10 de janeiro de 1974. De manhã, ao descer a Avenida dos Aliados, reparei nas flores dos canteiros centrais: lembravam pirilampos baços no nevoeiro. Tive pena de não saber o nome daquelas flores. Um dia destes vou comprar um livro de botânica para principiantes.
Ao meio-dia, quando me sentei no Café, o nevoeiro tinha levantado, mas não se pode dizer que havia sol. Por coincidência, li na secção de curiosidades do jornal da casa que o nevoeiro chega a congelar nas regiões altas do país, formando pequenas estalactites nos ramos das árvores. Chama-se sincelo. Aprendi essa palavra hoje, entre a tabela das marés e a lista das farmácias de serviço. Gosto dos dias em que aprendo uma palavra nova. Sincelo.
Depois escrevi ao Zé, que está em Moçambique há 10 meses. O Serviço Postal Militar é grátis, mesmo para os lugares mais remotos do que resta do império. Tenho de ter cuidado com o que escrevo. A PIDE lê os aerogramas, há que ter tento na caneta.
“Amigo, espero que a coisa esteja suportável por aí. Tete fica perto da Rodésia, vi num mapa. Sei que pode soar mal, mas ao menos saíste do buraco sem esperança em que vivemos, onde o marasmo cria ténias no cérebro. Fui dar os sinais em novembro. Não há nada mais absurdo do que dar sinais. Sinais de pele? De fumo? Em breve chegará a minha vez de ser um soldadinho. A ideia deixou-me tão angustiado que fui a Matosinhos, ao Perdigão, comprar umas Levi’s Strauss originais, de contrabando. Os Pintos e o Porfírios só vendem Lois, que, além de caras, não têm a mesma pinta. Quando as pousei no chão, a ganga era tão crespa que as calças quase se aguentavam em pé. Valha-nos a música. Na cassete da BASF em anexo seguem dois álbuns para suavizarem o teu ordálio, palavra que descobri agora e que remete para calvário, via-sacra. Aprendia-a num dos álbuns que gravei na cassete: Selling England By the Pound, dos Genesis. Há lá um instrumental chamado After the Ordeal. O outro é dos Fotheringay, um disco difícil de arranjar, encomendei-o há meses na loja da Arnaldo Trindade, só chegou no Natal. Espero que a voz da Sandy Denny amenize a tua cruz, o teu ordeal, porque haverá sempre um After. Por falar em after, encontrei a Isabel, aquela miúda que abre caderninhos no Café, enquanto bebe leite achocolatado Primor, e toma apontamentos sobre sabe-se lá o quê. Perguntou por ti. Pareceu genuinamente interessada em saber como estás. Os caderninhos põem-na mais bonita. Ela é do tipo de dar mais atenção aos ausentes do que aos presentes. Quando a vejo, parece que me diz olá por favor.”
Noite. O que mais gosto na quadrada de snooker é o choque das bolas, a fumarada dos cigarros, o rumor de fundo, que é vital para me concentrar. Às vezes junta-se uma pequena plateia, entre eles o Silva, tido como bufo. Mas não leva nada do salão de bilhares. Aqui não se fala à tacada, não se gastam apartes. O Silva não tem nada a reportar a não ser o cálculo dos efeitos, a geometria, o giz, a ponteira dos tacos. O bilhar é lugar científico e ao mesmo tempo abismal. Outra palavra nova. Abismal.
Texto recolhido por Alexandra Tavares Teles