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Sociedade
21 setembro 2024 às 00h03
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“O que vais fazer com uma faca?” Crimes juvenis com arma branca estão a crescer

Os números aumentam em toda a Europa. Em vários países foram criadas equipas especializadas para intervenção em crimes juvenis com recurso a facas. Em Portugal, nos últimos anos, as armas brancas ganharam visibilidade entre os jovens, mas faltam dados estatísticos.

Jovens e facas: um problema à escala internacional. Os números crescem, ao mesmo tempo que a idade dos agressores é cada vez mais baixa. Em Londres - dados de 2021 -, mais de dois terços das ocorrências com facas foram da autoria de crianças e jovens dos 10 aos 25 anos. Desses, metade eram menores de 18 anos e 8% tinham entre 10 e 14 anos. Números que levaram as autoridades a patrocinar uma campanha dirigida aos jovens que incluiu histórias de rapazes e rapariga sobreviventes. E a criar equipas especializadas para intervenção em crimes juvenis com facas.

Em França, a mesma urgência.  Com o mote “Que vais fazer com uma faca?”, brigadas de mediadores especializados na intervenção em conflitos entre jovens atuam em espaços públicos, sobretudo junto de escolas.

A Suíça, que em 2017 registava três tentativas de esfaqueamento por menores, viu os números evoluírem para 36, em 2020. Os homicídios - 32 em 2019 - aumentaram para 75, em 2020. E os furtos com esfaqueamento passaram de 287, em 2019, para 359 em 2020.

Em Bruxelas - dados de 2021 -, um em cada cinco jovens dizia trazer consigo uma faca/arma branca.

“Em Portugal há todo um trabalho que está a ser feito no âmbito do programa Escola Segura. Podemos dizer com segurança que, nos últimos anos, em homicídios e tentativas de homicídio entre jovens as facas ganharam outra visibilidade. Mas não há números e as informações quantitativas escasseiam, assim como outras de diferentes dimensões”, diz a investigadora Maria João Leote de Carvalho, especialista em delinquência juvenil.

Porém, dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais citados no estudo da Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta, publicado em 2024 referentes a 2023, dizem-nos que, em situações de Acompanhamento Educativo ou de Internamento em Centro Educativo, sempre que “houve ameaça ou utilização de armas, a maioria foram armas brancas - navalhas, facas, e outros objetos” cortantes.

O perfil

Jovens e crianças do sexo masculino, especialmente urbanos, idade-chave de 14-15 anos, com experiências adversas na infância - de abuso ou negligência, a criminalidade paterna, passando pelo insucesso escolar. Eis o perfil-tipo do portador de faca entre jovens. 

Maria João Leote de Carvalho, socióloga, investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa contextualiza: “A faca reforça a autoafirmação. Trata-se de ganhar respeito, credibilidade e estatuto.”

A popularização e a normalização da posse e uso das facas (maioritariamente domésticas) entre os jovens, ainda que possa ter por base preocupações de defesa pessoal provocadas pela mediatização do medo, sentimentos de insegurança ou falta de confiança na polícia, “rapidamente descamba em agressão”, diz a socióloga. “Mas ainda que seja apenas usada como arma de defesa, andar com uma faca revela, desde logo, o elevado grau de aceitação da violência por parte de jovens”. De facto, a arma branca obriga a uma proximidade física com a vítima, a força física, e a um contacto pacífico com sangue.

“A faca confere um certo estatuto entre os pares e é também uma questão cultural. Antigamente, os homens traziam um canivete no bolso.”

A popularidade da faca encontra ainda justificação na radicalização juvenil. A socióloga lembra as imagens de decapitações, disseminadas pelo Estado Islâmico.  “A faca ganha estatuto, revela poder, e não é por acaso que os grupos terroristas procuram jovens de idades cada vez mais baixas”, diz Maria João Leote de Carvalho.  

Gatilhos e inspirações

“Vivemos em contexto de guerra na Europa. A juventude está exposta permanentemente a violência, na Ucrânia ou em Gaza. É preciso combater essa banalização da violência”, aconselha a investigadora.

Mas há mais razões: “Rapazes e raparigas são invadidos e inundados de informação. Estão em grupos de WhatsApp fechados. O uso de redes sociais por crianças e jovens cresceu em Portugal nos últimos anos, particularmente entre os mais novos, com idades abaixo do limite mínimo indicado para acesso a diferentes redes.”

E aí há dados nacionais. “Comparativamente com outros países europeus, os jovens portugueses estão entre os que mais as usam - YouTube, WhatsApp e Instagram são as mais representadas -, e entre os que mais avaliam as suas competências digitais de modo positivo”, defende a investigadora em artigo publicado em 2022.

“O estudo EU Kids Online  revela que, em Portugal, o smartphone  é o meio dominante usado por crianças/jovens (9-17 anos) para aceder à internet diariamente, prevalecendo o uso de redes sociais (75%), práticas comunicativas (75%) e de entretenimento, como ouvir música/ver vídeos (80%)”, pode ler-se.

O uso da internet é iniciado mais cedo. As raparigas participam mais em redes sociais, que usam sobretudo para comunicar com amigos e familiares, ouvir música. Os rapazes procuram grupos de interesse/hobbies, aceder a notícias e videojogos. À medida que a idade avança, aumenta o uso de redes sociais.

“A principal motivação é o acesso ao grupo de pares, sendo diminuta a percentagem dos inquiridos sem autorização para usá-las” e “cerca de um quarto da população nesta pesquisa (23%) viveu, no ano anterior, situações na internet perturbadoras”. 

Bullying (24%) é das situações mais mencionadas, predominando o cyberbullying  relativamente ao cara a cara. A exposição a pornografia (37%) e sexting (1 em cada 4 entre os 11-17 anos, 29% das raparigas e 44% dos rapazes) adquirem particular expressão. Perto de um terço dos rapazes (30%) e 7% das raparigas receberam mensagens sexuais por texto, imagens ou vídeos.

Relevantes são também os dados do Health Behaviour in School-aged Children em Portugal HBSC/PT-2018 sobre o papel das redes sociais no quotidiano dos jovens inquiridos. “Tentar estar menos tempo, mas não conseguir (26%); sentir-se mal quando não pode utilizá-las (20,9%); não conseguir pensar noutra coisa que não voltar a usá-las (20%)”.

Perto de metade indicou passar duas ou mais horas/dia a usar redes sociais.

O Anjo da Faca

No Reino Unido, o crescente aumento, sobretudo entre os jovens, do número de crimes praticados com armas brancas fez o Programa Nacional Antiviolência da Juventude  levar a várias cidades, em tournée, uma escultura simbólica - o Anjo da Faca. A obra é de 2019 e resulta da iniciativa da Associação dos Ferreiros do Reino Unido.

Trata-se da imagem muito perturbante de um Anjo, construído com mais de 100 000 lâminas apreendidas, criação que pretende destacar os efeitos negativos do comportamento violento e celebrar, enquanto memorial, as vidas que foram perdidas por meio dessas ações violentas. “O nosso principal objetivo com a criação do Anjo da Faca é educar e aumentar a conscientização nacional sobre antiviolência e a antiagressão. Não apenas conseguimos isso como, com a ajuda de comunidades, polícias, conselhos e do Ministério do Interior, fomos além do que sonhávamos ser possível”, dizem os autores.