Vivenda Aleluia 
06 janeiro 2024 às 12h00
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Ministério Público investiga negócio imobiliário do PCP em Aveiro

A “permuta” efetuada pelo PCP com a empresa imobiliária EGIC, tendo como objeto um edifício no centro de Aveiro, a “Vivenda Aleluia”, está a ser investigada pelo Ministério Público. Em causa estará a suspeita de financiamento partidário ilegal, que é crime público. EGIC “lamenta” abertura do inquérito, PCP não comenta.

O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto está a investigar o negócio efetuado pelo Partido Comunista Português com a Empresa de Gestão Imobiliária e Construção (EGIC), através do qual o partido “permutou”, em junho de 2023, a Vivenda Aleluia - edifício construído em 1929 e situado na principal avenida de Aveiro, que comprara em 2014 por 350 mil euros -, por cinco frações, às quais foi atribuído no contrato o valor de 800 mil euros, do novo edifício de sete andares que a imobiliária vai construir no local

Esta permuta permitiu ao partido uma mais-valia de 129% face ao que pagara em 2014. No mesmo dia do contrato de permuta com o PCP, como revelou a 2 de novembro o DN, a EGIC contraiu um empréstimo de cinco milhões de euros com a Caixa Geral de Depósitos dando como garantia o lote de terreno da Vivenda Aleluia. 

O inquérito do DIAP portuense, que de acordo com a informação prestada ao DN pela Procuradoria Geral da República se encontra em segredo de justiça, terá surgido na sequência da investigação do jornal sobre o negócio, o qual a EGIC admitiu, através da sua gerente Lúcia Ferreira, ser um de vários “exatamente iguais” celebrados entre a imobiliária e o partido

Em causa no inquérito criminal estará assim o facto de, como o DN reportou, a empresa ter no caso da Vivenda Aleluia assumido, vários anos antes de tomar posse da propriedade - o que só sucedeu em junho de 2023 - encargos financeiros relacionados com o projeto de arquitetura e com o licenciamento do novo edifício, encargos esses que deveriam estar, a título de sinal ou adiantamento, discriminados no contrato de permuta. Sob pena de, como explicou ao jornal a jurista Margarida Salema, ex-presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), se estar perante o crime de financiamento ilegal, desde 2010 crime público, ou seja, não dependendo de queixa.

“Se um partido tem um bem e coloca uma empresa a dar valor a esse bem, sem declarar nem justificar, ou seja, se há financiamento sub-reptício e enriquecimento não justificado que tem na sua base a intervenção de uma empresa, então sem dúvida que há financiamento ilegal. Os partidos não podem fazer coisas assim”, disse ao DN Salema, que presidiu à ECFP (órgão independente que funciona junto do Tribunal Constitucional,  tendo como função principal coadjuvá-lo tecnicamente na apreciação e fiscalização das contas anuais dos partidos políticos) entre 2009 e 2017. “Um partido pode encarregar uma empresa de efetuar algo em seu nome, mas se tal implica a empresa efetuar despesas, isso tem de estar contratualmente clarificado. E, se sucede antes de um contrato definitivo, terá de surgir depois nesse contrato a título de sinal ou adiantamento. Os dinheiros têm de estar todos bem escalpelizados, declarados.”

Outras permutas para investigar?

Ora segundo a EGIC e o arquiteto Arnaldo Brito, por esta contratado, reconheceram ao DN, o PCP passou procurações a ambos para que em seu nome procedessem ao necessário para licenciar o novo edifício, o que sucedeu a partir de 2018/19. Porém o contrato de permuta registado na Conservatória de Aveiro não indica quaisquer importâncias adiantadas pela empresa a título de sinal, nem o PCP ou a EGIC quiseram revelar qual o valor adiantado ou os termos do contrato de promessa celebrado entre as duas entidades em outubro de 2021 (sendo que o “pedido de informação prévia” à autarquia de Aveiro para inquirir sobre o que se poderia construir no local da Vivenda Aleluia foi submetido pelo arquiteto em nome do PCP muito antes da assinatura desse contrato de promessa). 

