Nihon Hidankyo
11 outubro 2024 às 21h02
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Um Nobel da Paz para os “sobreviventes da bomba” a lembrar que o “tabu nuclear” está sob ameaça

Comité Nobel Norueguês distingue a associação japonesa de sobreviventes das bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui, pelo esforço “para alcançar um mundo livre de armas nucleares” e mostrar, através dos seus testemunhos, que estas nunca mais devem ser usadas.

Toshiyuki Mimaki tinha apenas  três anos quando os EUA lançaram a bomba atómica em Hiroxima a 6 de agosto de 1945 e, três dias depois, em Nagasáqui. Hoje é um dos copresidentes da associação Nihon Hidankyo, que reúne outros “sobreviventes da bomba” como ele - conhecidos como Hibakusha - e que esta sexta-feira foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz. “É mesmo verdade? Inacreditável”, reagiu entre lágrimas e aplausos. “Nunca imaginei que isto pudesse acontecer”, disse aos jornalistas que estavam na câmara de Hiroxima para ouvir o anúncio.

“Os Hibakusha ajudam-nos a descrever o indescritível, a pensar o impensável e a compreender de alguma forma a dor e o sofrimento incompreensíveis causados pelas armas nucleares”, disse o presidente do Comité Norueguês, Jorgen Watne Frydnes. E explicou que o Nobel da Paz deste ano distingue os esforços da Nihon Hidankyo “para alcançar um mundo livre de armas nucleares e por demonstrar, através de depoimentos de testemunhas, que as armas nucleares nunca mais devem ser usadas”.

Lembrando como esta organização fundada em 1956 e outras foram essenciais para tornar o uso destas armas “moralmente inaceitável”, o presidente do Comité Nobel Norueguês disse ser “alarmante” que este “tabu nuclear” esteja “sob pressão” nos dias de hoje. Frydnes defendeu que a continuação da existência deste tabu é “uma pré-condição de um futuro pacífico para a humanidade”, deixando claras quais são as ameaças.  

“As potências nucleares estão a modernizar e a melhorar os seus arsenais. Novos países parecem estar a preparar-se para adquirir armas nucleares. E estão a ser feitas ameaças de utilização de armas nucleares nas guerras em curso. Neste momento da história da humanidade, vale a pena recordar o que são as armas nucleares: as armas mais destrutivas que o mundo alguma vez viu”, insistiu Frydnes.

As bombas lançadas há quase 80 anos pelos EUA causaram a morte de 120 mil pessoas em Hiroxima e Nagasáqui, com outros tantos a morrer das queimaduras e da radiação nos meses e anos posteriores. “As armas nucleares atuais têm um poder destrutivo muito maior. Podem matar milhões e impactar catastroficamente o clima. Uma guerra nuclear poderia destruir a nossa civilização”, alertou. Estima-se que as nove potências nucleares tenham cerca de 12 500 ogivas, sendo que 90% delas estão nas mãos de apenas duas: EUA e Rússia.

Tratados

Sete anos depois de ter entregue o Nobel da Paz à Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN, na sigla em inglês), o Comité Norueguês volta a chamar a atenção para esta ameaça. “Este reconhecimento deverá despertar novamente o público global para o perigo extremo que as armas nucleares representam para a humanidade”, defendeu o ICAN, “numa altura em que o risco de utilização de armas nucleares é mais elevado do que nunca”.

O ICAN elogiou o trabalho “incansável” dos Hibakusha “para aumentar a consciencialização sobre os impactos catastróficos das armas nucleares e pressionar para a sua eliminação total”. E lançou um apelo para a adesão ao Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, que foi adotado em 2017 e entrou em vigor em 2021 - mas foi ratificado por apenas 73 países, a maioria do chamado Sul Global e só três membros da União Europeia (Áustria, Irlanda e Malta).

