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Sociedade
31 outubro 2024 às 03h44
Leitura: 21 min

Aborto: Colégio de Obstetrícia a favor de proposta do PS de alargamento para 12 semanas e contra posição oficial da Ordem dos Médicos

Órgão que representa obstetras e ginecologistas dá OK ao aumento do prazo, afirmando que melhora o acesso ao aborto seguro e a saúde das mulheres. Mas este parecer, ao qual o DN teve acesso, não consta do site da Ordem dos Médicos e foi ignorado no parecer oficial desta, que se opõe a mexer no limite de 10 semanas.

"O prazo de 10 semanas pode ser “particularmente restritivo para adolescentes, mulheres em comunidades mais vulneráveis (incluindo migrantes), no limite da idade gestacional e residentes em cidades onde o aborto não é oferecido (devido a objeção de consciência ou outras razões). Estas mulheres podem não conseguir obter cuidados dentro do prazo legal.”

Esta é uma das considerações constantes do parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos que dá luz verde ao aumento, de 10 para 12 semanas (como proposto em projeto de lei do PS), do limite da idade gestacional na interrupção de gravidez por vontade exclusiva da mulher. Este órgão da Ordem dos Médicos (OM), que representa os obstetras e ginecologistas, certifica que “aumentar o limite da idade gestacional não compromete a segurança clínica do procedimento no que respeita à taxa de sucesso e à morbimortalidade associadas” e que “o acesso ao aborto seguro vai ser incrementado com impacto favorável na saúde global e reprodutiva das mulheres em idade fértil”.

Dito por outras palavras: aumentar, para 12 semanas, o limite legal da interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher não representa qualquer risco, pelo contrário, favorece globalmente a saúde das mulheres, sobretudo daquelas que estão em situação mais frágil.

A posição do Colégio, que invoca as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre interrupção de gravidez, uma resolução de 2021 do Parlamento Europeu (ambas no sentido de que devem ser removidos os obstáculos legais ao aborto seguro) e um estudo científico de 2022 sobre as consequências das restrições no acesso ao aborto, assim como o relatório de 2023 da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) sobre o acesso à interrupção da gravidez no Serviço Nacional de Saúde (SNS), é contrária à posição oficial da Ordem. Esta, que foi consubstanciada no parecer do Conselho de Ética e Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (CNEDM), publicamente conhecido a 22 de outubro – por via de uma notícia do DN –, opõe-se à  mexida no limite legal das 10 semanas.

Não fazendo qualquer menção às recomendações da OMS, a estudos científicos sobre prazos de interrupção de gravidez e/ou sobre as consequências das restrições legais ao acesso – nem tão-pouco, como o DN já assinalara,  ao parecer do Colégio de Obstetrícia –, o parecer do Conselho de Ética da OM, por esta homologado, começa por sublinhar que “o verdadeiro conteúdo deste projeto de lei [o do PS, o único que analisa, malgrado existir um outro do BE] entra em direto conflito com o dever médico de proteger a vida, consagrado no Código Deontológico da OM”. E conclui:“Não é científica e deontologicamente sustentável, e face ao panorama atual, a necessidade de alargamento dos prazo”.

Tendo o Conselho de Ética, como confirmou ao DN o bastonário da OM (Carlos Cortes), recebido o parecer do Colégio de Obstetrícia antes de por sua vez exarar o seu, parece bizarro não o referir – é como se a posição dos obstetras não existisse. De resto, também no site da Ordem não há rasto do documento do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia, o qual o DN teve de pedir insistentemente à OM, acabando por invocar a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.

Face a esta situação, o DN questionou a Ordem sobre o motivo pelo qual o parecer do Colégio não está disponível no site. Também contactou o presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, José Manuel Furtado, a quem solicitou um comentário sobre o facto de o parecer do órgão ter sido ignorado pelo do Conselho de Ética. Em ambos os casos não houve resposta.

"Este parecer não pode e não deve ser ignorado pelas Direções Nacional e Regionais da Ordem"

Já a presidente do Conselho de Ética da Ordem, a obstetra Margarida Silvestre, explicou ao DN que o CNEDM recebeu “um pedido de parecer sobre o projeto de lei do PS, tal como o Colégio. Enviou o seu parecer ao Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, que recebeu também o parecer do referido Colégio. São pareceres independentes.” O pedido de parecer, informou ainda Margarida Silvestre, foi efetuado pelo bastonário, presidente do Conselho Nacional da OM.

