Tortura nas prisões
12 junho 2024 às 07h18
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Provedora de Justiça participou ao MP oito casos de agressões a reclusos em 2023

Nas visitas-surpresa efetuadas em 2023 a 16 prisões, o Mecanismo Nacional de Prevenção da tortura/Provedoria de Justiça encontrou evidências de agressões a reclusos e comunicou-as ao Ministério Público. Seis das denúncias foram “suportadas por imagens de videovigilância”. Serviços Prisionais "não comentam".

Pela primeira vez desde o início do seu funcionamento, em 2014, o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura (MNP), que funciona na Provedoria de Justiça e efetua visitas-surpresa a locais de detenção com o objetivo de prevenir situações de tortura, maus-tratos ou outros abusos, efetuou participação direta ao Ministério Público (MP) de indícios de agressões de guardas prisionais a reclusos

São, de acordo com o comunicado pelo Gabinete de Imprensa do MNP/Provedoria ao DN, “oito casos de agressão por guarda prisional a recluso, dos quais seis eram suportados por imagens de videovigilância e dois por elementos documentais e testemunhais”. 

Segundo a mesma fonte, “estes factos, com potencial relevância penal, foram transmitidos pelo MNP à Procuradoria-Geral da República [PGR] através da identificação do estabelecimento prisional em causa, da data dos factos (…)” e, quando possível, da identificação de vítimas e perpetradores.

As evidências das agressões foram recolhidas pela equipa do MNP/Provedoria nas visitas, realizadas durante o ano passado, a 16 prisões. De acordo com os sumários dessas visitas, publicados no site da Provedoria a 21 de maio, as imagens de videovigilância referidas dizem respeito aos Estabelecimentos Prisionais (EP) de Lisboa, Linhó e Vale de Judeus - respetivamente dirigidos por Maria Isabel Vicente Flores, Ana Paula Campos Gouveia Pardal e José Ribeiro Pereira

Nos telegráficos relatórios de tais visitas, patentes no site da Provedoria - e pela primeira vez tornados públicos, já que anteriormente eram apenas enviados para “a autoridade responsável pelo local de privação de liberdade” -, o MNP afirma também ter encontrado “indícios fortes de agressões a reclusos por guardas prisionais em salas sem cobertura de videovigilância” na penitenciária de Custóias/Porto, assim como “relatos verosímeis de agressões repetidas em locais sem videovigilância” no Linhó, e, no EPL, “fortes indícios de agressões a reclusos, especialmente no período de entrada no estabelecimento prisional”.

No EP de Monsanto, a equipa do MNP encontrou imagens de videovigilância relativas a um caso de agressão cujo auto de visionamento omitira factos relevantes, resultando numa “instrução ineficiente” e na não abertura de um inquérito

Dos sumários parece poder deduzir-se que as evidências de agressões que o MNP comunicou às autoridades criminais não haviam sido investigadas convenientemente (ou de todo) nos EP, nem objeto de denúncia prévia ao MP. Aliás, é referido que vários funcionários prisionais alegaram desconhecer “o dever de denúncia ao Ministério Público quanto a factos passíveis de configurar maus-tratos ou tratamento degradante a recluso” - alegação que o MNP já havia anotado no seu relatório anual de 2022.

A título de exemplo, na sua visita em 2023 ao EP de Sintra, dirigido por João Manuel do Couto Guimas, o MNP constatou “omissão do dever de denúncia ao MP em dois casos de ofensa à integridade física de recluso”; "omissão de responsabilização disciplinar e de denúncia ao MP perante um caso de comprovada falsificação de participação de uso de meios coercivos, realizada com o objetivo de legitimar agressão a recluso”; “omissão de auto de visionamento de imagens de videovigilância em alguns processos de uso de meios coercivos” (o que também é referido no sumário da visita ao EP de Coimbra); “omissão de audição de testemunhas indicadas por reclusos em inquéritos de uso de meios coercivos” e “várias falhas nos meios jurídicos de averiguação de maus-tratos”. Da visita ao EP de Santa Cruz do Bispo (Feminino) resultou a evidência de que não fora aberto inquérito para averiguações de dois casos de alegações de maus-tratos. 

As participações de crimes ao MP, esclareceu o MNP ao DN, foram comunicadas à DGRSP, “de forma a que o respetivo Serviço de Auditoria e Inspeção promovesse, paralelamente, a averiguação da responsabilidade disciplinar dos funcionários”. O MNP adianta ainda ter conhecimento de que, até à presente data [6 de junho, quando respondeu às perguntas do jornal], “seis dos casos comunicados ao MP foram já objeto de inquérito ou processo disciplinar contra os guardas prisionais envolvidos”.

