarve”.

“São racistas e culpam o ciganos por tudo. Sentimos uma grande ameaça com o Chega”, afirma.

Receio partilhado por Vanessa Reis, outra feirante da mesma etnia,  que confessa não ter ido votar. “Há muito racismo contra os ciganos. Cada vez mais. Quem vai sofrer mais somos nós”, diz, enquanto carrega os cabides de roupa.

Vanessa Reis, feirante, não foi votar, mas está receosa: “Há muito racismo contra os ciganos. Quem vai sofrer mais somos nós.” Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens

Momentos antes, metemos conversa com a são-tomense Deolinda, sem papas na língua. "Mas são esses que querem mandar embora os imigrantes? Se fizerem isso, os outros países também mandam embora os portugueses que lá estão? Isso é que era bonito, era!", reclama.

Vive em Portugal há 50 anos, tantos quantos a Revolução dos Cravos. Só há dois anos conseguiu os documentos portugueses. Já podia ter votado, mas não votou. "Ah, não estou muito a par da política. Prometem muito e fazem pouco", condena.

Mais à frente, José António, 74 anos, natural da Guarda, refere que foi ouvindo “muitas conversas” e previa “este desfecho”. “Acho que as pessoas estão iludidas. Nas próximas eleições vai cair (o Chega) porque não vão fazer nada do que disseram”, vaticina, enquanto enrola vário cintos no braço para arrumar em caixas.

Para Tiago Coimbra, que atravessa o chão meio enlameado do espaço empurrando o seu bebé no carrinho como uma mão e segurando um pé de goiabaeira com a outra, “os eleitores mais jovens, que antes não ligavam à política, desta vez quiseram ir votar para fazer a diferença. Em vez de se absterem fizeram um voto de protesto”.

Não encontrámos jovens que assumissem ter votado Chega. Já mais velhos, bastantes. Paulo Guerreiro, 65 anos e Francisco Palma, 62, assumem-no. “Já votei PS e CDU, mas desta vez foi Chega. Ele (André Ventura) é frontal, diz as verdades”, diz Guerreiro, enquanto empilha as caixas dos sapatos que não vendeu na feira.

"Não quero que ganhe, é só para armar sarrabulho lá no Parlamento"

Por seu lado, Palma reconhece que “se soubesse que ia ter tantos votos, não tinha votado Chega”. “Não quero que ganhe, é só para armar sarrabulho lá no Parlamento. Estamos saturados de serem sempre os mesmos e não resolverem os nossos problemas. É preciso alguém para agitar”, frisa, segurando numa caixa com pés de agrião para plantar. Sugere mesmo que o PSD “dê uma oportunidade ao Chega no Governo, para ver o que fazem”.

Na esplanada de um café, no centro de Algoz, um grupo de homens discute as eleições. “Não sei o que ele cantou para as pessoas votarem nele, aqui é mais CDU e PS. Até pensei que quando ele começou a falar em prisão perpétua, ia ter menos votos”, afirma José Cabrita.

“Eu cá acho que ele (André Ventura] até devia ser primeiro-ministro para ver o que fazia. Não gosto quando fala mal dos ciganos, mas todos deviam ter hipótese de ir para o Governo. Depois devia ser criada uma lei que determinasse que quem não cumprisse as promessas eram-lhe cortados três dedos”, sugere António Manuel, fazendo os outros rir às gargalhadas. Também atribuem à “juventude” a vitória do Chega no Algarve, mas não sabem explicar porquê.

António José (ao centro) e José Cabrita (dta.) numa esplanada de Algoz discutem as eleições. E elogiam André Ventura. Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens

É mesmo isso que nos esclarece, mais tarde, Beatriz Santos, 23 anos, estudante universitária e empregada num restaurante, sentada ao final da tarde numa esplanada no centro de Ferreiras.

Se Albufeira foi o concelho algarvio onde o Chega teve maior votação (32,6%), Ferreiras foi a freguesia de Albufeira com mais votos do partido de Ventura (34%).

"As pessoas sentem que os portugueses estão a ir embora. São cada vez menos"

“Uma das causas é o facto de os jovens não conseguirem, por exemplo, ter a sua independência, as casas estão caras. Outra tem a ver com a chegada de muitos indianos. O Chega promete que haja maior controlo e isso é bem recebido pelos jovens, porque aqui querem emprego e os empregadores preferem a mão-de-obra barata dos imigrantes. Sentem que os portugueses estão a ir-se embora, são cada vez menos. Depois houve vídeos a circular sobre imigrantes a filmarem mulheres na praia enquanto se masturbavam e histórias de indianos que andavam a violar mulheres portuguesas...”, refere.

