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15 setembro 2024 às 16h14
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Salvar o jornalismo. “Por muito pouco que a desejemos, a intervenção do Estado tornou-se obrigatória”, diz o diretor do Público

O diagnóstico de que existe, a nível mundial, uma “falha de mercado” no negócio do jornalismo tem mais de uma década. Ante a penúria no setor, cada vez mais países reforçam apoios públicos. O Governo anunciou um plano de ação para os media, a ERC apresenta propostas. Porquê salvar o jornalismo e como fazê-lo?

"Temos de pensar três vezes antes de mandar um jornalista para o estrangeiro, contratar um fotógrafo. E isso tem diminuído a nossa capacidade de recrutamento e, acima de tudo, de remunerar os jornalistas com alguma justiça face ao nível de qualificações e de responsabilidade que têm.”

A assunção é de David Pontes, diretor do Público. Reconhecendo que a situação deste diário de referência, fundado em 1990, está longe de ser das piores no panorama da imprensa portuguesa - o título, cuja redação tem mais de 150 jornalistas, é detido pela empresa grossista Sonae, a qual “tem encaixado ao longo dos anos uma certa margem de prejuízo” -, o jornalista diagnostica “um estado de penúria no setor” que não crê se possa ultrapassar sem a intervenção do Estado. “Por muito pouco que a desejemos, tornou-se obrigatória. Hoje na maior parte dos media estamos à beira do limiar de sobrevivência. E dada a urgência em que se encontram muitos órgãos, com muitos camaradas meus a não receber ao final do mês, seria quase cruel da minha parte não admitir a possibilidade, mesmo que transitória. Isto está a pedir um plano de emergência.” 

Como motivo da penúria, aponta “sucessivas disrupções ao longo dos anos, das quais as pessoas nem sempre têm noção: é um setor de negócio que mudou muito mais que a maioria”. À cabeça, a digitalização: “Foi muito mais violenta que para outros. E estão sempre a aparecer novidades: podcasts  hoje, vídeos ontem, Inteligência Artificial agora. Todos os anos temos de olhar para uma novidade em relação ao que fazemos e à forma como as pessoas passam a consumir informação.”

O que, prossegue, “estica os recursos, com os rendimentos a não acompanhar - pelo contrário - o movimento”. Até porque “neste momento toda a imprensa mundial enfrenta alguma fuga à informação e ao jornalismo. Olha-se para uma análise que fez o Financial Times  sobre como podemos adaptar-nos aos públicos jovens, e algumas coisas lá descritas são contrárias à matriz jornalística: a ideia de que, por exemplo, os jovens ligam mais à personalização do emissor do que à instituição. Em França há um jovem que entrevista os políticos e faz noticiário e tem, só ele, mais seguidores no Instagram que qualquer jornal francês. É que já não é só a perda de receitas, é também a mudança do padrão de consumo. Podemos ir ambicionando que isto seja uma espécie de vale, que daqui a pouco a coisa suba, mas não creio que possamos estar tão otimistas em relação aos nossos concidadãos. Que aumentem assim tanto os níveis de literacia, de interesse., da consciência de que o que os jornalistas fazem, quando fazem bem, é demasiado essencial para podermos abdicar disso.” 

“Não é impossível que volte a ser um negócio lucrativo”

Nascido em maio de 2014, em plena crise dos media, o diário digital Observador, ao qual a partir de 2019 se juntou uma rádio, tem tentado surfar a borrasca, mesmo se, como todos os outros, acumula prejuízos. Miguel Pinheiro, o diretor, crê que ainda se pode dar a volta: “O jornalismo não foi sempre um negócio deficitário - chegou a ser muito lucrativo - e não acho impossível que o volte a ser.”

Conotados com uma visão liberal - no sentido “pró-mercado”-, a rádio e o jornal torceram o nariz aos apoios do Estado na pandemia (15 milhões em publicidade institucional) e usaram isso para uma campanha de assinaturas. Normal, pois, que no debate sobre apoios públicos o respetivo diretor demonstre pouco entusiasmo:  “Há duas grandes preocupações quando se olha para os apoios estatais. Um é a independência, e por esse motivo é importante que os apoios sejam indiretos ou cegos. O outro é salvaguardar o princípio da concorrência: temos de ter muito cuidado com a possibilidade de que os apoios congelem o que já existe. Critérios que tenham a ver com vendas ou audiências perpetuam as posições.” 

Confrontado com o facto de vários dos países que ocupam os primeiros lugares do top da liberdade de informação - Noruega, Suécia, Dinamarca - terem instituído apoios diretos há mais de 50 anos, Pinheiro contesta com o contexto. “Essas medidas não existem num laboratório, existem em países concretos com histórias concretas. Nós nos Anos 60 do século XX vivíamos em ditadura, e depois tivemos um longo período em que a maioria dos media  eram do Estado. Há uma tradição de controlo, de ingerência.” 

