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02 setembro 2024 às 00h29
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Viagem a relembrar quando portugueses eram os primeiros... até a visitar o Tibete

Há 400 anos os jesuítas António de Andrade e Manuel Marques entraram no “Teto do Mundo”. Profundo conhecedor destes feitos portugueses pela Ásia, Joaquim Magalhães de Castro convenceu Rui Pinto Lopes, outro grande viajante, a organizar a expedição histórica.

Mais Mundo Houvesse é o título de um livro publicado no ano passado e que, até por ser inspirado n’Os Lusíadas, poderia muito bem contar as aventuras dos jesuítas portugueses por terras da Ásia, da África e das Américas, como António de Andrade e Manuel Marques, que em 1624 foram os primeiros europeus no Tibete. Mas esse  livro, escrito por Gonçalo Cadilhe, José Luís Peixoto e Raquel Ochoa, relata sim a vida de Joaquim Pinto Lopes, o fundador da agência de viagens que tem o nome de família, sendo agora liderada pelo filho Rui, e que há mais de meio século organiza expedições tão surpreendentes como a que o historiador Joaquim Magalhães de Castro vai guiar nos Himalaias, exatamente para seguir os passos dos dois jesuítas do século XVII. A partida está marcada para 15 de setembro e o regresso a 3 de outubro, e 15 viajantes estão confirmados, sendo que o grupo, explicam, nunca poderia ser  muito grande para a experiência ser vivida a fundo.

“Vamos chegar ao Tibete de comboio a partir de Xining, depois de um voo de Pequim para  a capital da província chinesa de Qinghai, o que será uma entrada única e com a vantagem de permitir alguma habituação à altitude. Lhasa, a capital tibetana, está a quase 4000 metros. E vamos visitar, claro está, Lhasa, mas a cereja no bolo é Tsaparang, mais a oeste, capital do reino tibetano de Guge, visitada em 1624 pelo Padre António de Andrade e pelo irmão Manuel Marques, que lhe chamaram Chaparangue”, conta Joaquim, que está baseado em Macau, vive agora na Indonésia, e publicou uma dezena de livros inspirados na histórias dos portugueses na Ásia, desde o aventureiro Fernão Mendes Pinto, no século XVI, aos bainguis, comunidade luso-birmanesa que vive no país hoje conhecido como Myanmar.

Joaquim, que além de investigador de História também é produtor de documentários televisivos, conhece bem o Tibete. Viagem ao Tecto do Mundo - O Tibete Desconhecido  é um dos seus livros e resultou de uma primeira visita a Tsaparang, nos Anos 1990, que originou depois um documentário em quatro episódios na RTP. E foi por conhecer bem a ligação histórica entre Portugal e o Tibete que propôs à Pinto Lopes Viagens, que tem sede no Porto, esta expedição.

“António de Andrade, nascido em Oleiros, e Manuel Marques, que era de Mação, simbolizam bem estas outras descobertas portuguesas por terra dentro, menos conhecidas que as feitas pelos mares, pelos nossos navegadores. Eles estavam em Agra, junto da corte Mogol, que governava a Índia, e seguiram com Jahangir quando esteve viajou para Lahore, no atual Paquistão, mas ao passarem por Deli juntaram-se a um grupo de mercadores muçulmanos e foram para norte, atravessando os Himalaias disfarçados de peregrinos muçulmanos. São cinco  meses até chegarem ao Tibete. E tornar-se-ão os primeiros europeus no Teto do Mundo”, explica, dizendo que o Padre Andrade sempre o cativou bastante. “Fez uma segunda viagem ao Tibete, em 1625, com outro padre, Gonçalo de Sousa, de Matosinhos, e fundou lá uma Missão, tendo construído uma  igreja.

Também haverá oportunidade para o grupo de viajantes conhecerem a cidade de Gyantse, que em 1626 foi visitada pelos também jesuítas João Cabral e Estêvão Cacela, um alentejano de Avis e um beirão de Celorico, que prosseguindo viagem - mais um feito dos portugueses - foram os primeiros europeus a entrar no Butão (vem-me à cabeça que este país deve estar na mira da agência e não tardará muito a que me confirmem que sim!)

Joaquim Magalhães de Castro numa visita às ruínas de Tsaparang, no oeste do Tibete.

