Especial 50 anos 25 de abril
25 abril 2024 às 17h28
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Só existem 24 democracias plenas no mundo?

Segundo o Economist Democracy Index, países como os Estados Unidos e a Itália são democracias com falhas. Portugal está também nesse grupo. Mas politólogo António Costa Pinto não tem dúvidas sobre a saúde da democracia portuguesa 50 anos depois do 25 de Abril. No mundo, as autocracias ganham terreno.

O que é afinal uma democracia? Winston Churchill dizia ser “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Mas, por muito que apreciemos a ironia do antigo primeiro-ministro britânico, “o poder do povo”, seria a resposta mais óbvia, se pensarmos na etimologia, pois a palavra vem do grego demos (povo) e kratos (poder). Basta, porém, haver eleições para o povo exercer o poder? O Economist Democracy Index considera que não, e por isso vários países que foram ou vão a votos durante este ano são considerados regimes híbridos, caso do México, ou autoritários, como a Rússia. E mesmo Portugal, que hoje celebra meio século da Revolução do 25 de Abril, surge como “democracia com falhas”, a par de outros países da União Europeia, como a Itália e a Bélgica, e também os Estados Unidos ou a Índia. Aliás, segundo os critério da revista britânica The Economist, só 24 países são democracias plenas, com a Noruega a registar a avaliação mais positiva, 9,81 (10 é o máximo). 

E a batalha entre democracias e autocracias parece estar a pender para o lado das últimas, sobretudo se virmos em termos de percentagem de população mundial. Um outro índice de democraticidade, o Varieties of Democraties, do Instituto sueco V-Dem, aponta para 71% dos oito mil milhões de habitantes do planeta a viverem em regimes autocráticos. E o Freedom in the World, elaborado pelos americanos da Freedom House, diz que 2023 foi o 18.º ano consecutivo em que o mundo se tornou menos livre. Um cenário muito longe do otimismo da década de 1970, quando Portugal, Grécia e Espanha se tornaram países democráticos, dos anos 1980, quando gigantes como o Brasil derrubaram a ditadura militar, ou dos anos 1990, em que a Europa Central e de Leste deixou de ser comunista e a África do Sul acabou com o regime racista do Apartheid.

“Há quatro décadas contavam-se quase todos os anos o número de novos países democráticos, novos Estados democráticos, Estados que ganhavam independência, conquistada ou concedida, Estados que se afirmavam democratas e queriam construir a democracia. A democracia estava a subir, estava em ascensão permanente. Hoje está em recuo. Quaisquer contas realistas mostram que há um número de países não democráticos ou ditatoriais mesmo superior ao número de países democráticos. Mais ainda, e pior ainda, as populações a viver em Estados não democráticos, antidemocráticos, ou ditatoriais são muito superiores às populações que vivem em Estados realmente democráticos. Isto é um recuo. Um recuo importante”, alertava há tempos o sociólogo António Barreto, numa entrevista ao DN e à TSF. E acrescentava o antigo exilado político na Suíça, depois ministro no primeiro governo constituicional: “a democracia está atualmente sob desafio, sob ameaça, e tem dois grandes caminhos a seguir: ou cede aos seus adversários e adota políticas, pontos de vista, soluções, desenvolvimentos que não são democráticos, e isso é gravíssimo, e pode acontecer, ou acontece às vezes; ou a democracia não cede, e isso não significa guerra, significa não ceder no politicamente correto, não ceder na demagogia, não ceder em tantas coisas que atualmente há a pressionar para a democracia ceder. Vemos mesmo em países que se ilustraram nas últimas décadas com a real vontade de participação democrática, como os Estados Unidos, países que tentaram várias vezes criar a democracia, como países da América Latina, o Brasil, países na Europa que acederam há poucos anos à democracia, estão a ceder ou a sentir-se por dentro de si próprios frágeis, democracias vulneráveis ou frágeis. Isto é um sinal de grande inquietação, creio eu”.

É impossível não perceber nas alusões de Barreto o impacto da presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, ou da de Jair Bolsonaro no Brasil, ou a ascensão dos partidos de direita populista ou mesmo de extrema-direita na União Europeia. Na América, a grande dúvida agora é se Trump vencerá Joe Biden nas eleições de 5 de novembro e regressará à Casa Branca, e que impacto terá a sua segunda presidência. Já na Europa, a incógnita é a força que populistas e extremistas de direita vão ter no Parlamento Europeu depois das eleições de início de junho nos 27 Estados-membros. Mas o que significa mesmo, seguindo a terminologia do Economist Democracy Index, e olhando especificamente para a UE, este conceito de “democracia com falhas”? Um conceito que se estranha aplicado a países como Portugal, que ainda há dias, o historiador francês Yves Léonard descrevia ao DN como iniciador da terceira vaga de democratização no mundo e dava como uma democracia consolidada desde que em 1982 extinguiu o Conselho da Revolução (dominado pelos militares) e, sobretudo, desde que em 1986 entrou para a então CEE e elegeu o primeiro presidente civil, Mário Soares. 