Questionada sobre se o órgão a que preside não recebeu o parecer do Colégio, a médica admite que sim, mas que a decisão foi não o mencionar: "Foi dado conhecimento do parecer do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia ao CNEDM, quando este órgão já tinha o seu parecer terminado e em apreciação pelos seus membros. Como a abrangência da pronúncia sobre o projeto de lei, o seu sentido e a respetiva fundamentação eram muito distintos do parecer do CNEDM, o parecer já redigido e entretanto aprovado por maioria foi encaminhado, como tal, ao Sr. Bastonário, para apreciação em Conselho Nacional, juntamente com uma declaração de voto." 

Sobre o facto de o parecer do CNEDM não referir qualquer estudo científico para fundamentar as suas afirmações, nomeadamente sobre o risco acrescido do aborto às 12 semanas e relação às 10, e ignorar as recomendações da OMS, a respetiva presidente responde assim: "Os riscos associados à realização de uma interrupção de gravidez aumentam à medida que aumenta a idade gestacional. Isto é um dado inquestionável e que está fundamentado no parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida 119, que as relatoras do parecer do CNEDM utilizaram como referência."

Anote-se que Margarida Silvestre faz parte do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e foi co-relatora do dito parecer 119, de novembro de 2022, o qual também não referia qualquer estudo científico para fundamentar a afirmação sobre o risco do alargamento do prazo para as 12 semanas (nem tão-pouco as recomendações da OMS do mesmo ano que declaram como seguro o aborto nesse prazo e fulcral remover as restrições legais no acesso ao aborto seguro). Do mesmo padece o parecer sobre o mesmo assunto que o CNECV exarou a 21 de outubro último - do qual Margarida Silvestre é igualmente co-relatora, e que é muitíssimo semelhante ao parecer do CNEDM

Sobre este último, a obstetra diz ainda: "As tomadas de posição [do CNEDM] tiveram em conta os dados nacionais oficiais, que as fundamentam e que espelham a nossa realidade de uma forma muito diferente do documento da OMS, muito mais vocacionado para outras realidades sociais e legais que não a nossa".

A também obstetra Maria José Alves, da associação Médicos pela Escolha, tem uma visão bastante distinta da da presidente do CNEDM quanto à necessidade de ter em conta as recomendações da OMS. "Felicito o Colégio da Especialidade de Ginecologia Obstetrícia por, finalmente, dentro da Ordem dos Médicos, existir uma estrutura que redige um parecer sobre o aborto, fundamentado em Orientações da OMS, elaboradas por especialistas de vários países e zonas do mundo e com as mais recentes evidências científicas; no parecer está refletida a preocupação com a promoção dos direitos das mulheres, direitos enquadrados na ética médica, nomeadamente nos princípios da justiça e da autonomia (equidade de acesso, dever de cuidado, respeito pela decisão de cada pessoa)."

Sobre o facto de o parecer do Colégio não ter sido publicado nem sequer mencionado naquela que é a posição oficial da OM, esta médica, que foi um dos rostos da luta pela legalização da interrupção da gravidez na campanha para o referendo de 2007, é contundente: "Este parecer não pode e não deve ser ignorado pelas Direções Nacional e Regionais da Ordem dos Médicos, porque já não é legítimo pensar que existe um discurso oficial sobre este tema. Tal como o parecer da CNEDM foi rapidamente divulgado no site da Ordem dos Médicos, o mesmo deveria ter acontecido com o parecer pedido ao Colégio, ilustrando a diversidade de posições que naturalmente existem e que não deviam ter dispensado um debate sério antes dum parecer final".

Obstetras não se pronunciam sobre período de reflexão obrigatório

Não foi possível perceber por que motivo "a abrangência da pronúncia sobre o projeto de lei do PS" (citando Margarida Silvestre) do parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia é diferente da do parecer do CNEDM. Na verdade, o primeiro só se pronuncia sobre a proposta de alargamento do prazo, não atentando às outras propostas do projeto de lei do PS (nem às do projeto de lei do BE, que propõe o alargamento do prazo para as 14 semanas - à imagem do que vigora em França e Espanha).

