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Sociedade
07 outubro 2024 às 01h09
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Médicos fizeram quase dois milhões de horas extras e de prestação de serviço para garantir verão

Entre julho e agosto, os médicos dos hospitais fizeram mais de um milhão de horas extras e os médicos tarefeiros quase 900 mil para assegurar as urgências. Os sindicatos garantem que se não há mais serviços a fechar é à custa dos internos e tarefeiros. Para a DE-SNS a preocupação “é manter as urgências a funcionar”.

Em dois meses, julho e agosto, os médicos dos quadros hospitalares cumpriram mais de um milhão de horas extraordinárias, precisamente 1 081 657 horas, segundo os dados disponibilizados ao DN pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Os daddos revelam ainda que, no mesmo período, os médicos tarefeiros (prestadores de cuidados pagos à hora sem qualquer vínculo às unidades) cumpriram 893 024 horas. Ou seja, em dois meses foram feitas 1 974 681 horas extras e de prestação de serviços para assegurar sobretudo as escalas dos serviços de urgências. Mesmo assim, foram muitas as unidades do país que tiveram de encerrar portas por falta de médicos, nomeadamente nas áreas da Ginecologia-Obstetrícia e na Pediatria.

Os dois meses de verão comprovam uma aceleração da necessidade deste tipo de expedientes dos hospitais. No primeiro semestre de 2024, a média mensal de horas extra e prestações de serviço era de 938 mil por mês, tendo esse número médio subido para 950 mil por mês com a inclusão de julho e agosto, segundo os dados da ACSS. Falando em números totais até final de agosto, entre horas extra (4 256 582) e prestações de serviço (3 348 226) são já 7 604 808 milhões, quando ainda falta chegar o período de Inverno em que, por regra, há um novo pico no recurso às horas extras e às horas de tarefeiros por parte dos hospitais.

Os sindicatos da classe dizem mesmo que “se não houve e se não há” mais serviços a fechar é porque as falhas nas escalas estão a ser preenchidas maioritariamente por médicos internos e tarefeiros, havendo hospitais em que 1/3 das escalas são preenchidas com tarefeiros, outros em que estes já são metade e ainda alguns casos em que são quase a totalidade.

A falta de profissionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é uma das razões apontadas  para o  excesso de horas extras dos médicos dos quadros, bem como para as horas contratadas a prestadores de serviços. “A prática já está generalizada no SNS  e já pesa nos custos dos hospitais. Seria melhor dar condições aos médicos para se fixarem no serviço público”, comentou ao DN a presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá. 

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, diz não ter uma análise sistemática sobre os custos de cada hospital com horas extras e com tarefeiros, mas tem a certeza de que “é uma despesa que está a aumentar e a pesar nos orçamentos”. “No caso dos tarefeiros, por exemplo, posso dizer que, em muitas unidades, as escalas das urgência são asseguradas, pelo menos em metade dos turnos, por esses profissionais. E, noutros casos, acontece em mais de metade dos turnos”.


“Problema é generalizado no SNS”


Olhando para os custos, os dados da ACCS mostram que nos primeiros oito meses do ano as horas extra dos médicos dos quadros em todas as unidades do SNS e as que foram feitas por médicos tarefeiros já custaram ao Estado mais de 305 milhões de euros, 77 milhões dos quais nos dois meses de verão. A maior fatia da despesa diz respeito às horas extras (167,3 milhões de euros), seguindo-se a dos tarefeiros (137,8 milhões de euros).

Médicos e gestores dizem que o recurso à hora extra e a contratação de tarefeiros é prática generalizada no SNS, que agrava sempre no verão e no inverno e que terá tendência a aumentar ainda mais se nada se fizer para estancar a saída de médicos do SNS. Em 2023, os médicos dos quadros fizeram 6 558 477 de horas extras e foram contratualizadas  4 917 813 de  horas a médicos tarefeiros, o que para muitos profissionais “é impensável”. Alguns chegam a realizar 500 a 600 horas extras por ano, o que muitos começam a recusar,  fazendo apenas aquelas a que estão obrigados por lei (150 ou 250 por ano), dependendo dos seus contratos de trabalho.   

O presidente da APAH concorda que “o recurso a horas extras e a tarefeiros é um problema generalizado no SNS e com impacto nos custos”, com uma diferença: “Até meio deste ano, um médico tarefeiro custava mais do que um médico do quadro a desempenhar a as mesmas funções em horas extras, mas com o novo modelo de pagamento de hora extra aprovado por este governo temos o feedback de que o impacto já é idêntico” - a 12 de julho o Governo publicou o Decreto-Lei n.º 45-A/2024, que permite o pagamento da hora extra de forma progressiva, indo dos 40% até aos 70% da remuneração base por cada bloco de 40 horas extras realizadas.

Mas mais do que o impacto em termos de custo, o administrador considera que o problema é o impacto que pode ter em termos de qualidade dos cuidados, por haver equipas maioritariamente compostas por tarefeiros. “São profissionais que, muitas vezes, não são especialistas e que prestam serviço numa unidade completamente desenquadrados das equipas”.

A presidente da FNAM, Joana Bordalo e Sá, concorda, ressalvando: “Com todo o respeito que os colegas que trabalham como tarefeiros me merecem, porque estão a fazer um trabalho necessário, é preciso ter em conta que muitos deles não têm qualquer especialidade, e ainda deveriam ser enquadrados por médicos especialistas. E muitas vezes são atirados para a frente da batalha com os médicos internos, que precisam de ser também supervisionados, e este é o grande problema em termos de formação dos internos e dos cuidados”. 