Fomos ouvindo estas “histórias”  de algumas pessoas com quem falámos, várias atribuindo-as aos “taxistas que não querem a concorrência dos muitos Uber conduzidos por estes imigrantes”,  mas ninguém tinha a certeza de terem mesmo acontecido, só que tinha corrido esse rumor.

Foi Luna Silva, a deputada municipal do Chega na Câmara de Albufeira, quem esclareceu e desmentiu. Quando me chegou isso aos ouvidos, a primeira coisa que fiz foi ir falar com o comandante da GNR para lhe perguntar. Não era verdade”, contou ao DN.

A advogada não esconde a sua satisfação com os resultados do seu partido e compreende a votação sem precedentes no concelho. “Albufeira é a capital do turismo, mas os albufeirenses sentem que têm sido esquecidos, tal como o resto dos algarvios, pelos sucessivos Governos. Sentem que só servem para as férias. O Centro Hospitalar do Algarve, prometido há tantos anos, devia ser aqui em Albufeira. Só temos um Centro de Saúde e hospitais, só privados. Também há falta de efetivos nas Forças de Segurança. Isto é um chamamento para que o Governo perceba que precisamos dele o ano inteiro”, sublinha.

Aponta também a imigração com outra causa para a vitória do Chega no Algarve, fazendo-nos também compreender melhor por que o antigo presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, decidiu introduzir este tema num comício neste distrito. “Não temos condições para receber um número tão grande de imigrantes”, afirma.

"Falta de respostas para os problemas da população"

O presidente da Junta de Freguesia de Ferreiras, com cerca de 9500 moradores, confessa que  até “teve dificuldade em escolher em quem votar”. Independente eleito nas listas do PS, Jorge Carmo, concorda com “a falta de respostas para os problemas da população”.

“As pessoas estão revoltadas, não acreditam no PS, nem no PSD, partidos que se têm alternado no poder. No caso aqui da freguesia de Ferreiras, a isto acresce que há aqui muitos polícias e professores a morar, duas classes que têm sofrido mais nos últimos tempos. Também há uma grande comunidade de brasileiros que toda a gente acredita que tenham votado também no Chega. Vieram vários perguntar na Junta qual era o partido do André Ventura”, resume.

Presidente da Junta de Ferreiras, Jorge Carmo, diz que promessas do Chega de resolver os problemas da população justificam os votos. Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens

Helder Guerreiro e Joaquim Cunha, ambos ex-emigrantes, o primeiro em França, o segundo em Inglaterra, partilham uma bebida e revelam que apoiam o Chega. “Podíamos ser o Mónaco da Europa, mas com estes políticos que só querem é tachos estamos como estamos”, diz Guerreiro. Helder lamenta que lhe tenha sido negado “um empréstimo no banco para abrir uma pequena loja” e que, “em contrapartida, por todo o lado se veem lojas de indostânicos e chineses”. “Porquê?”, questiona. “O Chega que nos ajude a nós, portugueses, a seguir em frente”, pontua.

"Uma explosão de descontentamento"

O sociólogo da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, João Eduardo Martins, identifica “duas ordens de razão para este resultado”. A primeira, “são motivos nacionais, com o acumular de grandes crises económicas e sociais nos últimos anos: a bancarrota e a troika, com o Algarve em grande desvantagem; a pandemia, durante a qual o Algarve, onde o setor do turismo, a mais importante fonte de rendimento, parou totalmente; a inflação e aumento do custo de vida, causados em grande parte pela guerra na Ucrânia”.

Em segundo, “as razões políticas, com um grande descontentamento da população perante a falta de respostas dos políticos dos partidos tradicionais, quer a nível nacional, quer local, a problemas como a da falta de hospitais e de habitação”.

O resultado, conclui, “foi uma explosão de descontentamento e o Chega ocupou o lugar de protesto que normalmente era preenchido pelo PCP ou pelo BE. Como estes, na geringonça, se aliaram ao PS, um partido que durante muitos anos tem poder no Algarve com certo nepotismo, deixaram de ser essa alternativa”.

Atualizado às 8h30. O Chega não ganhou em todos os concelhos do distrito, conforme por lapso estava escrito. O PS venceu em 10 dos 16 concelhos: Alcoutim, Aljezur, Castro Marim,  Faro, Lagos, Monchique, São Brás de Alportel, Tavira, Vila do Bipo e Vila Real de Santo António. 


valentina.marcelino@dn.pt