Nomeadamente, não se pronuncia sobre o fim do “período de reflexão” obrigatório de três dias (que obriga as mulheres a esperar três dias pelo menos entre a primeira consulta, ou “consulta prévia”, e o procedimento abortivo) nem sobre a delimitação do efeito da objeção de consciência apenas ao procedimento abortivo (excluindo assim os cuidados de saúde prévios e posteriores), nem sobre a exigência legal de que haja dois médicos envolvidos no processo, um que certifica que a gravidez está dentro do prazo legal, e outro que preside ao procedimento (procedimento que, no caso do aborto medicamentoso, correspondente a mais de 90% das interrupções de gravidez no SNS, consiste em dar um comprimido à mulher e em entregar-lhe um ou mais para auto-administração em casa).

Recorde-se que o Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica (da OM) deu parecer positivo a duas destas propostas – a da delimitação do efeito da objeção de consciência e a de deixar de se exigir o concurso de dois médicos no processo –, opondo-se a todas as outras.

Sobre o período de reflexão, que a OMS reputa de “paternalista” e obstrutivo, o CNEDM diz: “Deverá ser mantido um período de reflexão após a prestação de informações do profissional de saúde à mulher, para a obtenção de decisão consciente, livre e esclarecida, que deve acompanhar todos os procedimentos médicos irreversíveis de carácter não urgente, cuja duração deve ser, se possível, no mínimo de três dias.”

Posição muito semelhante tem o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que, no já referido parecer de 21 de outubro último, se opõe ao alargamento do prazo na interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher. O parecer deste órgão consultivo da Assembleia da República teve como relatoras a jurista Inês Godinho e, como já referido, a obstetra Margarida Silvestre, presidente do Conselho de Ética da OM.

Como o parecer do CNEDM, o do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) vê a objeção de consciência por profissionais de saúde como “um direito fundamental” (afirmação que não é fundamentada juridicamente e que entra em choque com a jurisprudência  do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o qual já apreciou o assunto, deliberando ser lícito, por considerar o direito à saúde como sobrelevando o direito à objeção, que a Suécia restrinja a contratação para o sistema público a profissionais não objetores), que só deve “ceder” em casos de risco de vida ou de grave dano para a saúde.

Também a rejeição do aumento do prazo é fundamentada pelo CNECV com o facto de “a idade gestacional média em que a interrupção da gravidez por opção da mulher é realizada em Portugal” se ter mantido “estável, ao longo dos anos, nas sete semanas de gestação”, e no invocar de “dados científicos existentes” (não referidos) como “claramente favoráveis a uma melhor saúde da grávida quanto menor for o tempo de uma gestação que termina abruptamente”.

E se o CNECV admite, a partir dos dados dos primeiros relatórios  da ERS e Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) sobre o acesso à interrupção de gravidez no SNS, assim como o da  Direção Geral de Saúde (DGS) de 2023, que “o número de hospitais que não efetuam Interrupção Voluntária da Gravidez impede, de facto, em várias regiões do território nacional, o exercício desse direito, o que acarreta discriminação socioeconómica e territorial de várias mulheres”, tal não leva este órgão de Bioética a considerar que essa obstrução no acesso a um direito consagrado pela lei da República deve ser resolvida através das propostas dos dois projetos de lei em análise.

“Não é através da limitação do direito à objeção de consciência, do alargamento de prazos ou da supressão do tempo de reflexão que se deve procurar resolver o problema do direito ao acesso a uma interrupção de gravidez”, afirma o CNECV. A solução deverá estar antes, propugna, na “capacitação do SNS para respeitar a lei e os direitos dos cidadãos”.

Este parecer teve três votos de vencido - da socióloga Anália Torres, do psicólogo Miguel Ricou e do médico Rosalvo Almeida. A primeira, entre outros considerandos, sublinha o facto de que o parecer conclui "em sentido contrário às recomendações recentes de várias organizações internacionais como a OMS, o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu, que têm chamado a atenção dos países para a necessidade de remover barreiras para assegurar a saúde sexual e reprodutiva das mulheres, colocando Portugal no pequeno grupo de países europeus com mais restrições no acesso à IVG".

