Clima
23 janeiro 2024 às 05h14
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Em 2023, o clima bateu recordes. 2024 pode ultrapassá-los

A temperatura da superfície dos oceanos aumentou, foram ultrapassados recordes de precipitação com décadas e em vários locais isso conduziu a cheias históricas, mesmo mortais. Já no início deste ano, os países escandinavos foram assolados por uma onda de frio que também está relacionada com o aquecimento global.

O final de 2023 trouxe uma confirmação já esperada: o ano foi considerado o mais quente do planeta desde que há registo. Mas esse não foi o único registo climático quebrado em 2023, veio acompanhado de vários outros. Em vários locais do mundo, como Madrid ou Hong  Kong, foram batidos recordes de precipitação máxima num dia, tendo sido atingidos valores que não eram registados há várias décadas. Os oceanos estão a aquecer cada vez mais, o nível do mar continua a subir e o ano que se segue pode ultrapassar os recordes do que passou.

“Este é um recorde sem precedentes”, afirma Pedro Nunes da associação ambientalista Zero. Em 2023, segundo dados da NASA e do Copérnico, o Programa de Observação da Terra da União Europeia, registou-se um aquecimento global de cerca de 1,5 graus Celsius, também o limite colocado pelo Acordo de Paris. O ano passado ultrapassou em 0,17 graus o de 2016, que era considerado até agora o mais quente de sempre. “Normalmente estes recordes são batidos por 0,01ºC, mas neste caso tivemos 0,17 graus. Estamos com níveis de médias de temperatura que estão a suplantar aquilo que os modelos climáticos previam. Os modelos previam que atingíssemos temperaturas deste nível só mais perto de 2030”.

O professor e investigador Filipe Duarte Santos acrescenta ainda que os fenómenos extremos, sejam eles ondas de calor, de frio, níveis elevados de precipitação ou outros, estão a tornar-se mais frequentes em todo o planeta. “No que respeita à precipitação também temos eventos extremos, eventos de precipitação muito elevada em intervalos de tempo curtos, que têm tendência a provocar inundações e também secas mais frequentes e mais prolongadas”, explica Filipe Duarte Santos. 

No passado mês de agosto, na China, registou-se uma semana de precipitação intensa que causou inundações históricas. Num dos reservatórios foram registados 744.8 milímetros de chuva, o valor mais alto desde 1891. Também no Paquistão, chuvas recorde causaram milhares de mortos e milhões de deslocados. Por outro lado, no Corno de África, cinco épocas consecutivas de seca foram seguidas de grandes inundações, devido à falta de capacidade do solo de absorver a água das chuvas.

Também em agosto de 2023, a temperatura da superfície dos oceanos atingiu um recorde de 20,98 graus Celsius, de acordo com dados do programa Copérnico. Os oceanos são responsáveis por absorver 90% do excesso de energia provocado pelo aumento do efeito de estufa. “O oceano é um grande regulador do clima e da temperatura que depois temos no ar. Ora, ao aquecer, deixa de ter a capacidade de regular a temperatura do ar atmosférico”, adverte Pedro Nunes, da Zero.

Filipe Duarte Santos explica que a emissão para a atmosfera de gases poluentes intensifica o efeito de estufa na atmosfera da Terra e tem como consequência o aquecimento global. “Esse excesso de energia térmica não vai só para a atmosfera, vai também para o oceano, que é mais difícil de aquecer. No entanto, temos visto que os oceanos também já aumentaram a sua temperatura, sobretudo à superfície. Este aquecimento tem depois consequências na interação com a atmosfera, nas correntes oceânicas, nos ecossistemas marinhos”. Este aquecimento oceânico gera ciclones tropicais mais intensos, pois é um tipo de fenómeno que ganha energia a partir da temperatura.

Entramos em 2024 e nos países escandinavos, que estão neste primeiro mês do ano a passar por uma onda de frio, já se batem recordes de temperaturas negativas. Por exemplo, no dia 3 de janeiro, na Suécia, os termómetros chegaram aos -43,6ºC, a temperatura mais baixa do país no mês de janeiro desde 1999.

Pedro Nunes, da Zero, lembra que também o fenómeno das ondas de frio pode estar relacionado com o aquecimento global. Segundo o técnico da associação ambienlista, o degelo no Ártico e o enfraquecimento das grandes correntes de ar em termos globais podem fazer com que um dia mais quente no Ártico traga frio para regiões contíguas, como a Europa e a América do Norte. É um fenómeno físico: o calor acaba por fazer com que o ar frio, antes concentrado no Ártico, se espalhe por outras regiões. “Ou seja, é mais fenómeno relacionado com o aquecimento global”.

