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Dia Mundial da Saúde Mental
10 outubro 2024 às 00h24
Leitura: 16 min

Miguel Xavier: “Portugal está abaixo do nível exigível na resposta às perturbações psiquiátricas comuns”

OMS escolheu o tema ‘Saúde Mental no Local de Trabalho’ para assinalar este dia 10. Para o diretor da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental Portugal tem caminho a fazer na área. “É preciso adaptar a legislação laboral à saúde mental”, de forma a garantir contributos essenciais para uma sociedade saudável.

Este Governo assumiu a Saúde Mental como eixo prioritário do Plano de Emergência e Transformação da Saúde. Isto mudou alguma coisa na reforma que estava a ser feita?
As medidas e os projetos que estão incluídos no plano de emergência já faziam parte do Plano Nacional para a Saúde Mental e até do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Só há duas medidas novas, uma é a elaboração de um Plano de Saúde Mental para as forças de segurança, no qual a Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental (CNPSM) já está a participar, e a outra é a contratação de 100 psicólogos para os cuidados primários. Mas ficámos muito satisfeitos por o Governo dar nota de prioridade ao que já estava em curso, mantendo o alinhamento da estratégia de saúde mental portuguesa com os compromissos internacionais que o país assumiu com a OMS e União Europeia.

Falou no PRR, os prazos de implementação das medidas que o envolvem estão a ser cumpridos?
Há medidas que vão mais avançadas, outras mais atrasadas. Mas, neste momento, penso que temos as condições necessárias para que o processo de implementação das medidas do PRR possa acelerar. Por um lado, porque há vontade política para o fazer, e por outro porque foi retomado um aspeto muito importante, que é uma relação de trabalho regular com a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) - esta relação tinha sido perdida em 2023 e isso fez-nos perder muito tempo na implementação das medidas programadas. Agora, estamos a trabalhar de novo em conjunto e a tentar recuperar o tempo perdido.

Há um ano alertou para o atraso numa medida prioritária do Plano Nacional: a construção de residências para doentes institucionalizados, que envolve verbas do PRR. Como está este projeto?
A equipa de CNPSM entregou o programa de desinstitucionalização há mais de dois anos e desde essa altura que não foi criada uma única resposta. Portanto, não houve qualquer avanço. Os motivos, eu, coordenador nacional, ignoro por completo. O que posso dizer é que, neste momento, está-se a tentar acelerar a publicação dos documentos que vão permitir o lançamento das candidaturas a estes projetos. Uma vez publicada a documentação, as candidaturas serão imediatamente abertas. E sabemos que há instituições muito interessadas em candidatarem-se.

Este atraso não o preocupa?
Apesar de me preocupar, acredito que temos tempo para recuperar. Aliás, temos de recuperar. A desinstitucionalização é uma área absolutamente crucial para se resolver os problemas dos doentes crónicos que ainda estão nos hospitais psiquiátricos. Neste momento, tenho mais preocupação com algumas obras que já deveriam ter começado, várias já com contratos assinados há anos e que ainda não começaram.

Quais?
As situações que mais nos preocupam são os serviços de internamento. Estou a falar dos serviços da Unidade Local de Saúde (ULS) Viseu Dão-Lafões, da ULS de Matosinhos e da ULS de Entre Douro e Vouga. A sul do país, a requalificação do serviço da ULS do Algarve. Estão também em atraso as obras para a criação das unidades forenses de internamento nos hospitais Sobral Cid e Júlio Matos, que deviam ter avançado em 2022.

O facto de estas obras não terem avançado está a prejudicar os doentes? Há listas de espera?
Não, isso não é verdade. Estamos a construir serviços de internamento nos hospitais gerais, que ainda não os têm, para que não haja necessidade de internar um único doente em fase aguda nos hospitais psiquiátricos. E os internamentos em construção vão permitir que os doentes agudos possam ser tratados em contexto de hospital geral, porque isso hoje é fundamental. O nosso propósito é que a partir do dia 31 de dezembro de 2025 não haja mais doentes internados em hospitais psiquiátricos, tal como está disposto no decreto 113/21, de 14 de dezembro. Esta é uma das medidas absolutamente essenciais para Portugal se aproximar de outros países da Europa Ocidental.

