As regras “especiais” de contratação pública aprovadas em maio de 2021 com o objetivo de acelerar a execução dos projetos financiados por fundos europeus clássicos ou pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), entre outros, por exemplo, estão a ser alvo de “manipulação”, havendo inúmeros casos em que a entidade pública que adjudica uma obra ou compra bens e serviços (adjudicante) concede contratos sucessivos à mesma empresa ou beneficiário último, inibindo assim a concorrência, e viola os limites financeiros estabelecidos por lei aos valores dos contratos, existindo inclusive casos de “fraude à lei”, denuncia o Tribunal de Contas (TdC), numa auditoria a contratos públicos feitos “ao abrigo das medidas especiais de contratação pública (MECP)”.
Há um caso em que o Tribunal se diz mesmo “perplexo” pela forma como uma entidade pública (“Município de Viseu”) optou por fatiar a contratação de trabalho (limpeza de florestas ardidas, por exemplo) em vários contratos (ajustes diretos), logrando assim contornar o limiar em euros imposto pela lei, explica o auditor.
De acordo com o terceiro “Relatório de Acompanhamento da Contratação Pública abrangida pela Lei n.º 30/2021”, naquela que será das últimas auditorias publicadas sob a presidência de José Tavares (o seu mandato de quatro anos terminou esta segunda-feira e a sua sucessora, Filipa Urbano Calvão, toma posse no próximo sábado), o TdC passou a pente fino negócios celebrados entre entidades públicas e “fornecedores” privados no valor de 238,8 milhões de euros distribuídos por 1.582 contratos, a que acrescem 50 contratos submetidos a fiscalização prévia, no montante global de 89 milhões de euros, todos firmados entre meados de maio de 2021 e final de junho passado.
A lei 30/21, feita pelo governo de António Costa, tem como objetivo acelerar a contratação pública “em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de saúde e apoio social, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social e do Plano de Recuperação e Resiliência, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais e, ainda, de bens agroalimentares”.
Segundo o coletivo de juízes, “concluiu-se que 86,82% dos contratos MECP e 86,5% do montante contratado respeitam a projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, incluindo no âmbito do PRR”.
Dentro deste universo, exemplos de más práticas ou de ligeireza no seguimento das regras não faltam, havendo casos que podem ser graves.
Além disso, “a lei não é clara no estabelecimento de limites para os ajustes diretos simplificados aos mesmos adjudicatários”, o que agrava o problema.
O TdC conclui várias coisas. Que “aumentaram as insuficiências de documentação quanto ao financiamento europeu envolvido”; detetou “insuficiências de documentação e fundamentação das decisões, em particular quanto à explicitação das necessidades a satisfazer, à escolha das entidades a convidar em consultas prévias e ajustes diretos e à justificação e justeza do preço aceite”.
E constata que em 20% dos casos “não foi identificada a existência das declarações sobre a inexistência de conflitos de interesses dos intervenientes”.
O Tribunal alerta que “continuam a ocorrer muitas situações em que as empresas convidadas a participar em procedimentos não apresentam proposta”, que há “vários casos em que os limites de adjudicações sucessivas aos mesmos adjudicatários foram já atingidos, tendo-se observado, em geral, manipulação dos vários limites possíveis” e que “identificaram-se casos em que o mesmo adjudicante celebrou contratos com entidades relacionadas entre si com base em procedimentos não concorrenciais para além dos limites legalmente admitidos”.