“A DGRSP não comenta relatórios de outros organismos”

Questionado sobre se recebeu algum comentário ou esclarecimento da DGSP em relação às situações relacionadas com evidência de maus-tratos, agressões e não investigação/denúncia das mesmas, o Mecanismo responde afirmativamente: “O MNP mantém um diálogo regular e colaborativo com a DGRSP e regista positivamente o posicionamento manifestado pelo Senhor Diretor-Geral quanto a uma “política de tolerância zero” relativamente a situações de maus-tratos a reclusos”

Todas as direções dos estabelecimentos prisionais, informa também este departamento da Provedoria de Justiça, “se pronunciaram sobre as recomendações vertidas no relatório de visita do MNP, designadamente quanto a indícios ou evidências de maus-tratos e quanto ao respetivo tratamento”. 

O MNP diz ainda ter conhecimento de que, "até à presente data [a resposta ao DN, a 7 de junho], seis dos casos comunicados ao Ministério Público foram já objeto de inquérito ou processo disciplinar contra os guardas prisionais envolvidos”.

Quaisquer que tenham sido os esclarecimentos prestados ao MNP pelos EP e os mencionados comentários da DGRSP, esta, dirigida pelo psicólogo forense Rui Abrunhosa Gonçalves desde agosto de 2022, não entendeu dever comunicá-los publicamente. 

Confrontada pelo DN com as afirmações mais graves do MNP nos relatórios das visitas de 2023 às prisões, respondeu: “A DGRSP não comenta relatórios de outros organismos como sejam, a título de exemplo, os do Mecanismo Nacional de Prevenção da Provedoria de Justiça e da Inspeção Geral dos Serviços de Justiça. Esta Direção Geral colabora lealmente com estes organismos, respondendo, em sede própria, a todas as questões que lhe são colocadas, acolhendo como uma mais-valia os reparos que lhe são feitos e procurando responder positivamente às recomendações que lhe são dirigidas”. 

Aparentemente, a DGRSP não considerará a sindicância por jornalistas “sede própria” para esclarecer se confirma ou desmente as gravíssimas afirmações efetuadas por um organismo de prevenção da tortura, nomeadamente no que respeita a um alegado desconhecimento da lei por parte dos seus funcionários. 

Ainda assim, sublinha que “as imagens referidas pelo MNP foram recolhidas pelos sistemas de CCTV dos Estabelecimentos Prisionais e partilhadas com o MNP pelos Serviços desta Direção Geral, sendo que o sistema de CCTV, para além de auxiliar de vigilância e de segurança, pretende ser um fator de dissuasão de comportamentos desadequados, podendo constituir também um elemento de prova.”

E acrescenta: “Todas as denúncias de maus tratos que chegam ao conhecimento desta Direção Geral, independentemente da via por que chegam, são objeto de comunicação ao Serviço de Auditoria e Inspeção [SAI, a inspeção interna, que depende diretamente do diretor-geral] desta Direção Geral, que é coordenado por Magistrados do Ministério Público em comissão de serviço e, nos casos em que estas denúncias se configuram como crime, procede-se às devidas comunicações ao Ministério Público”.

Serviços Prisionais não esclarecem se comunicaram alguma agressão ao MP

Não foi porém possível obter da DGRSP uma resposta sobre o número de suspeitas de agressões que, em 2022 e 2023, foram participadas ao MP pelos seus serviços. 

Também não foi diretamente esclarecido se os oito casos participados pelo MNP/Provedoria em 2023 ao MP tinham sido antes objeto de investigação interna e comunicação ao Serviço de Auditoria e Inspeção (SAI) e/ou ao MP por parte dos EP nos quais ocorreram.

A resposta dada pela DGRSP a essa pergunta específica foi esta: “Nenhuma alegação de agressão de guardas a reclusos, sempre que minimamente fundada, fica por investigar ou comunicar ao MP, sendo a DGRSP a primeira interessada na eliminação deste tipo de comportamentos, sempre que ocorram. Em 2023 foram abertos 38 processos desta natureza, tendo sido arquivados cerca de 28, tendo havido acusação em dois e encontrando-se sete ainda em investigação.”

Outra pergunta enviada pelo jornal que não obteve resposta foi a que visava esclarecer quantas queixas foram em 2023 e 2022 apresentadas por reclusos contra guardas por agressão/maus-tratos. 