E Anália Torres cita "as diretrizes da OMS atualizadas em 2022": "Os cuidados relativos ao aborto devem ser seguros, atempados, acessíveis, não discriminatórios e respeitadores. A questão da qualidade dos cuidados no aborto é fundamental nestas orientações. A qualidade dos cuidados é definida como cuidados que são: eficazes, eficientes, acessíveis, aceitáveis/centrados no doente, equitativos e seguros";  A OMS considera também segura a IVG até às 12 semanas".

Já Rosalvo Almeida fundamenta a sua oposição ao parecer com "as dificuldades que as mulheres portuguesas enfrentam na Interrupção Voluntária da Gravidez [IVG]", que considera estarem "suficientemente provadas nos dados divulgados pela Entidade Reguladora da Saúde e pela Inspeção Geral das Atividades em Saúde, bem como em peças jornalísticas de referência, pelo que o alargamento do prazo proposto no Projeto de Lei n.º 264/XVI [o do PS], a exemplo de outros países europeus, permitiria atenuar essas dificuldades". Este médico também vê como "uma forma clara e excessiva de paternalismo" a "obrigação legal de reservar um período de reflexão" e considera-a "incompatível com a devida autodeterminação da mulher, quando decide, sabe-se lá em que circunstâncias, fazer uma IVG."

Médicos britânicos defendem “tele-aborto” e conselho científico belga alargamento até às 18 semanas

Particularmente curioso é que nenhum dos pareceres citados refira as posições das estruturas representativas de médicos de outros países, nomeadamente dos europeus.

A título de exemplo, em março 2022, uma posição conjunta da Associação dos Médicos Britânicos, do Colégio de Obstetras e Ginecologistas, do Colégio das Parteiras/Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia, do Colégio dos Médicos de Clínica Geral, da Faculdade de Saúde Sexual e Reprodutiva e da Sociedade Farmacêutica pugnava pela alteração da lei para que a autorização de exceção existente durante a pandemia de Covid-19, que permitiu que em 2020 e 2021 o aborto medicamentoso até às 10 semanas fosse efetuado em casa (com envio dos medicamentos pelo correio), passasse a permanente.

As organizações em causa referem o aborto seguro como “um cuidado de saúde essencial”, e o telemedical abortion care (aborto por telemedicina) como “uma forma segura e eficaz de possibilitar às mulheres mais controlo e escolha no acesso ao aborto medicamentoso”. No caso da Inglaterra e Gales, onde a lei foi mudada pelo Governo de Boris Johnson para tornar permanente a possibilidade de aborto por telemedicina, a interrupção de gravidez medicamentosa em casa é aconselhada até às 10 semanas, mas na Escócia foi, durante a pandemia, permitida até às 12 semanas, tendo assim permanecido.

Em 2021, o governo escocês ordenou um estudo para aferir da fiabilidade e segurança da nova forma de prestar este cuidado de saúde, tendo as conclusões sustentado a decisão de manter o EMAH – early medical abortion at home (aborto até às  12 semanas em casa). Também a OMS recomenda esta prática até às 12 semanas, contradizendo a ideia de que aumentar o prazo legal da interrupção de gravidez das 10 para as 12 semanas aumenta o risco para as mulheres.

Por outro lado, há posições recentes de conselhos científicos europeus, como é o caso do conselho científico que na Bélgica procedeu a um estudo de avaliação da lei e da prática do aborto no país, a apontar a necessidade de aumentar o prazo legal da interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher. Com data de março de 2023, o relatório do conselho de académicos, presidido por dois médicos – Kristien Roelens e Yvon Englert – pronunciou-se pelo alargamento do prazo das 12 semanas para as 18, assim como pelo fim do período de reflexão obrigatório (que na Bélgica é de seis dias, o dobro do português). Estes especialistas também recomendam o aborto por telemedicina.

“Sai deste trabalho uma recomendação consensual do Comité Científico de prolongar o limite gestacional máximo atual do aborto ‘a pedido da mulher’, no mínimo até às 18 semanas”, lê-se nas recomendações do relatório. O debate sobre o alargamento do prazo iniciou-se em setembro no parlamento belga.