De resto, o partido respondeu com uma única frase às 16 questões que lhe foram enviadas pelo jornal: “O PCP reafirma os esclarecimentos já tornados públicos”. Refere assim um curto comunicado exarado a 28 de setembro de 2023, intitulado “O esclarecimento necessário sobre o centro de trabalho de Aveiro”, e no qual se limita a informar que “foi feita uma permuta, no seguimento da qual reverterá para o PCP exclusivamente o espaço equivalente às instalações que detinha, nomeadamente para garantir o centro de trabalho, que de outra forma seria impossível manter pelas exigências e encargos financeiros que se colocavam para a sua conservação. Assim, o PCP não é responsável pelas obras em curso, nem é proprietário dos imóveis que se encontram à venda cujos valores são da exclusiva responsabilidade do actual proprietário.”

O partido recusou assim qualquer esclarecimento, apesar de o DN o ter especificamente questionado sobre se considera que os termos do acordo que celebrou com a EGIC cumprem integralmente a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos (lei 19/2003, de 20 de junho), nomeadamente a alínea C do artigo 8º. Este artigo, cuja epígrafe é “Financiamentos proibidos”, dispõe: “É designadamente vedado aos partidos políticos receber ou aceitar quaisquer contribuições ou donativos indiretos que se traduzam no pagamento por terceiros de despesas que àqueles aproveitem.” É também vedado o financiamento de partidos por empresas.

Igualmente de interesse no inquérito em curso no DIAP-Porto serão os outros negócios que a gerente da EGIC, Lúcia Ferreira, comunicou ao DN terem sido efetuados entre a empresa e o PCP “exatamente nos mesmos moldes”: “Isto [o processo da Vivenda Aleluia] é um processo exatamente igual a outros que já fizemos, fizemos outros centros de trabalho que eles [PCP] têm, exatamente nos mesmos moldes, tal qual”. 

Um desses outros negócios está assinalado no relatório da ECFP relativo às contas de 2012 do partido como dizendo respeito ao número 240 da Rua de São Cosme, na Freguesia do Bonfim, no Porto, ao qual foi atribuído na permuta “o valor de 230 mil euros, para construção de edifício”. Em troca, o partido contratava a receção de duas frações “do prédio a construir”, valendo uma 95 mil euros e a outra 135 mil. Em fevereiro de 2013, o partido noticiava a inauguração das “novas instalações do Centro de Trabalho Guilherme da Costa Carvalho, na Rua do Barão de S. Cosme nº 240”. 

Mas não é só com a EGIC - cuja gerente, contactada pelo DN a propósito da existência do inquérito criminal sobre a permuta da Vivenda Aleluia, assegura “não fazer ideia” e “só poder lamentar” -, que o PCP, partido que de acordo com os dados registados na Entidade das Contas detém um património imobiliário de 14,475 milhões (só ultrapassado pelo do PSD), correspondendo a 45 prédios rústicos e 281 prédios urbanos, tem vindo a celebrar “contratos de permuta” relativos a imóveis. Já em dezembro de 2016 o Expresso, num trabalho de investigação titulado “Negócios imobiliários sustentam contas do PCP”, se havia debruçado sobre aquilo que descreve como os “lucros” conseguidos há décadas por este partido nos ditos negócios “como forma de arrecadar receitas para o seu funcionamento”.

O jornal exemplifica com o negócio da Rua de São Bernardo (à Calçada da Estrela, numa das zonas mais dispendiosas da capital), que designa como “a jóia da coroa” das possessões imobiliárias do partido - tratava-se de dois edifícios onde tinham funcionado o jornal O Diário e a Editorial Caminho, aos quais este atribuía o valor de 1,49 milhões de euros. Segundo a investigação do semanário, os dois imóveis foram “permutados em 2013 por 1,3 milhões” com a Pais de Sousa Construções, Lda, que anexou os dois e os remodelou, “mantendo o partido um terço da propriedade em andares, garagens e lojas totalmente remodelados e que estão [estavam à época da publicação] a ser revendidos.”

