Casa do Brasil
11 janeiro 2024 às 16h09
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Inquérito. Mais de 90% dos imigrantes sofrem discriminação no acesso à habitação

Os testemunhos no estudo vão desde senhorios dizerem diretamente que não arrendam a brasileiros, até casos de assédio sexual e aumento das verbas para poder de arrendar ao saber que o interessado não é português

“Quando chegamos, toda vez que ligávamos para um anúncio e escutavam o nosso sotaque brasileiro, diziam que estava arrendado. Foi preciso pedir a uma colega portuguesa para ligar, então conseguimos agendar visitas”. Este é um dos mais de 90 relatos colhidos no inquérito “Imigração e a discriminação na habitação”, realizado pela Casa do Brasil e divulgado ontem. A investigação aponta que mais de 90% dos imigrantes entrevistados já sofreu algum tipo de discriminação em relação à habitação em Portugal.

Participaram no estudo 230 imigrantes que residem no país. A situação mais recorrente, que atingiu 45% dos inquiridos, foi no arrendamento. “Cada telefonema para um potencial senhorio é um eco de esperança que se desfaz ao contato com a realidade”, escreve no preâmbulo Freda Paranhos, presidente da associação TransParadise.

A maior discriminação que os inquiridos se queixam é xenofobia, seguido de preconceito linguístico, discriminação social, discriminação de género e racismo. Ao DN, a coordenadora do estudo, Ana Paula Costa, afirma que o alto índice de discriminação já era esperado: “Confirma-se uma tendência daquilo que ouvimos no atendimento aos imigrantes e também dos outros relatórios sobre discriminação, sempre acima dos 90%”, explica.

Nos relatos estão três tipos de situações predominantes: a primeira, com 37,6%, é de xenofobia no momento do contacto ou da visita ao imóvel. Num dos depoimentos, a imigrante contou que foi vítima de um estereótipo por ser mulher brasileira. “A senhoria disse que não arrendava para brasileiras porque elas traziam muitos homens a casa e aquele era um ambiente de família”.

Outra cidadã do Brasil passou pelo mesmo. “O arrendatário disse ‘Não arrendo para brasileiros, são muitos sujos e estragam tudo. E depois querem subarrendar os quartos. E muitas vem para trabalhar sendo puta’”, ressaltou. Há também casos de assédio. “Sofri xenofobia e assédio ao alugar um quarto e o senhorio propor que ficasse com ele em troca de pagar o aluguel e ouvir coisas do tipo as brasileiras são rabudas e safadas , gosto de ficar com uma pretinha”. O relatório pontua que “é possível verificar que há uma forte discriminação baseada nos estereótipos da mulher brasileira”. Das 230 respostas, 74,4% são mulheres.

Em segundo lugar, estão os relatos de indisponibilidade de arrendamento/compra do imóvel por ser imigrante, que somam 32,3% dos depoimentos. “Ouvi da funcionária da imobiliária que o senhorio não queria alugar o apartamento para brasileiros”, escreveu outro imigrante. Um brasileiro contou no inquérito que teve o arrendamento negado, mesmo atendendo todas as condições exigidas pelo proprietário. “Tinha todas as condições para o arrendamento, inclusive fiador português e boa recomendação deste ao senhorio e o mesmo disse que não se sentia confortável a arrendar a brasileiros”.

Logo atrás, a totalizar 30,1%, está a penalização nos requisitos do arrendamento por ser imigrante, como exigência de mais cauções, documentos e fiadores. “Ao saber que era brasileira mudou os termos da proposta de arrendamento e tornou impossível ser efetivada por exigir oito meses adiantado, incluindo três rendas e cinco meses de caução, além de fiador português”.

Por lei, o máximo que pode ser exigido são três rendas antecipadas, mas, na prática, os relatos mostram que a legislação não funciona. “Pediram dez rendas adiantadas porque éramos brasileiros. Portugueses deviam pagar adiantadas duas rendas”. Em outro, foi exigido o pagamento equivalente a um ano logo no início. “Os senhorios mudam valores de renda [ao saber que somos brasileiros], mudam os documentos necessários e pedem mais rendas e cauções. Já recebi um pedido de 12 cauções, ou seja, o contrato inteiro deveria ser pago de uma vez na entrada”, escreve.

Dificuldade em provar

Dos 280 imigrantes que responderam ao inquérito, quase 95% não denunciaram, às autoridades, os casos. Os motivos são diversos: medo, falta de confiança nas instituições, falta de informação, vergonha e/ou falta de provas. Especialmente no caso da habitação, existe a dificuldade em obter provas, já que muitos contactos são por telefone e em chamadas não gravadas.

Um dos depoimentos ilustra a situação. “Como provar algo que é via contacto telefónico? No caso dos adiantamentos das rendas, a dificuldade em conseguir um imóvel faz com que nos sujeitamos às práticas”. Outro motivo apontado é a “certeza da impunidade”. Em 2022, apenas uma em cada cinco queixas deu origem a um processo de contraordenação, segundo o relatório da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR).

Para o professor Luís Mendes, investigador na área de habitação, a dificuldade no acesso à habitação é geral em Portugal, no entanto, os imigrantes são mais prejudicados. “O direito a morar é muito mais do que um teto, um chão e quatro paredes, é o direito de estar, de descansar em segurança. Enquanto não tivermos uma política de habitação, a população migrante não vai estar plenamente integrada”, argumenta o especialista.

Uma das conclusões do relatório é a necessidade de políticas públicas no setor, especialmente para a população mais vulnerável, o que inclui os imigrantes. O resultado da falta destas iniciativas, somado ao preconceito existente entre os proprietários, tem como resultado “outros problemas sociais como habitações sobrelotadas, aumento da população sem abrigo e aumento da pobreza e vulnerabilidade”.

Em breve será divulgado um novo documento com as recomendações para melhorar o panorama dos imigrantes no acesso à habitação. O projeto é uma iniciativa do MigraMyths - Desmistificando a Imigração, que tem como objetivos o combate ao discurso de ódio, fake news e desconstruir mitos que estão na base de preconceitos e discriminações sofridas pela comunidade migrante em Portugal.

amanda.lima@globalmediagroup.pt