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Dinheiro
08 outubro 2024 às 00h22
Leitura: 10 min

Tribunal de Contas “perplexo” com “manipulação” de regras em alguns contratos públicos

Juízes mostram-se preocupados com a forma com que algumas entidades públicas estão a contornar as regras vigentes, conseguindo gastar muito mais. Problema: pode haver fundos europeus e do PRR envolvidos.

As regras “especiais” de contratação pública aprovadas em maio de 2021 com o objetivo de acelerar a execução dos projetos financiados por fundos europeus clássicos ou pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), entre outros, por exemplo, estão a ser alvo de “manipulação”, havendo inúmeros casos em que a entidade pública que adjudica uma obra ou compra bens e serviços (adjudicante) concede contratos sucessivos à mesma empresa ou beneficiário último, inibindo assim a concorrência, e viola os limites financeiros estabelecidos por lei aos valores dos contratos, existindo inclusive casos de “fraude à lei”, denuncia o Tribunal de Contas (TdC), numa auditoria a contratos públicos feitos “ao abrigo das medidas especiais de contratação pública (MECP)”.

Há um caso em que o Tribunal se diz mesmo “perplexo” pela forma como uma entidade pública (“Município de Viseu”) optou por fatiar a contratação de trabalho (limpeza de florestas ardidas, por exemplo) em vários contratos (ajustes diretos), logrando assim contornar o limiar em euros imposto pela lei, explica o auditor.

De acordo com o terceiro “Relatório de Acompanhamento da Contratação Pública abrangida pela Lei n.º 30/2021”, naquela que será das últimas auditorias publicadas sob a presidência de José Tavares (o seu mandato de quatro anos terminou esta segunda-feira e a sua sucessora, Filipa Urbano Calvão, toma posse no próximo sábado), o TdC passou a pente fino negócios celebrados entre entidades públicas e “fornecedores” privados no valor de 238,8 milhões de euros distribuídos por 1.582 contratos, a que acrescem 50 contratos submetidos a fiscalização prévia, no montante global de 89 milhões de euros, todos firmados entre meados de maio de 2021 e final de junho passado.

A lei 30/21, feita pelo governo de António Costa, tem como objetivo acelerar a contratação pública “em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de saúde e apoio social, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social e do Plano de Recuperação e Resiliência, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais e, ainda, de bens agroalimentares”.

Segundo o coletivo de juízes, “concluiu-se que 86,82% dos contratos MECP e 86,5% do montante contratado respeitam a projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, incluindo no âmbito do PRR”.

Dentro deste universo, exemplos de más práticas ou de ligeireza no seguimento das regras não faltam, havendo casos que podem ser graves.

Além disso, “a lei não é clara no estabelecimento de limites para os ajustes diretos simplificados aos mesmos adjudicatários”, o que agrava o problema.

O TdC conclui várias coisas. Que “aumentaram as insuficiências de documentação quanto ao financiamento europeu envolvido”; detetou “insuficiências de documentação e fundamentação das decisões, em particular quanto à explicitação das necessidades a satisfazer, à escolha das entidades a convidar em consultas prévias e ajustes diretos e à justificação e justeza do preço aceite”.

E constata que em 20% dos casos “não foi identificada a existência das declarações sobre a inexistência de conflitos de interesses dos intervenientes”.

O Tribunal alerta que “continuam a ocorrer muitas situações em que as empresas convidadas a participar em procedimentos não apresentam proposta”, que há “vários casos em que os limites de adjudicações sucessivas aos mesmos adjudicatários foram já atingidos, tendo-se observado, em geral, manipulação dos vários limites possíveis” e que “identificaram-se casos em que o mesmo adjudicante celebrou contratos com entidades relacionadas entre si com base em procedimentos não concorrenciais para além dos limites legalmente admitidos”.

Casos problemáticos

O caso de Viseu é um dos escolhidos pelo TdC para ilustra os “riscos” que emergem quando os intervenientes num negócio contornam as regras, mesmo sem violar logo a lei.

O município, liderado pelo social-democrata, Fernando Ruas, adjudicou à Cedrus - Associação de Produtores Florestais de Viseu a compra de “serviços para gestão de combustível”, floresta queimada, basicamente. Tudo por ajuste direto.

