Habitação
30 junho 2024 às 09h32
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Fisco boicota indemnização de senhorios com rendas congeladas

Lei de Governo PS atribuiu a senhorios com rendas “antigas” uma compensação financeira que pode ser pedida a partir de segunda-feira 1 de julho. Mas um dos documentos necessários não é “passado” pelo Fisco, que não responde aos pedidos. Atual executivo não dá explicações.

Trata-se de uma das últimas leis aprovadas pelo Governo do Partido Socialista, na sequência do Programa Mais Habitação: para “compensar” os proprietários de imóveis com contratos de arrendamento habitacional anteriores a 1990, que não puderam aumentar as rendas durante décadas, foi concedida a possibilidade de, a partir de 1 de julho, aqueles requererem ao Estado, através do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), uma indemnização mensal. Para tal, como determina o Decreto-Lei 132/2023, têm de apresentar vários documentos, incluindo o comprovativo de pedido de isenção do IMI relativo a 2024.

Porém a Autoridade Tributária (AT) não está a fornecer esse documento, e até este sábado o ministério das Finanças não deu qualquer esclarecimento sobre tal recusa. Inquirido pelo DN a 21 de junho, o ministério, após insistência do jornal, referiu ter pedido informação à AT, a qual não teria chegado. Também no ministério das Infraestruturas e Habitação, confrontado pelo jornal esta sexta-feira com a impossibilidade de os proprietários com direito à compensação poderem requerê-la se não possuem um dos documentos que a lei impõe como necessários, foi apenas adiantado: "Deve estar por horas".

De resto, até às 17 horas de sexta-feira 28 de junho, nem na página do IHRU nem no Portal da Habitação havia qualquer referência à compensação e aos passos necessários para a solicitar - segundo informou nesse mesmo dia o ministério da tutela, perante uma pergunta do DN, o formulário necessário só estará disponível exatamente no primeiro dia de julho

Fisco diz que é cedo para fornecer documento

Sucede que, como referido, a AT não está a responder aos pedidos dos proprietários para “passar” o comprovativo necessário em relação à isenção de IMI - o que em princípio impedirá a submissão dos requerimentos de indemnização. 

Uma vez que o direito àquela só se inicia a partir do momento em que o pedido - convenientemente instruído - dê entrada no IHRU, a impossibilidade de obter o documento da AT determina que a compensação não será paga, e que o Estado pode assim poupar o valor correspondente. Esse valor, de acordo com um cálculo revelado em novembro de 2023, num estudo encomendado pelo anterior governo (Relatório sobre o arrendamento habitacional em Portugal, publicado pelo IHRU), corresponderia, para o universo de todos os contratos anteriores a 1990 e nos termos da indemnização prevista na lei, a cerca de dois milhões de euros mensais. 

A justificação alegada pela AT para não disponibilizar o comprovativo do pedido de isenção é de que o IMI em causa diz respeito ao ano corrente - a isenção referida está consagrada no Orçamento de Estado de 2024 - pelo que só será sujeito a liquidação em 2025. Ou seja, a AT acha cedo para disponibilizar a funcionalidade que permite requerer a isenção.

Isto apesar de haver senhorios que estão a tentar obter informações sobre o referido documento desde o primeiro trimestre de 2024. Numa troca de mensagens, através do e-balcão, iniciada em março, e à qual o DN teve acesso, uma proprietária  pergunta o que deve fazer para solicitar a isenção do IMI relativo a 2024, frisando que sem a apresentação de prova do pedido dessa isenção não lhe será possível efetuar o requerimento da compensação, e que o direito à mesma se inicia em julho.

A resposta da AT, de 22 de março, foi: “Cumpre informar que iremos re-analisar o seu pedido. Será informada por esta mesma via. Deve aguardar conclusão.” Até esta sexta-feira, 28 de junho, averiguou o DN, a AT não informara de  qualquer “conclusão”.

Maioria das rendas congeladas abaixo de 200 euros, mas "compensação" não chega a todas

Segundo o Censo 2021, 78% das rendas correspondentes a contratos habitacionais anteriores a 1990 estavam abaixo de 200 euros, correspondendo a 119.640 arrendamentos. Destes, quase 12% tinham rendas de menos de 20 euros; para mais de 60% os valores não excediam 99,99 euros. De acordo com um relatório do IHRU de 2023, a diferença média entre o valor da renda nesses contratos e o valor mediano praticado pelo "mercado livre" é de 439 euros mensais.

