Desigualdade
24 junho 2024 às 13h08
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Parlamento mantém 42 anos de tradição e só elege homens para o Conselho de Estado

Há uma dificuldade histórica da Assembleia da República em incluir mulheres nas listas para o órgão consultivo da Presidência. Este ano não foi exceção, e todos os eleitos são homens. Assentos para conselheiras só existiram por inerência ou nomeação dos Presidentes.

Zero. É este o número de mulheres que a Assembleia da República elegeu para o Conselho de Estado desde 1982, quando foi criado. Na verdade, a única mulher que representou o Parlamento no órgão consultivo do Presidente da República foi Assunção Esteves, que desempenhou o cargo de presidente da Assembleia da República (logo, teve assento por inerência).

Esta é, aliás, a tendência: membros femininos no Conselho de Estado só acontece por inerência ou nomeação presidencial. Isto fica patente na atual constituição, em que há quatro conselheiras (Maria Lúcia Amaral, provedora de Justiça, a maestrina Joana Carneiro, que entrou para substituir António Damásio, a escritora Lídia Jorge e a presidente da Fundação Champalimaud e ex-ministra Leonor Beleza).

Historicamente, só mais uma mulher teve assento no órgão consultivo. Além destas três e de Assunção Esteves, Manuela Ferreira Leite esteve no Conselho de Estado. E aí, em 2006, fê-lo por nomeação do então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Tornando-se líder do PSD em 2008, deixou o lugar vago, sendo substituída por Leonor Beleza.

Esta dificuldade pode justificar-se por um fator: a “base de recrutamento” partidário. “Há, de facto, uma tendência”, com os partidos a terem mais homens do que mulheres, segundo Paula do Espírito Santo, investigadora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). “Não é um caso só nacional, noutros contextos, até a nível europeu, acontece o mesmo. As militâncias partidárias são maioritariamente masculinas”, compara.

Na opinião da professora, “seria benéfico” ter uma maior representação feminina no Conselho de Estado, mesmo sendo uma estrutura meramente consultiva. É, no entanto, “interessante” que seja o próprio Presidente da República “a dar essa mensagem rumo à paridade, ao nomear ele próprio mulheres para este órgão”.

“É importante que seja transmitida essa mensagem”, considera Paula do Espírito Santo. Esta atitude “pode ser um sinal dos tempos, era bom que o fosse, na verdade”.

Aprovada pela primeira vez em 2006, a Lei da Paridade foi revista em 2019. E ainda que só se cinja a órgãos eleitos (ou seja, Assembleias da República e Regionais, Parlamento Europeu e autarquias), o texto é claro e define uma “representação mínima de 40% de cada um dos sexos”. Ainda que não seja aplicável neste caso do Conselho de Estado, “devia ser mais respeitada”, nota a investigadora.

 “A verdade é que, mesmo com as leis a começarem a focar-se na paridade, é algo que ainda não se verifica.” E, aparentemente, não há razão: “É uma questão praticamente transversal. Reconhece-se que faltam mais mulheres e praticamente todos os partidos têm este tema na agenda. É difícil encontrar uma explicação para esta sub-representatividade feminina no Conselho de Estado”, conclui.

Aliás, a paridade (ou falta dela) no Conselho de Estado não é tema novo ou exclusivo à eleição que agora aconteceu. Num artigo de opinião publicado no DN em julho de 2023, Teresa Pizarro Beleza e Helena Pereira de Melo passavam em revista as diferentes eleições parlamentares para o órgão consultivo e notavam: “A Assembleia da República elegeu cinco homens [Carlos César, Pinto Balsemão, Sampaio da Nóvoa, Manuel Alegre e Miguel Cadilhe] numa perspetiva algo dinástica, mas será porventura necessário dar espaço a ideias monárquicas num regime democrático que se quer tolerante.” No mesmo texto - e perante a falta de assentos ocupados por mulheres -, as duas autoras falavam ainda numa “discriminação indireta injusta” (porque até os cargos por inerência são normalmente ocupados por homens).  “Num Estado de direito democrático assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, a má-fé do legislador deve ser excluída”, rematavam.

