Serviço Nacional de Saúde
07 fevereiro 2024 às 07h11
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Nos últimos cinco anos, 20 mil profissionais rescindiram contratos e não voltaram

Médicos, enfermeiros e assistentes operacionais foram os que mais saíram do SNS de 2019 a 2023. Os dados são da tutela que, apesar de tudo, considera o saldo positivo, por ter havido um reforço de 10,5% no número de profissionais. Para os sindicatos, o número de saídas traduz “a calamidade” que o setor público vive.

De 2019 a 2023, 5043 médicos, entre especialistas e internos, rescindiram os contratos com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não regressaram para trabalhar com outro tipo de contrato ou noutra unidade. Nos enfermeiros, este número foi de 5134 profissionais e na classe dos assistentes operacionais de 5041.

Ou seja, 15 218 profissionais das três classes mais representativas, em número, no SNS optaram por sair e não voltar ao setor público. Juntando aqui os profissionais das restantes oito classes que integram o SNS, o número de saídas, nos últimos cinco anos, é de 19 598.


Os dados foram disponibilizados ao DN pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), organismo do Ministério da Saúde, e integram todos os profissionais do SNS (ver tabela). Mas, na verdade, estes dados mostram ainda que, afinal, o número de profissionais que rescindiu contrato com o SNS nestes cinco anos, é bem mais elevado do que os quase 20 mil, já que houve 35 105 profissionais a rescindir contratos. Só que, destes, 15 507 acabaram por regressar, embora com outro tipo de contrato ou noutra unidade. 


Na resposta ao DN, a ACSS explica que, apesar das saídas, há que ter em conta que “o número de profissionais ativos no SNS tem vindo a ser continuamente reforçado. Um aumento de 10,5% quando comparamos o total de profissionais registados em dezembro de 2023 (149 579) com dezembro de 2019 (135 423), e de 24,6% quando se compara o total de profissionais em dezembro de 2015 com o mesmo período de 2023”.


A tutela alerta também para o facto de haver um “elevado número de situações em que os profissionais rescindem contrato para mudar de instituição dentro do SNS, seja por razões de desenvolvimento profissional, motivos pessoais, preferência geográfica, entre outros”, sublinhando que “uma grande parte das situações de rescisão de contrato não configuram saídas efetivas do SNS, mas rescisões para mudança de local ou de estabelecimento de trabalho, havendo também situações de novo contrato após a cessação de vínculo prévio”. Ou seja, que apesar das saídas, o saldo é positivo. Mas não é esta a leitura que fazem os sindicatos das três classes mais representativas do SNS. 


Médicos dizem que cinco mil saídas é “um número significativo”


Para a classe médica, “só o número de saídas efetivas (5043) é muito significativo”, defendendo até que há explicações muito concretas para o regresso ao SNS.

Uma delas é que “muitos dos médicos que saem regressam depois com contratos de prestação de serviço, com os quais ganham mais e têm menos responsabilidades em cima”, argumenta Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam). 


O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Paulo Roque da Cunha, aproveita para destacar, e no que toca aos médicos internos, “o interessante é haver logo quase três mil que acabam a formação e nem sequer entram no SNS”. E explica: “Quando dizem que 9506 médicos internos rescindiram com o SNS em cinco anos, é o mesmo que dizer que 9506 médicos terminaram a sua formação neste período, porque os médicos internos não integram a carreira médica.Portanto, “um médico termina o internato, rescinde o vínculo que tem com o SNS e depois é contratado como médico especialista”.

Os dados da ACSS demonstram que, no caso dos médicos internos, do total de 9506 que rescindiram, 2693 saíram efetivamente, havendo 6813 que ficaram a trabalhar no SNS. O problema, questiona Joana Bordalo e Sá, “é que mesmo estes, ao fim de dois ou três anos, também começam a sair”, sublinhando ser “significativo que a maioria dos médicos especialistas não tenha regressado ao SNS - de um total de 3705 que rescindiram, 2350 não voltaram.” 


Para Joana Bordalo e Sá, “estas saídas explicam a calamidade do SNS, mesmo que, no balanço final, o número de médicos tenha aumentado, embora não consiga perceber como é possível alguém considerar que há um balanço positivo”, desabafa, para continuar: “Factos são factos, há 1,7 milhões de utentes que não têm médico de família, as listas de espera para consultas e cirurgias continuam a aumentar, apesar de a tutela também apregoar que tem havido um aumento de produtividade”.

Além do mais, argumenta a dirigente, se pensarmos que o SNS tem cerca de 31 mil médicos (31 307 segundo anunciou o ministério na terça-feira), 21 mil especialistas e dez mil internos, se nos últimos cinco anos saíram efetiva- mente cerca de cinco mil, e a estes juntarmos as aposentações (segundo o ministério, em 2023, foram 800), o número total de saídas do SNS acaba por ser mais elevado”.


Ao DN, a presidente da Fnam critica ainda outra situação: “A notícia de hoje (ontem) é a de que 1800 médicos aceitaram a dedicação plena. Ora, se tivermos em conta, mais uma vez, que temos 21 mil médicos especialistas e que só 10% aceitaram a dedicação plena, sendo que a maioria destes são diretores de serviço, que estavam obrigados a aceitar o regime ou a sair do cargo, então este número não é nada”. E continua: “Fico surpresa quando o sr. ministro vem dizer que pensava que só cerca de mil médicos é que aceitariam a dedicação plena. Se era assim, isto quer dizer que este regime não era para fixar médicos no SNS”.