Assegurando que “esta estatística é regularmente comunicada às entidades externas com competência nesta matéria, nomeadamente o Comité Europeu de Prevenção para a Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes”, a DGRSP não a comunicou, porém, ao DN. Antes reportou que “desde 2020 foram registados 140 inquéritos/processos disciplinares por uso excessivo da força e mau tratamento no interior dos estabelecimentos prisionais, bem como 362 processos de inquérito relacionados com a necessidade de aplicação de uso de meios coercivos, dos quais 10 resultaram em procedimento disciplinar tendo originado sete sanções disciplinares a Guardas Prisionais.”

 Assim, se os 10 procedimentos disciplinares que originaram sete sanções dizem respeito ao universo total referido (140 mais 365, de 2020 a 2023), só 2% dos inquéritos/processos citados resultaram em procedimentos disciplinares e pouco mais de 1% a sanções disciplinares. 

Distribuindo o número de procedimentos disciplinares e de sanções pelos referidos quatro anos, obtém-se, respetivamente, 2,5 procedimentos e 1,75 sanções/ano. 

Em contraste, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023, recentemente publicado, indica, na secção sobre Justiça e Sistema Prisional, que no ano passado houve 36 agressões de reclusos a guardas prisionais. Questionada sobre se esse número corresponde a denúncias em investigação ou a inquéritos já finalizados, a DGRSP esclarece que “os dados respeitantes às agressões a elementos do corpo da guarda prisional constantes do RASI contabilizam as comunicações registadas nos Serviços Centrais desta Direção Geral e das quais resultaram os devidos procedimentos disciplinares e subsequentes comunicações ao Ministério Público.”

Lei de 2021 permitiu a Mecanismo investigar melhor

Já no relatório de 2022 o Mecanismo manifestava a sua estranheza face à “inexistência ou insuficiência de inquéritos por agressão” nos Serviços Prisionais: “Durante o ano de 2022 e na totalidade dos EP foram instaurados 26 processos de inquérito contra trabalhador por invocada agressão a recluso.” Desses 26, informava o MNP com base no que lhe fora transmitido pela DGRSP/SAI, metade fora arquivada e estava pendente outra metade, tendo existido zero pronúncias. Concluía o MNP: “Em alguns estabelecimentos, como é o caso dos EP do Porto, de Vale de Judeus e de Monsanto, o número de processos de inquérito por agressão pareceu bastante reduzido quando comparado com o volume de alegações de maus-tratos que o MNP recebeu durante as visitas, o que suscitou preocupação acerca do tratamento conferido a alegações de reclusos sobre condutas abusivas por parte de elementos de segurança.”

Adiantando ao DN que “está em curso a definição de mecanismos de articulação entre o MNP e o Serviço de Auditoria e Inspeção, tendo em vista uma maior celeridade na sinalização e acompanhamento de casos de maus-tratos”, o Mecanismo explica por que motivo só este ano esteve em condições de participar ao MP suspeitas/evidências de crimes encontradas nas suas visitas.  

É que o Mecanismo foi, por via de do Decreto-lei 80/2021, de 6 de outubro, “reconhecido legalmente como um departamento da Provedoria de Justiça” (artigo 15º do decreto-lei), permitindo que passasse a dispor de uma equipa própria, e que esta pudesse “aprofundar a triangulação dos relatos e informações recolhidas durante as visitas, através da utilização de vários métodos e fontes, como sejam a visualização de imagens recolhidas por sistemas de videovigilância, o diálogo com elementos dos serviços clínicos e jurídicos, com elementos da segurança e técnicos, assim como a consulta de documentos, por exemplo, relatórios clínicos e relatórios de ocorrências diárias (elaborados, no caso dos EP, pelo guarda chefe de cada ala, e, no caso das esquadras, pelo graduado de serviço)”. 

Igualmente, terá passado a ser possível “o alargamento da monitorização de aspetos procedimentais por meio da consulta sistemática de processos”, analisando, nos EP, “processos disciplinares e processos de inquérito por uso de meios coercivos ou por alegada agressão a recluso”.

O DN solicitou à Procuradoria-Geral da República informação sobre o seguimento dos oito casos participados pelo MNP em 2023, e sobre o número de queixas/inquéritos relativos a agressões/maus-tratos de reclusos por guardas-prisionais em 2022 e 2023. Até à publicação deste artigo não foi possível obter as respostas.