Estamos sentados numa sala de reuniões da Pinto Lopes Viagens, a uns cinco minutos a pé da Estação de Campanhã e a conversa é a três, pois connosco está Rui Pinto Lopes, que foi quem acreditou que esta expedição aos Himalaias - que além de visitar Lhasa e o ocidente da China inclui uma ida ao Nepal - tinha todo o potencial para corresponder às expectativas dos clientes habituais da agência.

“São as nossas Viagens com Autores. Uma experiência sempre especial, única, uma forma de visitar cidades, países, de outra forma, neste caso aprendendo o que terá sido a aventura daqueles dois portugueses de há quatro séculos. Felizmente as condições de viagem são hoje muito melhores, sobretudo mais rápidas e mais confortáveis, mas queremos que a experiência seja de envolvimento com a cultura local e, neste caso, com a História de Portugal”, explica Rui, que já conhece o Tibete, tal como, faz questão de sublinhar, “também o meu pai conhece”.

Aliás, percebe-se que não é só uma família dona de agência de viagens (está no negócio dos transportes desde o século XIX, “ainda no tempo das diligências”) mas sim uma família de viajantes. “O meu pai reformou-se, mas continua a fazer viagens intercontinentais. Creio que umas dez desde o fim da pandemia, como percorrer as três Guianas. E quando começou a pandemia, em 2020, ele andava pela América Central  e tive de ser insistente para o convencer a regressar, pois ali a covid ainda não tinha chegado em força. Foi um desafio logístico trazer de volta o grupo, com mudanças de voo súbitas por causa da pandemia, mas correu tudo bem”, conta Rui.

Pelo tipo de viagens que organiza, com destinos em 150 países (incluindo o Butão, pois. E até a Coreia do Norte!) e cerca de 25 mil clientes por ano, um dos pontos fortes da Pinto Lopes Viagens tem mesmo de ser a logística, da obtenção dos vistos à marcação dos voos internos em países que podem ser do outro lado do mundo. “Isto tudo começou com o meu pai em 1973, o ano em que nasci. Com a célebre viagem de grupo, num autocarro até Paris. E eu estava lá, na barriga da minha mãe”, lembra, entre risos.

Em cima da mesa está o tal livro, de que um exemplar já me foi enviado antes, e agora este é para o outro Joaquim, o homem que conhece os recantos da Ásia e os segredos da Expansão Portuguesa, como foi evidente quando começámos a conversar sobre Tomás Pereira, outro jesuíta, que no final do século XVII foi designado pelo imperador Kangxi para ser o tradutor nas negociações dos chineses com os russos para o Tratado de Nerchinsk (o português falava em latim com um jesuíta polaco trazido pelos russos).

Comento com Rui que ao ler a vida do fundador da agência  fiquei admirado pelo espírito tanto empresarial, como aventureiro do pai, e diga-se também, da mãe, Alzira, professora que ajudava o marido a preparar tudo e ainda viajava com ele sempre que as férias escolares permitiam - isto, além de criar três crianças, pois Rui tem um irmão e uma irmã mais novos, que são gémeos. Mais Mundo Houvesse foi editado pelo Clube do Autor e conta episódios que dão pistas da personalidade do retratado, homem capaz de se adaptar às diferentes culturas, não se importando de apanhar uma boleia de moto na Indonésia, mas igualmente de mostrar espírito prático e fazer de mecânico se necessário - isto, claro, mais nos primórdios da agência.

E aos tais 150 países que estão no catálogo da agência acrescente-se a Antártida, que Joaquim Pinto Lopes (evidentemente!) também visitou, como testemunha uma das fotografias do livro, onde surge vestido com um anorak  vermelho, de capuz posto, luvas pretas , e atrás de si dois pinguins e um cenário de rocha cinzenta e muita neve, branquíssima, pois era verão austral e o sol estava radiante. Fico a saber que é a viagem mais cara da Pinto Lopes: aproximadamente 25 mil euros.

Regressando ao conceito das Viagens com Autores, cito aqui Gonçalo Cadilhe, um dos parceiros habituais da Pinto Lopes Viagens, que no livro fala de uma altura em que a agência, com ajuda de uma empresa, repensou a estratégia de marketing  e ponderou se devia ou não mudar de nome. “Não”, foi a conclusão praticamente unânime, conta Gonçalo Cadilhe, que 2012 se estreou nas Viagens com Autores com uma ida a Itália.

