Parlamento
18 maio 2024 às 21h02
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Grupo de juristas quer criar lei para criminalizar o racismo e xenofobia

Juristas voluntários já começaram a analisar a forma de escrever a futura proposta. Serão necessárias 20 mil assinaturas no site da Assembleia para que inicitiva seja aceite.

Tornar efetivamente o racismo, a xenofobia e a injúria racial um crime em Portugal. É o que um grupo de juristas e ativistas pretende fazer, através da campanha “Vamos criminalizar o racismo”. Uma primeira reunião foi realizada ontem em Lisboa para recolher ideias e debater o assunto. Cerca de 70 coletivos e associações apoiam a iniciativa até o momento. 

Profissionais da área do Direito já começaram a analisar como escrever a lei e mais voluntários juristas são convidados a participar neste grupo técnico. A advogada brasileira Marina Caboclo, mestranda em Direitos Fundamentais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é uma das juristas. Na sessão informativa, a imigrante destacou aspetos da lei brasileira na matéria, que poderá ser um dos exemplos a serem seguidos para a proposta a ser lançada em Portugal.

Ao mesmo tempo, Marina frisou que outro problema a ser enfrentado é o combate à ideia de que o racismo já é crime em Portugal, com base no artigo 240 do Código Penal. “Mas a lei que existe torna praticamente impossível responsabilizar os crimes racistas, mesmo quando socialmente é completamente óbvio que são crimes que têm motivação racista”, explica.

O atual texto do artigo diz que “é exigível que o uso dos meios de divulgação destinados a fazer a apologia ou a negação de crimes contra a paz e a humanidade tenham um efeito ou resultado discriminatório concreto, traduzido na provocação de atos de violência, na prática dos crimes de injúria ou difamação, na ameaça e no incitamento à violência ou ódio contra ‘pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica’”.

Foram citados no encontro casos que podem ser considerados racismo, mas que a atual legislação não prevê. “Impedir o acesso de uma pessoa por preconceito ou por racismo não é crime, segregar turmas de alunos nas escolas não é crime, que é uma coisa que acontece muitíssimo em Portugal, segregar na habitação não é crime, se uma pessoa desliga o telefone depois que ouve você falar com sotaque brasileiro não é crime, se uma pessoa não te deixa entrar numa loja, isso não é crime”, refere Marina.

“Temos que discutir se é racismo ou não. Parece que não sabemos, parece que há aqui uma dissonância qualquer que não nos deixa perceber o que é racismo à partida, principalmente nos tribunais”, critica José Semedo, do coletivo Consciência Negra. 

20 mil assinaturas

Encontro decorreu na tarde deste sábado.
Foto: Amanda Lima/Diário de Notícias

Um dos próximos passos será lançar uma Iniciativa Legislativa Cidadã, um mecanismo disponível no site do Parlamento que requer 20 mil assinaturas digitais para que o projeto de lei dê entrada. O regimento da instituição prevê que se o número mínimo de assinaturas foi alcançado, há uma obrigatoriedade na apreciação.

Os voluntários avaliam que a tarefa não será fácil. “Uma dura batalha”, resume José Falcão, da SOS Racismo. Na atual configuração do Parlamento, uma proposta deste género teria altas chances de conseguir votos favoráveis à esquerda enquanto os 50 parlamentares do Chega votariam contra. 

Otávio Raposo, do coletivo Consciência Negra, reconhece que reunir o número de assinaturas “não será fácil”. Raposo foi um dos líderes de uma campanha para alteração da Lei da Nacionalidade em 2017. “Temos que mobilizar toda a sociedade, os coletivos, tem que ser de baixo para cima”, ressalta. O voluntário também considera essencial que o trabalho seja realizado pessoalmente, envolva os bairros e não seja um movimento “só de Lisboa”. Pedro Santarém, da frente Antirracista, celebra a proposta, mas defende que “só a lei não basta”. Para o ativista, é necessário “um amplo movimento de descolonização da sociedade portuguesa”.

António Tonga, também ativista, analisa que “uma das grandes câmaras de propagação da discriminação racial em Portugal e do racismo de Estado são os tribunais”, citando o caso de Cláudia Simões, espancada por agentes da PSP em janeiro de 2020. “Nós temos estado a ver o peso enorme sobre a comunidade negra, peso com que a justiça nos esmaga. Os tribunais finalizam o que a polícia já faz. Mas o que a polícia faz finaliza o que as escolas já fazem. O que as escolas fazem finaliza o que os nossos pais encontram no trabalho”, argumenta Tonga.

A criminalização efetiva do racismo é discutida pelos coletivos de forma mais intensa há meses, como já relevou o DN em outros artigos. O assunto já foi levado à manifestações recentes nas ruas de Lisboa.
Este encontro estava agendado há dias, antes mesmo do caso de Aguiar Branco e André Ventura no Parlamento. “Ficou ainda mais claro que é urgente avançar com esta campanha”, concordaram os participantes.

amanda.lima@globalmediagroup.pt