Parece ser um caso único nos tribunais portugueses: uma indemnização decidida há 12 anos pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com trânsito em julgado e paga na totalidade, é alterada agora por um novo acórdão do Supremo, que a reduziu em 40 mil euros.
Em causa está o processo cível movido pelo socialista açoriano Ricardo Rodrigues contra a SIC, por esta o ter apresentado, em dezembro de 2003 e janeiro 2004, como suspeito numa rede de abusos sexuais de menores na ilha de São Miguel - a rede investigada no chamado Caso Farfalha. Em 2012, o Supremo ordenou à empresa que pagasse a Rodrigues 115.758 euros por danos patrimoniais e não patrimoniais (morais), mais juros de mora desde a citação, num total de 145.988,28 euros (os quais foram integralmente pagos até outubro de 2013). É essa a decisão que um novo acórdão do STJ, transitado em julgado em maio, veio revogar, alterando o quantitativo da reparação monetária.
Tal alteração surge por força de uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) em resposta a uma queixa da SIC contra Portugal. Concordando embora com a condenação decretada pelos tribunais portugueses - para os juízes de Estrasburgo a atuação da SIC foi “irresponsável”, causando prejuízo a Ricardo Rodrigues e sendo assim merecedora de sanção -, o TEDH considerou “excessiva” ou “desproporcionada” a dita indemnização.
“Enquanto não é possível concluir que não foi causado dano ao direito de Ricardo Rodrigues à reputação e honra, o tribunal considera difícil de aceitar que o dano causado tenha um tal nível de gravidade que justifique uma indemnização daquela grandeza”, lê-se no acórdão do TEDH, de 27 de julho de 2021. “Um valor tão elevado, que é alto comparando com casos anteriores dizendo respeito a Portugal que o tribunal examinou […], é também capaz de desencorajar a participação da comunicação social em debates sobre matérias de legítimo interesse público e tem um efeito inibidor na liberdade de expressão e na comunicação social. O tribunal considera-o, assim, excessivo neste caso […] sendo a conclusão de que a interferência no direito à liberdade de expressão da empresa queixosa foi desproporcionada e não ‘necessária numa sociedade democrática’ […]”
Porém, ao contrário do que é costume suceder num tribunal que julga Estados - os processos ali aceites têm sempre como réu o país no qual a situação ocorreu e como objeto de apreciação a legalidade das decisões dos tribunais desse país e sua conformidade com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), tratado internacional que vincula os países que, como Portugal, o assinaram -, não foi arbitrada uma reparação, a pagar pelo Estado português, de modo a remediar aquilo que o TEDH considera ter sido um julgamento violador do artigo 10.º da Convenção (que consagra o direito à liberdade de expressão) por parte do tribunal nacional.
Limitando-se a ordenar a Portugal que pagasse pouco mais de quatro mil euros à SIC a título de despesas com o processo de recurso para aquela instância, os juízes de Estrasburgo passaram a bola aos tribunais portugueses: “No que respeita à violação [da CEDH] que identificou […], o tribunal considera que neste caso a forma mais apropriada de reparar as consequências dessa violação é reabrir, a pedido da empresa queixosa, o processo do qual se queixa. Uma vez que a lei do país permite que essa reparação tenha lugar, o tribunal considera que não há necessidade de atribuir à empresa queixosa qualquer soma a respeito de indemnização pecuniária.”
Seguindo as instruções do TEDH, a SIC deu entrada no STJ de um recurso de revisão, o qual foi aceite e resultou, em acórdão de 10 de abril último, na revogação do acórdão anterior e nova condenação da empresa. Com a diferença de que, mantendo a indemnização por danos patrimoniais e arbitrando o mesmo valor, baixa a quantia relativa a danos morais de 50 mil para 10 mil euros.
O novo total é de 75.758 euros (mais uma vez acrescidos de juros de mora desde a citação, ou seja, desde 2007, quando a SIC foi notificada da existência do processo). Face à indemnização recebida em 2013 por Ricardo Rodrigues - 145.988,28 euros -, a diferença andará nos 80 mil euros. A questão é: a quem cabe arcar com essa diferença, reparando os danos pecuniários que o TEDH considera terem sido sofridos pela SIC?