“O Gonçalo Cadilhe é o nosso autor mais antigo e também aquele que mais viagens tem, uma panóplia, são mais de 20 circuitos diferentes com ele, pelo mundo, muitos também baseados em viagens épicas que os portugueses fizeram, como uma viagem que temos à Indonésia, sob o tema das ilhas das especiarias”, diz Rui.

Lembro-me que na Segunda Circular, mesmo perto da saída que dá para as Torres de Lisboa, sede atual do DN, vi um outdoor da Pinto Lopes Viagens, com uma imagem de monges. “Sim, e a dizer que é hora de ponta no Tibete”, acrescenta Rui, entre risos. Monges budistas foi aquilo que os jesuítas portugueses encontraram no “Teto do Mundo”, “apesar de terem esperança de por ali haver cristãos”, sublinha Joaquim, que me diz que terá ido, no mínimo, umas dez vezes ao Tibete. Fico também a saber que irá na comitiva um responsável pela logística, Tiago Gonçalves,  que já conhece o Tibete, e que nos Himalaias haverá guias locais. Ao historiador caberá fazer a ponte entre os viajantes do século XXI e os do século XVII. “Estamos a falar de pessoas que têm interesse pela História, muito especialmente pela História de Portugal, e que querem descobrir mais sobre estes jesuítas”, diz ainda Joaquim, habituado a lidar com grupos como o que irá estar nesta viagem de 19 dias, que custa um pouco mais de oito mil euros por pessoa.

“Se pensarmos que custa muito menos por dia do que alguns circuitos de uma semana em Itália e que oferecemos uma experiência que jamais será esquecida, talvez o preço impressione menos”, alerta o CEO da agência. E estão, li eu no folheto promocional, incluídos os voos, os hotéis, todas as refeições e todas as entradas em monumentos e museus. “Temos programas a partir de 500 euros. E por aí fora, até programas como este, que o Joaquim vai liderar, e que tem um custo mais elevado”, explica. E há sempre novos programas a serem incluídos no catálogo, até porque os viajantes “querem experiências, até passando o gosto a filhos e netos”.

O Iraque, por exemplo, é uma das novidades, o que me deixa surpreendido. Estive no país em 2003, nos tempos finais de Saddam Hussein, e ainda há meses entrevistei o constitucionalista Vitalino Canas, que esteve em Bagdad, e me falou com otimismo da evolução política da antiga Mesopotâmia, mas não imaginava que fosse destino turístico. “Posso garantir que o Iraque oferece condições para se fazer turismo”, assegura Rui. Também houve uma viagem à Somalilândia, a parte da Somália que escapa ao caos em que o país vive há décadas.

O atual CEO segue claramente as pisadas do pai como viajante. “Houve uma altura em que já tinha ido tantas vezes a Paris que me orientava lá com mais facilidade do que no Porto ou em Lisboa”, afirma, de novo entre risos. A agência nasceu no Porto, está hoje na Pinto Bessa, mas tem delegação na capital, na Rua Viriato, onde Tiago Gonçalves é um dos rostos-chave. 

Aproxima-se a hora do Alfa para o regresso a Lisboa. A conversa vai longa, mas o tema da Ásia Central, onde em termos gerais o Tibete se insere, volta à baila, com Rui a falar-me do Uzbequistão, do Cazaquistão e do Tajiquistão (tudo destinos da agência), e a impressionar pelo conhecimento geopolítico quando refere o Corredor de Wakhan, que faz o Afeganistão tocar na China e é resultado de uma fronteira artificial do século XIX quando britânicos e russos disputavam o Grande Jogo (“expressão usada por Kipling”) e era preciso evitar que o Império Czarista e a Índia Britânica tocassem um no outro. Já Joaquim fala de Bento de Goes, outro jesuíta, que atravessou o Xinjiang, e chegado à Província de Gansu enviou uma carta a Matteo Ricci em Pequim a confirmar de vez que o Cataio de Marco Polo era a China à qual os portugueses chegaram por mar em 1513. Um programa de viagem, um dia, na rota de Bento de Goes é possível, pergunto? Joaquim diz logo: “E porque não?” Rui fica pensativo.