Partidos contestam lista do Parlamento

A eleição para o Conselho de Estado (que tem a primeira reunião marcada para dia 15 de julho) não foi isenta de críticas. Além da contestação ao facto de ter sido apresentada uma lista única, que incluiu  Ventura, BE, Iniciativa Liberal e Livre, criticaram a constituição da lista.

“Em 2024 não faz sentido os partidos não conseguirem apresentar candidatas para o Conselho de Estado”, disse Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar do Livre. Já Mariana Leitão, líder de bancada da Iniciativa Liberal, criticou “a hipocrisia” de PS e PSD ao aliarem-se ao Chega neste caso. E pelo BE Mariana Mortágua foi no mesmo sentido, apontando que se leva a sério “os partidos que dizem que vão erguer barreiras” ao Chega, mas que “quando se fala de lugares de Estado” haja sempre um acordo com o partido de  Ventura.

Partidos de centro-direita ganham. Esquerda perdeu peso

O Conselho de Estado foi criado em 1982, após ter sido extinto o Conselho da Revolução. Com isso, o Presidente da República passou a auscultar os conselheiros em relação a algumas matérias, como a dissolução da Assembleia.

Composto por 18 assentos, há três tipos de conselheiros: os que têm assento por inerência pelo cargo que desempenham (como o primeiro-ministro ou antigos Presidentes da República), os nomeados pelo chefe de Estado (como, por exemplo, os casos atuais de Marques Mendes ou Lídia Jorge) e aqueles que são eleitos pelo Parlamento, com recurso ao método de Hondt. Ou seja, só os maiores partidos podem propor nomes para as listas (ou lista única) a serem votadas.

Isto significa que desde a última legislatura (2022) os partidos mais à esquerda, PCP e BE, perderam capacidade de sugerir nomes para o Conselho de Estado. Foi uma das poucas vezes em que tal sucedeu. Olhando para as listas que o Parlamento votou, e que estão disponíveis em Diário da República, é possível ver que em 2002 o mesmo aconteceu. Nesse ano, os nomes enviados pela Assembleia da República circulavam todos à volta de três partidos: PS, PSD e CDS-PP. Tal aconteceu também em 2011, por exemplo. Mas nos anos da ‘geringonça’ (2015 e 2019) PCP e BE voltaram a ter, respetivamente, Domingos Abrantes e Francisco Louçã como nomes eleitos para este órgão consultivo. E, apesar de o CDS não ter conseguido eleger deputados em 2022, o partido manteve a sua representação, com António Lobo Xavier, militante do partido, a ser nomeado pelo Presidente da República.

Com a atual constituição, o Conselho de Estado passa a ser mais conotado com o centro-direita. Só quatro dos 18 conselheiros estão claramente do lado esquerdo: Pedro Nuno Santos, Carlos César, José João Abrantes e Lídia Jorge. Isto faz com que o centro-direita tenha maioria absoluta e a direita radical esteja pela primeira vez representada.

Assembleia da República como contrapoder

Outra análise mostra também que muitas vezes o Parlamento serve quase como um contrapeso à ideologia política do Presidente da República.
Por exemplo, quando, em 2019, o Parlamento elegeu os seus conselheiros de Estado, enviou dois nomes ligados aos partidos mais à esquerda (Domingos Abrantes e Francisco Louçã) e até o então líder do PSD, Rui Rio, era conotado com uma filosofia mais à esquerda dentro do partido.
No entanto, em 1996 e 1999, era então Presidente Jorge Sampaio (militante do PS), a esquerda dominava entre os nomes da Assembleia para o Conselho de Estado, com  PS e PSD em equilíbrio e um nome mais associado ao PCP (Gomes Canotilho).

E logo nos primeiros anos de Conselho de Estado, durante os mandatos de Ramalho Eanes, os pesos pesados de PS e PSD foram também eleitos. E em 1985, estando representados por Mário Soares e Mota Pinto, respetivamente, o PCP escolheria Álvaro Cunhal. O nome indicado pelo CDS-PP era Francisco Lucas Pires.

rui.godinho@dn.pt