Assim, ante o anúncio de um plano estatal de apoio aos media, vê como aceitáveis sobretudo medidas como as defendidas pelo  ex-ministro da tutela (no Governo Passos) Miguel Poiares Maduro: “cheque-jornal” e/ou consignação de IRS, como sucede já com ONG ou igrejas, ou, ainda, benefícios fiscais para quem consuma jornalismo (como em França). Isso, diz Pinheiro, “coloca em terceiros o incentivo, não é o Estado a escolher quem apoia. E como um dos grandes problemas não é conseguir mais assinantes, é manter os que temos, pode ter grande impacto em quem já assina.”

“Não me chocava nada que houvesse apoios diretos”

Para os meios que não se consomem por assinatura - como a rádio - vê como melhor hipótese um incentivo fiscal aos anunciantes. 

Nuno Domingues, o diretor de outra rádio - a TSF, nascida em 1989 como uma “rádio de notícias” - tem uma perspetiva diferente. “Não creio que vá acontecer, mas não me chocava nada haver apoios diretos. Que em função de alguma coisa o Estado pague x. Com critérios claros - determinado tipo de serviço informativo, o número de jornalistas, de horas de produção de informação.” 

Os dois últimos parecem ao diretor da TSF, estando em causa salvar o jornalismo, bons critérios. Mas vê  questões difíceis de dirimir: “Há projetos que não estão classificados, como os podcasts, e é difícil, em termos de rádio, dizer o que é e não é jornalístico. Rádios como a Comercial não são de notícias, mas dão notícias a cada hora. E a Renascença, sendo de natureza confessional, não presta um serviço informativo?”

A questão faz todo o sentido: o apoio do Estado pode incluir órgãos de confissões religiosas ou de partidos? Em vários países esse tipo de media  está excluído do financiamento público  -  mesmo se podem, como é o caso cá, empregar jornalistas. Muito mais complicado será distinguir entre os media  que fazem por cumprir as regras deontológicas do jornalismo - vertidas em lei no Estatuto do Jornalista -  e os que se dedicam a violá-las. A ERC, nas sugestões apresentadas no seu documento de trabalho sobre o financiamento público do jornalismo (ver texto ao lado), propõe, entre outros critérios de alocação de apoio, o número de prémios de jornalismo atribuído a um título. Não menciona, porém, o avesso disso - o número de deliberações censórias da própria ERC e de condenações judiciais.

Se, como reconheceu Poiares Maduro num debate na RTP, “quem dá mais pancadaria tem mais audiência”, um sistema de vouchers  através do qual os cidadãos escolheriam que produto de media  querem consumir não correria o risco de “premiar” os que se dedicam  à “pancadaria”? O ex-governante concede que “o risco existe”, mas “o importante é apoiar o ecossistema do jornalismo no seu todo. Tentar selecionar que jornalismo se deve consumir ou apoiar seria abrir uma porta perigosa. Acresce que há estudos a demonstrar que as pessoas diferenciam entre o jornalismo que intuitivamente consomem e o de maior qualidade que creem deve ser apoiado. Assim, mesmo esse risco é mais mitigado do que se julga.”

“Se só se agir do lado do consumidor as empresas continuarão a ter problemas”

Considerando que é preciso fazer um esforço para incentivar o consumo de jornalismo, e que quer o voucher  quer a consignação fiscal quer os benefícios fiscais para quem consuma jornalismo (os quais já existem, mas com expressão mínima) são medidas positivas, David Pontes não acredita que “no atual mercado da atenção isso possa significar uma diferença marcante. Se só agirmos por esse lado, o do consumidor, as empresas continuarão a ter problemas. Porque as pessoas muitas vezes preferem despender tempo em convívios recreativos do que estar a ler uma peça complicada sobre atualidade. Seria ingénuo  achar que simplesmente dar acesso às pessoas resolve o problema.”

Reconhecendo além do mais que apoios ao consumo só funcionam para a imprensa, e dentro da imprensa apenas para a que cobra acesso, o diretor do Público  admite, como o da TSF, subsídios diretos em função do número de jornalistas. “Há claramente uma questão de profissão, do que representa ser jornalista: temos métodos, temos um processo para o que escrevemos, temos órgãos que nos vigiam, e isso deveria de alguma forma ser contemplado no desenho das medidas que o Governo prepara.” 

Suspira: “Dada a fraca popularidade que os jornalistas têm no espetro público, essa medida poderá não ser muito popular mas é de justiça básica. Ao contrário de alguns dos apoios que na pandemia foram atribuídos com referência às quebras de publicidade, critério que nada diz sobre aquilo que os media  produzem e sobre o esforço que nomeadamente um órgão como o Público faz para ter centena e meia de jornalistas.” 

E conclui: “Se estamos numa sociedade em que conseguimos consensualizar a ideia de que uma imprensa livre é importante como pilar do regular funcionamento da democracia, alguma coisa deve ser feita pelos media, nomeadamente quando partimos de um patamar tão baixo em Portugal”.