Quer dizer que Portugal não está a cumprir as diretrizes europeias?
As diretrizes da União Europeia e da Organização Mundial da Saúde são claras neste sentido, os internamentos dos doentes agudos têm de ser feitos em hospitais gerais, porque há uma razão de ser. Ou seja, quando os doentes são internados num ambiente médico, com disponibilidade de outras especialidades e meios auxiliares de diagnóstico, a qualidade dos cuidados prestados é maior. A medicina é uma prática constante de colaboração, não funciona por silos verticais. Portanto, se me pergunta se, neste momento, estamos a cumprir completamente as diretrizes da UE ou da OMS, digo-lhe que não. Mas estamos a fazer um esforço grande para o conseguir dentro de pouco tempo. Mas considero que temos o mais importante: uma estratégia definida, apoio político e profissionais competentes e altamente dedicados.

Concretamente, e como coordenador nacional, qual é a sua principal preocupação?
Tenho várias preocupações, mas a mais premente é o compromisso com o PRR, porque temos de terminar tudo o que está planeado no prazo e a nossa data de execução é o final de 2025. Portugal não pode falhar esta oportunidade única de ter um financiamento de 88 milhões para a área da Saúde Mental e não cumprir prazos. Depois, outra preocupação: Como lidar com as perturbações mentais comuns, depressão e ansiedade? São patologias que não necessitam de recorrer aos serviços de psiquiatria, só em raras situações, e para as quais não há ainda uma resposta de âmbito nacional nos cuidados de saúde primários, com programas bem definidos, baseados na evidência científica, e nos quais devem intervir médicos de família, enfermeiros, psicólogos e psiquiatras. Neste momento, por exemplo, ainda faltam psicólogos, mas falta também implementar um modelo escalonado de cuidados, multidisciplinar.

A contratação de 100 psicólogos para os cuidados primários é uma das medidas do Governo...
Fiquei satisfeito por perceber que a medida tinha sido colocada no plano de emergência, porque é uma oportunidade para se criar programas para o acompanhamento em proximidade das pessoas que têm patologia ligeira a moderada, partindo do princípio que os psicólogos a contratar deverão integrar este tipo de programas, que foram considerados prioritários no Plano de Emergência da Saúde, mas nada sabemos da sua contratação.

Voltando às preocupações...
A saúde mental infantil e juvenil é outra preocupação da CNPSM, porque estamos perante um problema dramático de escassez de recursos humanos no SNS, em particular de médicos pedopsiquiatras. Isto não é novidade. E Portugal vai ter de investir largamente na constituição e reforço de equipas na área da Saúde Mental nos próximos anos para dar resposta às necessidades desta população, com a garantia de que este é o investimento que traz mais retorno a longo prazo. Por fim, outra preocupação: a escassez de programas de prevenção e de promoção da Saúde Mental. Temos de começar a apostar nestes programas, não podemos ficar à espera que as pessoas adoeçam.

Isto implica acompanhamento de proximidade, mas em 2023 não foram criadas equipas comunitárias, porquê?
Acabou de sair em breve a autorização para a contratação das equipas comunitárias que faltavam. Vão ser contratadas as que estavam em atraso de 2023, porque não tiveram autorização do Governo anterior, e as de 2024. Vamos ter mais 20 equipas comunitárias no terreno que se vão juntar às 20 que já existiam. Todos os distritos do país vão ficar servidos com equipas comunitárias, o que significa que vamos aumentar a resposta de proximidade à população. Estas equipas trabalham nos centros de saúde e acompanham os doentes em casa, nas unidades de cuidados continuados onde quer que estejam. É uma maneira completamente diferente de perspetivar a prestação de cuidados aos doentes. O nosso propósito era ter 40 equipas até ao final de 2025, mas vamos conseguir antecipá-lo em quase um ano. Esta medida também está prevista no PRR.