Este tratado “proíbe as nações de desenvolver, testar, produzir, manufaturar, transferir, possuir, armazenar, usar ou ameaçar usar armas nucleares ou permitir que armas nucleares sejam colocadas no seu território.” O texto vai mais longe do que o Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares, de 1970, ratificado por 190 países - incluindo os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, todos potências nucleares. Mas que muitos consideram insuficiente para impedir novas tragédias.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que para alguns era um potencial candidato ao Nobel, congratulou a Nihon Hidankyo no X. “O seu trabalho incansável e a sua resiliência são a espinha dorsal de um movimento global de desarmamento nuclear”, escreveu, dizendo que são “uma inspiração” para os esforços “para construir um mundo livre de armas nucleares”. Em comunicado, Guterres defendeu ainda que “é tempo de os líderes mundiais serem tão clarividentes como os Hibakusha e verem as armas nucleares pelo que são: máquinas de morte que não oferecem qualquer segurança ou proteção.”

Um mundo em guerra

O Nobel da Paz, no valor de cerca de 970 mil euros, será entregue como habitual numa cerimónia em Oslo, a 10 de dezembro (data do aniversário da morte de Alfred Nobel). Uma cerimónia que decorre, mais uma vez, num mundo em guerra - da Ucrânia ao Médio Oriente, passando pelos conflitos esquecidos do Sudão ou Myanmar -, havendo quem defendesse que o galardão deste ano não devia ter sido entregue.

Outros apostavam numa tomada de posição mais forte, distinguindo, por exemplo, a Agência da ONU para os Refugiados Palestinianos (UNRWA) e o seu comissário-geral, Philippe Lazzarini, muito criticada por Israel, ou o próprio Guterres, declarado persona non grata por este país.

Mas o Comité Nobel Norueguês optou por um prémio para reforçar o “tabu nuclear”, num momento em que o presidente russo, Vladimir Putin, ameaça usar estas armas se a Ucrânia for autorizada a recorrer aos mísseis de longo alcance fornecidos pelo Ocidente contra o território russo. Ou que o Irão ameaça tornar-se na décima potência nuclear. “Este Prémio Nobel da Paz envia uma mensagem poderosa. Temos o dever de lembrar. E ainda um maior dever de proteger as novas gerações dos horrores de uma guerra nuclear”, afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Potências nucleares

Há nove países que são potências nucleares, mas cerca de 90% do arsenal total - estimado em cerca de 12 500 ogivas - está nas mãos de apenas dois: EUA e Rússia.

EUA - Foi o primeiro país a desenvolver a arma nuclear e o único a detoná-la em cenário de guerra - a organização dos sobreviventes de Hiroxima e Nagasáqui é a vencedora do Nobel da Paz. Segundo a Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares, que venceu este prémio em 2017, os EUA têm 5224 ogivas. Estas não estão apenas nos EUA, havendo cem nas mãos dos aliados - Itália (35), Turquia (20), Bélgica (15), Alemanha (15), Países Baixos (15).

Rússia - O maior arsenal do mundo pertence aos russos, que terão 5889 ogivas. Em 2022, a Rússia gastou quase dez mil milhões de dólares na sua  manutenção. O presidente Vladimir Putin já ameaçou várias vezes o Ocidente com a hipótese de as usar, a última caso seja dada luz verde à Ucrânia para usar mísseis de longo alcance contra o território russo. Durante o atual conflito, Moscovo terá transferido armas nucleares táticas para a Bielorrússia.

China - O arsenal chinês terá 410 ogivas, tendo Pequim gasto cerca de 12 mil milhões de dólares na sua manutenção. 

França e Reino Unido - Os únicos países europeus que são potências nucleares: os franceses terão 290 armas e os britânicos 225.

Índia e Paquistão - A Índia tornou-se potencia nuclear em 1974, tendo 164 destas armas. A resposta do velho inimigo Paquistão chegou em 1998, estimando-se que possua atualmente 170. 

Israel - Os israelitas não admitem ter armas nucleares, mas os peritos acreditam que têm 90. 

Coreia do Norte - O único país a ter feito testes nucleares no século XXI - fez seis e suspeita-se de que esteja a preparar mais um. Estima-se que terá 30 ogivas.

susana.f.salvador@dn.pt