O que fazer perante estes extremos?

A adaptação e a mitigação são as soluções que os especialistas ainda consideram possíveis para lidar com o problema das alterações climáticas. A mitigação pressupõe impedir que as alterações escalem e voltar aos níveis corretos de vários indicadores, enquanto que a adaptação surge quando já não há outras soluções à vista. “Diria que a melhor forma de adaptação ainda continua a ser a mitigação, porque ainda temos bastante margem para mitigar o problema. E a melhor forma de o mitigar é de facto atacando a origem dele através da redução de emissão de gases com efeito de estufa, que tem de ser feita neste momento de forma drástica”, considera a Zero. Pedro Nunes relembra ainda que fica muito mais caro às sociedades adaptarem-se ao problema do que o mitigarem, recorrendo a meios como as energias renováveis, “que ainda são relativamente baratas”. 

Quanto a instrumentos que podem ser utilizados na adaptação, Pedro Nunes entende que para as medidas serem realmente eficazes dependem de uma implementação mais local e regional destes meios aprovados a nível nacional e comunitário. Alguns exemplos incluem o Pacto Ecológico Europeu ou o Objetivo 55, o plano da União Europeia para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa deste bloco em 55% até 2030. A nível nacional, o Plano Nacional de Energia e Clima ou o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 colocam medidas para combater o impacto das alterações climáticas.

A Zero relembra ainda que, a nível nacional, os municípios portugueses têm até fevereiro de 2024 para apresentar os planos municipais de ação climática, que devem contemplar como é que pretendem adaptar-se à falta de água, à questão da seca, do calor e outros aspetos. “É através destes planos, e da sua implementação e desenho eficazes, que conseguimos responder em termos de adaptação enquanto sociedade”.

Pedro Nunes considera que é provável que 2024 venha a ser de novos recordes, pois “estes fenómenos têm tendência a retroalimentar-se. Temos os chamados pontos de inflexão, que são pontos que, quando quebrados,  tornam muito difícil voltar atrás e aceleram cada vez mais”. A influência do El Niño também pode contribuir para que recordes sejam quebrados. O El Niño é responsável por anos considerados  secos ou muito secos e consiste no aumento da temperatura das águas do oceano Pacífico na sua porção equatorial, tendo depois impacto no clima regional e global.

“Todos estes eventos extremos vão acontecer com maior frequência e, de certa forma, tornar-se mais normais. Portugal terá de  adaptar-se a um clima mais seco, com eventos extremos de seca mais frequentes”, conclui o professor Filipe Duarte Santos.

Eventos extremos em 2023

Incêndios no Canadá
Começaram em abril de 2023 e queimaram 18,5 milhões de hectares,  ultrapassando o recorde anterior de 1995, de 7,1 milhões de hectares. O fumo dos incêndios provocou um aumento da poluição atmosférica em Montreal e Nova Iorque no início de junho.

Calor no Brasil 
Em agosto, inverno no hemisfério sul, a cidade de Cuiabá, no centro do Brasil, atingiu a temperatura recorde de 41,8ºC. Todo o país foi atingido por uma onda de calor. Os climatologistas apontam como causas prováveis as alterações climáticas e o fenómeno El Niño.

Marrocos +50ºC
A estação metereológica de Agadir, em Marrocos, registou, pela primeira vez, uma temperatura máxima de 50,4ºC a 11 de agosto.  O recorde anterior tinha sido registado em Smara, no Saara ocidental, a 13 de julho, com os termómetros a registarem 49,9ºC.

Incêndios na Grécia
Entre final de agosto e início de setembro, o nordeste da Grécia foi devastado por vários incêndios, os maiores de que há registo na União Europeia. Queimaram 93.000 hectares de terreno. Cerca de 25% deste país é coberto por floresta.

Seca em África
Cinco épocas consecutivas de seca no Corno de África foram seguidas de grandes inundações devido à falta de capacidade do solo para absorver a água. A secura do solo aumentou o risco de inundações quando começou a época de chuvas, em abril e maio.

Cheias no Paquistão
Chuvas recorde causaram inundações em mais de um terço do país, causando 1739 mortos e deixando mais de vinte milhões de pessoas sem casa. As inundações arrasaram edifícios inteiros, derrubaram pontes e romperam mais de 40 reservatórios.

Chuvas na China 
No mês de agosto foi registada uma semana de precipitação recorde que provocou inundações massivas no norte da China. A cidade de Pequim foi a mais afetada, com estradas inundadas e voos cancelados. Aldeias em zonas montanhosas ficaram isoladas.

sara.a.santos@dn.pt