A indemnização mistério e “a moral dos comunistas”

Há outra questão que poderá merecer a atenção do MP. Trata-se do acordo que, concluiu o DN, existiu com o casal que explorava a pastelaria, de seu nome Selectarte, que funcionou até agosto de 2022 no piso térreo da Vivenda Aleluia. “Conversaram com a gente e foi tudo às boas”, asseverou ao jornal a gerente, que  à pergunta sobre se recebera uma indemnização respondeu: “Olhe foi tudo na boa. Foi tudo de acordo, ambas as partes, está tudo bem, saímos na boa, não tenho nada a falar contra eles, foram humanos, é o único que tenho a dizer. Chegámos a um acordo, nada mais, eles são pessoas com quem sempre houve uma boa relação. Não tenho nada a informar contra eles.”

Não quis porém confirmar que a dita compensação foi paga pelo PCP: ““Ai foi com o meu marido isso não sei, já não sei.” Quando o DN pediu para falar com o marido, a ex-gerente disse que este não estava disponível, por se encontrar “fora do país”. 

Tendo a EGIC garantido ao DN que o referido acordo é “assunto da inteira responsabilidade do PCP”, o jornal consultou as contas gerais apresentadas pelo partido à Entidade da Contas e Financiamentos dos Partidos Políticos em 2021 e 2022, e que estão ainda por auditar, nada encontrando nelas que identifique uma quantia entregue a título de “indemnização por encerramento” - a descrição que, segundo Margarida Salema, deveria constar no balanço geral. 

Também foram consultadas as saídas da conta bancária da Direção Regional de Aveiro do PCP, e não se encontrou algo que pudesse corresponder (de acordo com a lei, “o pagamento de qualquer despesa dos partidos políticos é obrigatoriamente efetuado por meio de cheque ou por outro meio bancário que permita a identificação do montante e a entidade destinatária do pagamento”).

Perguntado sobre esta situação - “O PCP fez algum acordo para o encerramento do estabelecimento [Selectarte]? Se sim, que acordo, quando, e quem foi mandatado pelo partido para o negociar? Se existiu pagamento de indemnização relacionada com o encerramento do referido estabelecimento, qual o seu valor e de que conta bancária saiu e quando?” - o partido, como já referido, declinou responder.

Não só a total falta de transparência evidenciada pelo PCP em tudo o que respeita ao caso Aleluia choca com a ideia, plasmada no ensaio de 1985 do histórico dirigente Álvaro Cunhal, de “um partido com paredes de vidro”, como também não parece confirmar-se a existência, igualmente garantida por Cunhal, de um “profundo contraste, evidenciado no dia-a-dia da vida económica, social e política, entre a amoralidade das forças reacionárias e a moral dos comunistas”

A “função social da habitação” e a captura das mais-valias

Como já foi apontado no vasto noticiário publicado desde setembro sobre este negócio imobiliário do PCP, o edifício licenciado em seu nome e no seu interesse - já que fica bens mais valiosos - não inclui qualquer fração para arrendamento acessível ou para venda a custos controlados. Ou seja, não reflete a mínima preocupação com aquilo que o partido defende, no seu discurso político, dever ser acautelado na construção e reabilitação, nomeadamente nos centros das cidades: a função social da habitação.

Essa função social, como o PCP frisa no artigo 6º de um projeto de lei de 2018 - contemporâneo dos primeiros contactos do partido com a EGIC a propósito da Vivenda Aleluia e do pedido de informação efetuado à Câmara de Aveiro no sentido de saber se era possível erguer ali um prédio em altura - não foi minimamente acautelada no projeto do novo Edifício Aleluia.

Aliás, ao invés do que preconiza nesse mesmo projeto de lei, que denomina de "Lei de bases da habitação" e estabelece como “objetivo estratégico (…) contrariar a especulação imobiliária e dar utilização e gestão pública às mais-valias decorrentes quer de intervenções sobre transformação de uso dos solos quer de planos de densificação e, ou, alteração qualitativa de uso do edificado”, o projeto que o PCP negociou com a EGIC e que foi apresentado à autarquia de Aveiro, à qual preside desde 2013 o social-democrata José Ribau Esteves (eleito numa coligação PSD/CDS-PP), e por ela licenciado enquanto o PCP era o proprietário, é precisamente uma densificação e uma alteração qualitativa do edificado com muito significativas mais-valias. As quais, como se demonstrou, se dividem entre o partido e a imobiliária, numa operação que na perspetiva da “lei de bases da habitação” apresentada pelo PCP em nada contraria - antes dela beneficia - “a especulação imobiliária”.