Porém a compensação prevista para os proprietários com rendas congeladas não diz respeito à diferença entre o que agora recebem e o valor médio de “mercado livre” (caso em que o Estado poderia despender até 650 milhões/ano), mas sim à que exista entre a renda atual e a que corresponda a 1/15 do Valor Patrimonial Tributário (VPT) do imóvel em causa, dividido por 12 meses. Para dar dois exemplos simples, a um VPT de 100 mil euros corresponde, neste cálculo, uma renda mensal de 555 euros; para um VPT de 50 mil, será metade: 277 euros.

Ora, como demonstra o relatório referido, os imóveis com rendas “congeladas” têm maioritariamente VPT baixos. As rendas mensais calculadas “de acordo com mediana do VPT” vão de um mínimo de 64,06 euros em Cuba (Alentejo), até um máximo de 528,93 euros em Oleiros, Amieira (onde a mediana do VPT é a mais alta: 95 mil euros).

Mesmo na área metropolitana de Lisboa e na própria capital, em zonas nas quais o valor mediano das “rendas de mercado livre” é a mais elevada do país, os VPT relativos aos contratos de arrendamento anteriores a 1990 são tão baixos que a renda mensal calculada nos termos do decreto-lei que decide as compensações se manteria, em média, abaixo de 400 euros. 

Em Cascais/Estoril, por exemplo, a média seria de 334 euros; no Parque das Nações, 301,14, e na Estrela, 364,64. Até na freguesia lisboeta de Santo António, considerada a mais cara da capital, o valor não ultrapassaria 337 euros.

Razão pela qual a compensação prevista na lei só será devida a uma pequena parte dos proprietários em causa. Em muitos - ou mesmo na maioria - dos casos, o valor da renda resultante do VPT será igual, ou inferior, à que agora recebem. Caso de um proprietário de Coimbra ouvido pelo DN: “A inquilina paga 161,30 euros de renda mensal e o VPT do apartamento, de 80 metros quadrados, é 26.439,32 euros. Ora 1/15 disso é 1760 euros, o que dá uma renda de 146,88, inferior à que estou a receber. Logo, nada farei!”

Acresce que mais de metade dos senhorios em causa – ainda segundo o relatório do IHRU – tem mais de 70 anos. É pouco provável que se aprestem a solicitar uma indemnização que, ao invés de ser “automática”, como pensava aquele proprietário de Coimbra, implica submissão de documentos por via eletrónica e renovação anual do pedido – e que ninguém até ao momento sabe como submeter.

Senhorios já tinham alertado para "caos" burocrático

O alerta para esta situação - ausência de orientações no Portal da Habitação sobre como requerer a compensação e a não resposta do fisco em relação aos pedidos de isenção de IMI - fora já dado a 19 de junho pela Associação Lisbonense de Proprietários (ALP). 

Num comunicado enviado à Lusa, a ALP insurgia-se contra a falta de respostas do Governo, adiantando ter-lhe pedido, sem sucesso, uma reunião. Decidiram então inquirir diretamente o IHRU: “A ausência de qualquer informação sobre como vai decorrer o processo e se este vai mesmo avançar levou a ALP a questionar o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), entidade a quem os pedidos devem ser dirigidos”, lê-se no documento, o qual a seguir adianta que aquela entidade se limitou a confirmar que “a partir de julho de 2024, os senhorios poderão apresentar eletronicamente ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana o pedido de atribuição da compensação”, e que devem aguardar "por mais informação, que estará disponível no Portal da Habitação”.

A ALP também alertou, no mesmo comunicado, para o facto de a Autoridade Tributária estar a recusar passar o comprovativo do pedido de isenção de IMI. E a sua porta-voz, Diana Ralha, concluía, em declarações à Lusa: “Os senhorios com rendas antigas desesperam, pois não sabem como vão ou se vão ter de instruir todo um processo burocrático, que não se sabe qual é” advertindo para o facto de que, como já referido, a requisição da indemnização não tem efeitos retroativos: “Quem o pedir em agosto perde o valor relativo a julho”.