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23 setembro 2024 às 00h07
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Para folhear Grand Tour com prazer

A acompanhar a estreia de 'Grand Tour' na última semana – o filme português candidato aos Óscares, que valeu a Miguel Gomes o prémio de realização no Festival de Cannes –, surge agora uma cine-fotonovela editada pelo Batalha Centro de Cinema.

Numa exposição patente no Batalha por estes dias, chamam-lhe “um formato impresso esquecido”. Foi muito popular na Europa das décadas de 50 e 60, mas em Portugal não se conhecem registos da sua existência de produção nacional: falamos das cine-fotonovelas, publicações que reaproveitam fotogramas e fotografias de cena com o objetivo de recontar a história de um filme, dentro de um limite, mais coisa menos coisa, de 50 páginas e 300 imagens. Isto é, imagens com balões de diálogo e legendas para a narração; apenas uma variante impressa mais económica do que a novelization (“romantização”) que Quentin Tarantino fez do seu filme Era Uma Vez... Em Hollywood (2019), também ele inspirado pelas publicações baratas que se escreviam a partir de rascunhos de guiões... Caso para dizer que os formatos antigos podem voltar a estar na moda. 

E eis que se apresenta a versão cine-fotonovela de Grand Tour, concebida no âmbito da referida exposição (que pode ser vista na sala portuense até 30 de novembro), aproveitando o espírito generalizado do regresso aos velhos suportes, de que o filme de Miguel Gomes será um bom testemunho, no esplendor do seu preto e branco em película de 16mm. 

De onde veio a ideia de criar então esta suposta primeira cine-fotonovela de origem portuguesa? “O que nos influenciou foi mesmo o trabalho de preparação para a exposição documental que temos no Batalha, que se debruça sobre a história das cine-fotonovelas a nível internacional, ao longo do tempo”, começa por contar ao DN Guilherme Blanc, diretor artístico do Batalha Centro de Cinema e coeditor da publicação com David Pinho Barros. “Nesse processo, percebemos que não existia registo de um filme português, estreado comercialmente, que tivesse sido adaptado a esse formato; dizemos na capa que é “provavelmente” a primeira. Como o Batalha tem como missão trabalhar projetos editoriais, pareceu-nos muito aliciante. Tivemos depois de pensar numa pessoa, antes de um filme específico, cuja obra e visão de cinema se adequasse ao exercício — há poucas em Portugal —, e pensámos desde logo no Miguel Gomes, tendo sido o Tabu [2012] a nossa primeira ideia, honestamente. Mas depois de conversar com o realizador, percebemos que o Grand Tour poderia ser ainda mais adequado a nível formal e de narrativa: achámos realmente que sim depois de o vermos”, diz. 

Um propósito de diversão

É fácil imaginar até que ponto a verve romanesca de Grand Tour — a sua história de dois noivos britânicos em viagens desencontradas pela Ásia de 1918, entre a melancolia e a aventura — se presta ao folhear tranquilo das imagens, que primeiro conhecemos em movimento no ecrã. Para Blanc, trata-se de algo mais do que um complemento à experiência do filme. É outra proposta: “Ficaríamos contentes se o público se divertisse a ler a revista, independentemente do visionamento do filme. A cine-fotonovela dificilmente conseguiria captar a magia da obra de Miguel Gomes, as nuances sensoriais, a sua inteligência narrativa, ou a fotografia sensível de Rui Poças e dos colegas. Mas é um objeto que tenta, até ao limite, acompanhar essas componentes do filme, de uma forma despretensiosa, divertida, mas com o rigor da métrica das cine-fotonovelas antigas”, explica. 

Uma revista, portanto, com um cuidado editorial notório, aos olhos e ao toque, que celebra uma prática caída em desuso e carregada de um particular simbolismo cinéfilo. Ainda nas palavras do diretor: “[A cine-fotonovela] foi um género definitivamente popular, que possivelmente permitiu a muitas pessoas ligarem-se a histórias — sobretudo a estrelas do cinema — sem ir às salas. Era um género consumido por todo o tipo de público, que tanto adaptava filmes de má qualidade como obras-primas. Nesse sentido, democratizou a linguagem do cinema, permitindo a leitura de histórias escritas para o grande ecrã a partir de olhares quase sempre sensacionalistas, e atentos ao magnetismo das grandes atrizes e atores do tempo.” É talvez por isso que a capa e contracapa deste “novo” Grand Tour surgem preenchidas com os rostos de Crista Alfaiate e Gonçalo Waddington: as estrelas do nosso tempo. 

Depois do prémio de Melhor Realizador no último Festival de Cannes e da escolha da Academia Portuguesa para ser o nosso candidato aos Óscares, esta cine-fotonovela de Grand Tour só vem reforçar a mitologia de um filme que é já a grande viagem mediática do ano – agora disponível nas salas e num especial suporte físico, para levar para casa e virar as páginas com prazer. 

Grand Tour - A cine-fotonovela do filme de Miguel Gomes
David Pinho Barros e Guilherme Blanc (desenhada por Nuno Maio)
Edição Batalha Centro de Cinema
56 páginas