“É notável que Itália e Portugal, os dois países aos quais estou ligado há mais de 50 anos, tenham tido classificações tão semelhantes (7,75 e 7,69). Ambos são classificados como ‘democracias com falhas’. Aqui estão duas nações que ainda enfrentam problemas para superar a sua herança de regimes fortes. Não esqueçamos que o Estado Novo inspirou-se na experiência fascista italiana. Aqui estamos nós, muitas décadas depois - e os dois países afetados por taxas de natalidade muito baixas e um crescimento económico anémico. A adormecida Itália e o recentemente resiliente Portugal. Não é uma coincidência. Basicamente, uma falta de confiança dos seus cidadãos no futuro”, alerta o jornalista americano Dennis Redmont, que foi correspondente da Associated Press em Lisboa em meados dos anos 1960, quando Oliveira Salazar ainda estava no poder, chegou a ser interrogado pela PIDE e a dado momento foi forçado a deixar Portugal por causa das notícias incómodas para o regime. Mais tarde, durante três décadas, Redmont coordenou, a partir de Roma, toda a informação da AP na região mediterrânica. Hoje vive em Lisboa.

“Também é instrutivo ler a investigação da Economist  juntamente com o famoso barómetro Edelman Trust, que mostra que o governo e os media estão no final da lista de confiança das pessoas, muito atrás das empresas e do sector das ONGs. Ou seja, as pessoas agora confiam mais nos CEOs das empresas privadas do que nos seus líderes políticos”, acrescenta Redmont, que lecionou jornalismo internacional durante mais de 20 anos no Programa de Mestrado da Universidade de Perugia.

“O que observar em 2024? Eu diria que o ‘canário na mina de carvão’ é a próxima Lei da Liberdade Europeia, que será aprovada a qualquer momento pela UE, defendendo mais transparência na ajuda governamental e nas iniciativas regulatórias através de  um conselho geral para serviços de media. Primeiro, observemos e veremos se não é um esquema orwelliano. Pelo menos, porá alguma luz sobre casos mais extremos, como os assassinatos em Malta, as restrições na Hungria e as ameaças individuais nos países da UE. Um terreno mais escorregadio é a crescente influência disfarçada nas televisões estatais e privadas por entidades privadas e parapúblicas e a falta de auto-policiamento por parte dos meios de comunicação social dos ‘conflitos de interesses’ de jornalistas individuais. Há casos recentes em Portugal e Itália. Também novo no horizonte é a crescente sede de controlo dos meios de comunicação por parte da coligação italiana de direita/centro (liderada por Giorgia Meloni), que está a tentar transformar as leis de difamação existentes em penas de prisão para jornalistas. Na minha opinião, a autocongratulação é inimiga em ambos os países. É também instrutivo que os dois países vizinhos, Espanha (para Portugal) e Grécia para Itália, estejam numa outra categoria”, analisa o jornalista americano. Redmont não deixa ainda de fazer um alerta: “portugueses e italianos fariam bem em fazer uma pausa e meditar sobre a razão pela qual as suas sociedades continuavam imperfeitas. Independentemente de concordarmos com os critérios da Economist. Mas isso é uma história totalmente diferente!”.

Os critérios dos diferentes índices de democraticidade têm recebido críticas várias, mesmo quando explicam a enorme variedade de dados que recolhem e a complexidade da análise. Que os Estados Unidos, tradicionalmente os “líderes do mundo livre”, ou a Índia, “a maior democracia do mundo”, não sejam consideradas democracias plenas, causa sempre certa perplexidade. E também não ajuda que cada índice faça a sua própria avaliação, muitas vezes dissonante. Por exemplo, se a Economist, a Freedom House, a V-Dem e a International IDEA (organização transgovernamental, sedeada na Suécia) concordam todas que o Canadá merece avaliação máxima, sendo assim considerado, respetivamente, “democracia plena”, “livre”, “democracia liberal” e “democracia de alta performance”, já os Estados Unidos são “democracia com falhas”, “livre”, “democracia liberal” e “democracia de alta performance”.

“Cada index tem indicadores específicos e no caso português parece ser o ‘funcionamento do Governo’ e a menor participação política que ditam a classificação. Eu prefiro ver a boa classificação nas liberdades, onde a democracia portuguesa está bem de saúde. Confesso que os fatores atrás citados não me parecem importantes. No fundamental a democracia portuguesa está bem e recomenda-se”, sublinha o historiador e politólogo António Costa Pinto. Uma leitura que bate certo com outra forma de ver o índice da Economist, que é a posição portuguesa entre os 167 países analisados, pois se a Noruega está no topo e o Afeganistão no fundo, o nosso país surge como o  31.º mais democrático do mundo, à frente, por exemplo, da Itália e da Bélgica, mas também de outros países europeus como a Polónia, a Lituânia e a Roménia, e ainda da África do Sul, do Brasil ou da Índia.