Falou na escassez dramática de profissionais no SNS como é que pode ser resolvida?
A pergunta dava para uma outra entrevista, uma vez que há várias dimensões envolvidas, mas pensamos que uma das vias possíveis poderá decorrer indiretamente da criação de Centros de Responsabilidade Integrada. Neste momento, temos 15 projetos piloto de CRI de saúde mental em várias Unidades Locais de Saúde. É um modelo de gestão que vai valorizar fundamentalmente o acesso, a proximidade e a continuidade de cuidados, prevendo incentivos para todos os profissionais da equipa quando os objetivos são atingidos. Estamos com projetos piloto, mas se funcionar espero que o modelo avance em todos os serviços de saúde mental.

Olhando para o que são as necessidades dos utentes como classifica a resposta do SNS?
Se me pergunta se estamos a dar uma resposta boa ao nível da doença mental grave, penso que sim e daremos ainda melhor quando nenhum destes doentes for internado num hospital psiquiátrico - o que está aqui em causa não é a dedicação e competência de quem trabalha em hospitais psiquiátricos, mas apenas o modelo, que está ultrapassado. Agora, se me pergunta se as pessoas que sofrem de perturbações mentais comuns estão a ter a resposta necessária, digo que não. E que Portugal está abaixo do nível exigível em termos de resposta.

Porquê?
Porque enquanto não houver programas para acompanhamento da depressão e ansiedade nos cuidados de saúde primários não vamos conseguir dar a resposta que os portugueses merecem. Sou muito franco nisto. É preciso maior investimento nos cuidados primários, criando as equipas e os programas com os meios necessários. Temos de perceber que a promoção e a prevenção da saúde mental tem tanto maior retorno quanto mais investimento se fizer.

É assim que se melhora a saúde mental de uma população?
É. Melhoramos a Saúde Mental com bons serviços de saúde e com bons programas de prevenção e promoção, mas também digo que só isto não chega. É preciso sair da esfera do Ministério da Saúde. Hoje sabe-se, cientificamente, que a maior parte das situações de depressão e ansiedade está associada a fatores que não são de natureza biológica, mas fatores que estão a montante. E ou atuamos a nível desses fatores ou não conseguimos evitar a subida da prevalência de situações como a depressão ou ansiedade.

Quais são esses fatores?
A pobreza, o desemprego, a desigualdade social, a dívida, por exemplo. Estes fatores estão claramente envolvidos no aparecimento da depressão e da ansiedade. Há, portanto, a necessidade de fazer adaptações fora do universo direto da saúde. Adaptar a legislação laboral, majorar o apoio da segurança social no período perinatal, garantir que há uma compatibilização entre os horários laborais e a disponibilização de creches, são tudo fatores com efeito protetor, numa perspetiva de saúde mental positiva. Da mesma forma, é necessário que haja uma adaptação na área do Ensino. É necessário que os currículos escolares deem mais atenção à questão da saúde mental, para que as crianças comecem a adquirir alguma literacia nesta área, não só em termos de saúde mental positiva, mas também de bullying, adições, etc. A promoção da saúde mental é crucial, e deve começar cedo.

A diretriz da UE no sentido em que a Saúde Mental deve estar em todas as políticas é difícil de assimilar em Portugal?
Sou otimista por excelência e penso que irá ser assimilada, mas cabe-nos a nós, cidadãos, fazer também pressão e sensibilizar o poder político, fora do Ministério da Saúde, para esta questão. Não é tarefa fácil, se fosse já estaria implementada em Portugal e na maior parte dos países, e não está. Temos de ir passo a passo. Mas volto a dizer que a adaptação da legislação laboral é uma das pedras de toque. Não há justificação para que um país como o nosso, tranquilo, seguro, com bom clima e em que as relações das pessoas são bastante razoáveis, seja aquele que continua a ter a maior prevalência de depressão na Europa. Alguma coisa está a correr mal. 

Que mensagem deixa neste dia?
Que a OMS definiu como tema para este ano “A Saúde Mental no Local de Trabalho”. Há empresas que já conseguiram mudar o seu modo de funcionamento e o modo como os seus trabalhadores trabalham para conseguirem ter ambientes favorecedores de uma saúde mental positiva. E esta é uma questão absolutamente decisiva. A saúde mental no trabalho e nas escolas são talvez os fatores mais importantes para a saúde mental de uma população, uma população que não tenha bom ambiente laboral, de uma forma geral, nunca terá uma boa saúde mental.

Tópicos: saúde mental, SNS