A médica acrescenta: “Podemos dizer que temos urgências em que os internos acabam por ser entregues aos prestadores de serviço e não aos médicos especialistas do quadro, que eram quem devia estar com eles. Um interno tem de ter uma medicina tutelada e o que está a acontecer é bastante grave”. Joana Bordalo e Sá afirma ao DN que o sindicato que dirige tem recebido relatos de várias situações em que as equipas funcionam à base de tarefeiros e de internos. Aliás, reforça, “os serviços de urgência são cada vez mais assegurados por médicos internos, muitos de formação geral e ainda sem autonomia para praticar e outros já em especialidade, mas que ainda deveriam exercer medicina tutelada por especialistas e o que acontece é que em muitos casos só podem contar com os prestadores de serviço, muitos sem especialidade também”.


Braga, Guimarães, Leiria e Loures são alguns dos casos


A dirigente sindical assume não ter dados de todo o país, mas , diz, “sabemos, por exemplo,  que os serviços de urgência do Hospital de Braga tem tarefeiros na Pediatria, Cirurgia Geral e até em Urologia. O Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães, na triagem todos os médicos são prestadores de serviço, provenientes das levas de internos de formação geral que não escolheram especialidade e que vão ficando como tarefeiros, mas há também prestadores de serviço na Ortopedia e na Cirurgia. A urgência do Hospital de Leiria, que teve durante muitos dias a sua urgência de ginecologia e obstetrícia encerrada, passou de dois para quatro médicos tarefeiros na cirurgia, e na ortopedia já são quase todos tarefeiros. A área da medicina interna também só não fecha se tiver médicos tarefeiros”. O mesmo acontece com alguns hospitais da Grande Lisboa, nomeadamente no Beatriz Ângelo de Loures.

Joana Bordalo e Sá destaca ainda que esta realidade já afeta também urgências de grandes hospitais referindo que a do Hospital São João, no Porto, “também funciona com médicos prestadores de serviço na área geral e a um preço por hora variável, consoante a altura do ano, podendo ser de 70 euros em alturas de picos de afluência”.  

O secretário-geral do SIM, Nuno Rodrigues, contactado pelo DN, também confirma ter relatos desta realidade, referindo hospitais como Santarém, Setúbal e até de Torres Vedras. Helena Terleira, do Movimento de Médicos em Luta (MML), sustenta que esta realidade atinge mais unidades explicando que ao MML têm chegado relatos de urgências de hospitais como os de Chaves, Guarda, Vila Franca de Xira e Setúbal. 

DE diz que recorrerá a todos os meios para preencher escalas


O DN contactou a Direção Executiva do SNS para saber se confirmava esta realidade nas unidades públicas, se tem noção da dimensão que médicos e administradores dizem estar a ter e se tem medidas para resolver o problema. E António Gandra d’Almeida responde que “a principal preocupação da Direção Executiva, e do Governo, é a de manter os serviços de urgência a funcionar, de preferência com os profissionais que fazem parte do quadro das instituições”, assumindo que “quando isso não é possível, a DE recorrerá a todos os meios e aos muitos profissionais ao seu dispor para que as escalas fiquem preenchidas e os utentes tenham a resposta adequada”. O diredtor executivo sublinha que o organismo que dirige “e o Governo tudo farão para que as equipas tenham o apoio necessário para responder às necessidades da população e, assim, cumprir a sua missão”.

Para a presidente da FNAM, “a situação só se resolve com mais capacidade de contratação e de fixação de médicos no SNS”. O mesmo afirma o presidente da APAH. “É uma situação que nos preocupa muito e que temos discutido sempre que há essa oportunidade”. E destaca: “Os médicos sabem que as urgências estão a funcionar assim, a Ordem dos Médicos também e o Ministério da Saúde também. A questão é: como é que a conseguimos resolver. Na nossa opinião, só se se resolve com mais contratação para os quadros dos hospitais, mas esta é a grande dificuldade. Onde estão esses médicos para os podermos contratar? Que condições lhes podemos oferecer? E isto é difícil de resolver”.

Xavier Barreto defende que o SNS tem de ser mais competitivo na contratação dos profissionais através do aumento dos salários base, que é também uma reivindicação dos sindicatos da classe. Além disso, “é preciso pagar mais aos melhores e de forma a que os médicos queiram trabalhar as 40 horas no SNS”, considerando até que um modelo de exclusividade pode ser importante mas não é fundamental nesta altura de crise. Para o administrador a prioridade é resolver “situações de desigualdade no pagamento aos médicos do quadro e aos tarefeiros”. 

A dirigente da FNAM refere o mesmo. E ambos consideram que seria “muito melhor que os colegas que fazem prestação de serviço integrassem os quadros dos hospitais e as suas equipas”, pois “é completamente diferente trabalhar numa equipa estruturada e em igualdade de condições de trabalho, do que estar a executar as mesmas funções que outros que ganham valores superiores”, reforça o presidente da APAH.

Joana Bordalo e Sá alerta também para o facto de “o modelo aprovado em julho pelo Governo para pagar a hora extra não estar a resultar do ponto de vista dos cuidados”. “Este verão atingimos números máximos de serviços de urgência completamente encerrados. O que prova que o problema do SNS não se consegue resolver pelos serviços de urgência. É ao contrário, tem de ser um trabalho que tem de ser pensado a médio e longo prazo”, explica, apontando o dedo mais uma vez ao Governo e à ministra Ana Paula Martins: “Não há uma medida no Plano de Emergência e Transformação para a Saúde que garanta mais médicos no SNS”.

O bastonário dos médicos, Carlos Cortes, também já defendeu que o recurso a médicos tarefeiros tem de ser “uma medida transitória”, sendo necessário “medidas de fundo” para o recrutamento e fixação de médicos no Serviço Nacional de Saúde.