Polémica com declarações sobre trabalhadores turcos
17 maio 2024 às 23h41
Leitura: 6 min

Turquia abre nova frente de guerra na Assembleia da República

Aguiar-Branco alegou liberdade de expressão depois de André Ventura chamar preguiçosos aos turcos. Muito criticado, disse que cabe ao Ministério Público agir se houver crime.

Não foi a primeira vez, nem foi o Chega o primeiro a utilizar aquilo que o Regimento da Assembleia da República define, no artigo 89.º, como “discurso injurioso ou ofensivo”. Esta sexta-feira, o debate sobre política setorial com o ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, ficou marcado por mais um episódio. Numa intervenção em que questionava o prazo de execução para o novo aeroporto (10 anos), André Ventura deu o exemplo da Turquia, que construiu um em apenas cinco anos. “Os turcos não são conhecidos por serem dos povos mais trabalhadores do mundo”, atirou. A líder parlamentar do PS, Alexandra Leitão, perguntou ao presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, se se podiam fazer declarações que considerem “uma raça ou etnia masis burra”. A resposta da segunda figura mais alta do Estado? “Pode. Na minha opinião, pode.”

Adelino Maltez, investigador, diz que isto “nada mais é do que uma banalidade”. Porquê? “Se a intervenção tivesse sido feita por outro partido”, não teria causado tanta celeuma. “Tinha havido outra reação.” Afinal, “o Chega e André Ventura estão muito marcados com a história dos ciganos e todo aquele discurso”. Isso afeta a forma como estas declarações acabam por ser vistas, considera.

Questionado sobre o tema, o ex-presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, disse não querer comentar, por entender que “antigos presidentes não devem falar sobre temas da atualidade”.
Francisco Seixas da Costa no X (ex-Twitter) escreveu que isto mostra “uma diferença entre esquerda e direita. (...) Santos Silva teria dito exatamente o contrário”. O embaixador e antigo secretário de Estado acrescentou: “Tenho amigos de direita que seriam incapazes de dizer o que Aguiar-Branco disse. E que sei que se sentem envergonhados neste momento.”

Olhando para a história, com base no arquivo do Parlamento, há alguns casos que se assemelham ao de sexa-feira. A 19 de março de 1980, numa discussão sobre a atribuição de um crédito agrícola de emergência, intervinha António Campos, do PS, que irritou Francisco Sousa Tavares (então um dos deputados reformadores, que trocaram os socialistas pela Aliança Democrática). Interveio depois Raul Rêgo, do PS. Desde “escarro moral” a “malcriado”, vários foram os galhardetes a serem trocados. Terminou com Raul Rêgo a dizer a Sousa Tavares: “Vá para a puta que o pariu.”

Em 1983, Lemos Damião (PSD), pediu a Manuel Alegre (PS) para, “com o seu talento, nos momentos de ócio, de boa disposição”, fazer versos a Mário Tomé (UDP) e disse ter “pena” que este último não se chamasse “Lacerda, porque assim teria facilidade em fazer uns versos”. A resposta de Tomé? “Se é para o mandar à merda, eu mando-o!”

E o próprio Chega já teve episódios destes. Em abril de 2022, falando sobre o “cigano fugido noutro país depois de ter morto um PSP”, Ventura disse ainda que existia um “paraíso de impunidade” para com a comunidade cigana. Augusto Santos Silva, então presidente do Parlamento, deu uma reprimenda: “Não há atribuições coletivas de culpa em Portugal.”

Gaza e “telhados de vidro”

Contestado pela generalidade dos grupos parlamentares por permitir que Ventura fizesse considerações depreciativas para o povo turco, José Pedro Aguiar-Branco explicou a sua posição  numa conferência de imprensa realizada após a segunda sessão plenária do dia, na qual foi chumbada a proposta do Chega que a Assembleia da República iniciasse um processo criminal contra o Presidente da República.

“Eu não sou censor”, defendeu a segunda figura do Estado, para quem cabe ao Ministério Público, por iniciativa própria ou denúncia de um qualquer cidadão, apurar se as declarações de deputados constituem crime. “A liberdade de expressão nunca vai longe demais”, disse, apesar de dever ser utilizada pelos membros do Parlamento “com sentido de responsabilidade”.

“Se fosse tirar a palavra aos deputados sempre que ouço algo de que não gosto, ou com que não me identifico, se calhar não fazia mais nada”, acrescentou o presidente da Assembleia da República. E deixou claro que, em sua opinião, “todos os partidos têm telhados de vidro” no que toca a declarações questionáveis. Aguiar-Branco referiu-se às menções, recorrentes nas bancadas parlamentares mais à esquerda, de Israel ter em curso um genocídio na Faixa de Gaza, o que também pode ser considerado hostil para com esse país.

Criticado por Isabel Moreira por “dizer que afirmar, por exemplo, que uma etnia é mais preguiçosa ou mais burra do que outra é liberdade de expressão”, Aguiar-Branco acabou por citar a deputada socialista. Esta terá escrito que a Constituição da República Portuguesa proíbe organizações racistas e fascistas, mas não proíbe a manifestação individual de alguém em relação ao racismo ou ao fascismo, o que seria um exercício de censura”.