Problema: segundo o Tribunal, o limite a que a câmara devia ter respeitado era o que decorre da lei (221 mil euros), mas com o expediente da multiplicação dos ajustes conseguiu contratar serviços no valor de 342,1 mil euros.

“O montante total das adjudicações sucessivas referidas excede já esse limiar, apesar de o convite para o último dos contratos ter sido efetuado quando o limiar ainda não estava excedido”. No entanto, “constata -se que existem mais ajustes diretos efetuados pela mesma autarquia à mesma entidade, designadamente um por ano, o que suscita perplexidade quanto à contabilização separada dos limiares”, confessa o Tribunal.

Outro caso parecido acontece no município de Valongo que estaria limitado a gastar 221 mil euros em projetos de arquitetura e engenharia para renovar escolas básicas da região, mas acabou por contratar um total de 324 mil euros. Ganhou a empresa Paulo Pereira – Serviços de Engenharia. Segundo o TdC, este caso “evidencia mais uma situação em que, para um limite de 221mil euros, uma sequência de contratos resulta num valor de adjudicações sucessivas bastante superior”.

“Este caso tem a particularidade de os procedimentos e contratos serem praticamente simultâneos” pelo que “caso estivéssemos perante objetos contratuais agregáveis, poderia equacionar-se a figura da fraude à lei por fracionamento ilegal da despesa”, atiram os juízes.

O TdC aponta problemas similares (violação do limite dos ajustes diretos) em mais casos de” contratos adjudicados por adjudicante ao mesmo adjudicatário” que envolvem o Instituto Politécnico de Leiria e a Agência Portuguesa do Ambiente, por exemplo.

E o rol de situações anómalas continua. O Tribunal detetou “casos em que o mesmo adjudicante celebrou contratos com entidades relacionadas entre si com base em procedimentos não concorrenciais, para além dos limites legalmente admitidos”, ou seja, adjudicou trabalho a empresas diferentes que tinham a mesma pessoa como titular de órgãos sociais, ou seja, o mesmo responsável em duas ou mais empresas aparentemente diferentes.

Os municípios de Vila do Conde e de Vila Real de Santo António, mas também a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) são algumas das entidades públicas que incorreram nesta prática, o que lhes permitiu quase duplicar ou mesmo duplicar o valor dos contratos face ao limite legal estabelecido.

No caso dos negócios de “consultoria” adjudicados pela ERS, o limite do regime escolhido (consulta prévia simplificada) permitiria gastar, no máximo, 215 mil euros, mas a fragmentação por duas empresas diferentes que partilham entre si o mesmo titular de órgãos sociais (Frederico Mota Reis) permitiu chegar a mais de 596 mil euros em despesa pública com as tais consultoras.

O Tribunal aponta ainda o caso de 15 contratos (ajustes diretos e consultas prévias simplificadas) assinados entre a Agência Portuguesa do Ambiente e duas empresas cujo titular dá pelo nome de Fernando Miguel Fagundes Ricardo Couchinho.

Este caso “ilustra uma situação em que a mesma entidade adjudicante atribuiu a uma mesma pessoa, titular de duas empresas unipessoais, sucessivamente, por ajustes diretos simplificados e consultas prévias simplificadas, vários contratos, ultrapassando, no total, o limite fixado para as consultas prévias simplificadas”, constata o TdC.

Através deste expediente, as duas empresas em questão conseguiram faturar mais de 755 mil euros junto daquele instituto público, entre 17 de março de 2020 (Governo PS) e 11 de junho de 2024 (Governo PSD-CDS).

A instituição deixa ainda um aviso, diz que vai investigar melhor caso a caso: “indiciaram-se alguns casos de incumprimento do dever de comunicação das MECP ao Tribunal de Contas, de produção de efeitos contratuais antes da comunicação ao Tribunal, de eventual desrespeito pelos procedimentos exigidos e de adjudicações reiteradas aos mesmos adjudicatários ou empresas relacionadas, que serão objeto de aprofundamento e apreciação individualizada”, diz no relatório.