A contradição, evidenciada no negócio descrito, da prática face ao discurso político, e o caráter tão significativo das mais-valias que permitiu quer ao partido quer, sobretudo, à imobiliária, devem ser também apreciadas à luz da evolução da posição do PCP quanto à própria Vivenda Aleluia. 

É que, como já foi noticiado, quando em 2006 o então proprietário do imóvel, Gervásio Aleluia, quis fazer precisamente o que o partido, então arrendatário (depois de, no pós-25 de Abril, ocupar o edifício, celebrou mais tarde um contrato de arrendamento) fez agora - demolir o edifício para construir no local um prédio em altura, o PCP apoiou entusiasticamente a decisão do executivo PSD/CDS-PP de, por unanimidade, não autorizar.

Pela voz do dirigente António Salavessa, que foi cabeça de lista da CDU nas autárquicas de 2005 e integrava à época o Comité Central do partido, e reagiu no Público em 14 de junho de 2006, o partido classificou a decisão camarária de "exemplar", frisando tratar-se de um imóvel de "valor incontestável” e esperar que a autarquia seguisse "o mesmo caminho em relação a outros imóveis de interesse arquitetónico que é preciso preservar”.

O proprietário “enganado” e uma investigação “normal”

A reviravolta da posição do PCP - que quatro anos depois de comprar um imóvel de “incontestável valor” que “era preciso preservar” já estava a inquirir sobre a possibilidade de edificar sobre as suas ruínas - levou o advogado de Gervásio Aleluia, o proprietário da moradia até 2014, a certificar-lhe que fora “enganado”. É o próprio, hoje com 78 anos, e que o DN finalmente conseguiu localizar, a confessá-lo, com um suspiro. “Mas ia fazer o quê? Já tinha vendido. Eles podiam fazer o que quisessem.” 

Gervásio Aleluia, que viveu até aos dois anos na casa construída pelo avô materno cujo nome herdou, conta que o primeiro projeto de edificação nova naquele terreno foi do seu pai, João Lapa de Oliveira, que morreu em 1999. Acabaria, como é sabido, por ser o PCP, que fizera da Vivenda Aleluia o seu centro de trabalho em Aveiro, pagando por ele uma renda que, afiança o ex-senhorio,“era baratíssima” - “No final era uns 500 ou 600 euros” - a levar o intento avante.

O baixo valor da renda paga pelo partido terá sido precisamente o que levou Aleluia a vender, tanto mais que, conta, a dada altura o inquilino resolveu fazer obras e apresentou ao senhorio “uma conta choruda”. De tal modo choruda, queixa-se este, que corresponderia “a anos e anos de rendas”: “Fizeram o que quiseram. Puseram um chão novo, reforçaram o sótão… Foram uns 30 ou 40 mil euros, já não tenho a certeza absoluta. Paguei e fiquei triste, resolvi vender.”  

Nenhuma das informações adiantadas por Gervásio Aleluia pôde ser confrontada com a versão do PCP, já que este recusou responder a todas as perguntas que o DN fez sobre a matéria.

Certo é porém que em 2006 o já citado dirigente António Salavessa asseverou ao Público que "antes de servir de casa para o PCP de Aveiro, aquela que havia sido a moradia da família Aleluia estava devoluta (...) e acabou por ser alvo de uma grande intervenção de recuperação por iniciativa dos comunistas", sendo que, ainda segundo Salavessa, "só depois das obras feitas é que o senhorio suportou o custo da empreitada". Oito anos depois destas palavras, o PCP comprava o edifício e pouco depois queixava-se publicamente de não conseguir mantê-lo, justificando assim a sua destruição e o negócio com a EGIC.

De novo contactado pelo jornal, agora a propósito da existência do inquérito criminal em curso no DIAP-Porto, o partido afirma, através do seu gabinete de imprensa, não ter dele conhecimento nem comentários a fazer. 

Já Margarida Salema vê a existência do inquérito como “normal”: “Face à situação descrita é normal que o MP inicie uma investigação, para tentar averiguar se não houve financiamento ilícito, ou seja, financiamento escondido feito por uma empresa, o que é proibido em Portugal”. E conclui: “Como a entidade fiscalizadora não tem poderes de investigação, apenas contabilísticos, têm de ser as entidades judiciais a investigar.”