Para o secretário-geral do SIM “o que os dados sobre as rescisões querem dizer, objetivamente, e por muito que se queira tentar fazer ver que o saldo é positivo, é que há uma grande carência de médicos no SNS. Se não fosse assim, não haveria milhões de horas extras feitas por médicos todos os anos e um gasto com prestadores de serviço que, em 2023, se estima que atinja os 200 milhões de euros” - dados oficiais indicam que, em 2020 o gasto com estes médicos foi de 125 milhões e que, em 2022, ascendeu aos 170 milhões.


De acordo com a informação disponibilizadas pela ACSS, o ano em que houve mais médicos especialistas a rescindir efetivamente com o SNS foi em 2022, um total de 1017, em 2023 foram 879. Nos médicos internos o ano com mais saídas foi o de 2020, ao todo 2150, no ano passado saíram 1952. 

Enfermeiros e assistentes operacionais foram dos que saíram mais.


Enfermeiros que “saem das escolas vão logo para fora nem querem entrar no SNS”


A classe dos enfermeiros é aquela que integra maior número de profissionais no SNS - 50 630 era o número apresentado pela tutela em julho de 2023. Apesar deste número, as rescisões efetivas com o SNS têm vindo num crescendo desde 2019.

Aliás, no ano passado foi aquele em que houve mais rescisões efetivas, 2274. Em 2022, houve 2255. Mesmo assim, Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), recorda que seriam precisos mais para as necessidades do SNS. 


De acordo com os dados da ACSS, nos últimos cinco anos, 9485 enfermeiros rescindiram contrato com o SNS. Destes, 4351 regressaram, mas 5134 saíram definitivamente. Para Guadalupe Simões, “estes números surpreendem-me por serem menores do que pensava. Por exemplo, não imaginava que houvesse cerca de quatro mil enfermeiros que tivessem regressado ao SNS. E esperava que fossem mais do que cinco mil a sair definitivamente”.

No entanto, reforça, “a verdade é que os serviços não deixam de estar sob grande pressão” e uma das razões “é a carência de profissionais”. Porque “os quatro mil que regressaram não conseguem, de todo, colmatar as faltas nos serviços de saúde”.


Neste momento, o grande problema da enfermagem já não é só “os profissionais que deixam o SNS para irem para outras unidades ou porque se reformam. O grande problema é que uma parte significativa dos alunos que saem das escolas querem logo deixar o país e nem sequer entrar no SNS”. Ora, “saindo os que estavam a trabalhar e havendo uma parte significativa dos que acabam a sua formação que não querem entrar, isto significa que não há enfermeiros no mercado de trabalho para contratar”.


Para Guadalupe Simões, este sinal dos jovens enfermeiros é muito significativo, porque é sinal de que a classe não se sente valorizada, quer nas suas competências quer na questão salarial. 


95% dos assistentes operacionais ganham salário mínimo


A segunda classe com maior representação no SNS, a seguir à da enfermagem, é a dos Assistentes Operacionais (AO). Ao todo, são 34 mil, refere ao DN o presidente do Sindicato Independente dos Técnicos Auxiliares de Saúde (SITAS), Paulo Carvalho. Ao mesmo tempo, são também dos técnicos que mais rescindem e que menos regressam.


Os dados da ACSS revelam que nos últimos cinco anos rescindiram contrato 6724 profissionais e só 1323 é que regressaram. O dirigente sindical não se admira, porque “a classe não é valorizada”, referindo que “95% recebe salário mínimo”. É por este valor que “estão sujeitos a um risco elevado de contrair doenças e que estão sujeitos a turnos rotativos, não tendo fins de semana, feriados e noites”.

Se tal não bastasse, Paulo Carvalho recorda que durante a pandemia “foram o grupo profissional que registou mais mortos em serviço, havendo muitos deles que passaram um mês e mais sem ir a casa, mas as pessoas esquecem-se disto rapidamente”.


O presidente do SITAS revela que a tabela salarial dos AO já deveria ter sido atualizada no início de janeiro, mas isso não aconteceu devido à passagem para o sistema de Unidades Locais de Saúde, embora, registe, “são só mais 48 euros”. E argumenta: “Como é possível que com estas condições haja motivação para que os profissionais fiquem no SNS ou para que os mais novos queiram entrar?”. 


Neste momento, reforça, “um jovem que faça o Curso de Técnico Auxiliar de Saúde tem três anos de formação e depois vai ganhar o ordenado mínimo para o SNS. Se fizer meio tempo num hipermercado, a repor prateleiras ganha o mesmo”.

Por isto, Paulo Carvalho, defende: “Ou o Governo que vier a seguir, tem uma atitude forte no sentido de alterar a situação permitindo que esta capte profissionais mais novos e formados, ou qualquer dia temos os nossos doentes entregues a pessoas sem qualquer formação na área da Saúde”.


O dirigente destaca ainda que, tal como as outras classes profissionais, a dos AO também se encontra envelhecida e cansada, e que tal não é tido em conta. “Se juntarmos os números das rescisões ao das aposentações, o número de saídas é maior, já que entre 2020 e 2021 reformaram-se 700 pessoas, em 2022, 699, em 2023, 560, e para 2024 a previsão é de que se reformem 1150 profissionais. Se for mesmo assim, veja o desfalque que a classe vai ter”.


As queixas não são diferentes nas várias classes, mas se até há uns anos as gerações mais velhas “se sacrificavam pelo serviço público que prestavam”, agora todas dizem que também já não é assim. Para uns e para outros, quer sejam médicos, enfermeiros, farmacêuticos, Técnicos de Diagnóstico ou Operacionais, há cada vez mais opções de trabalho fora do SNS. A questão é: O que vai acontecer ao SNS?