Antes de mais, quem é o William Irish que preenche um terço do título da mais recente novela de Ana Teresa Pereira? Uma busca esclarece que é um dos pseudónimos de Cornell Woolrich (1903-1968), um escritor norte-americano, considerado pelo seu biógrafo como o quarto melhor autor de policiais, após os gigantes Dashiell Hammett, Erle Stanley Gardner e Raymond Chandler. Nasceu em Nova Iorque, viveu no México e voltou à cidade, onde frequentou sem se formar a Universidade de Columbia, e em 1926, após uma prolongada doença, publicou o seu primeiro livro, em muito inspirado no universo de F. Scott Fitzgerald.
Seguiram-se mais 16 volumes assinados como Woolrich, dois com o pseudónimo George Hopley e sete com o de William Irish. Foi este último “disfarce” que interessou à escritora Ana Teresa Pereira, por representar o lado mais pulp do escritor, e também a Alfred Hitchcock, que alegadamente o terá utilizado como primeira fonte para o filme Janela Indiscreta.
Como Numa História de William Irish tem muito a ver com o género da ficção pulp, assim chamado devido ao papel barato em que as revistas eram impressas, o que não impediu um grande sucesso editorial na primeira metade do século passado nos Estados Unidos, onde até autores de renome publicavam as suas narrativas mesmo não sendo essas publicações prestigiadas. Muitas das temáticas eram sombrias ou sensacionalistas, que bem poderiam retratar o fim pouco glamouroso de Cornell Woolrich, que deixou por terminar um romance que bem poderia ser um balanço da sua vida, intitulado O Perdedor.
Ana Teresa Pereira não foge ao prazer que tem em escrever sob as regras do género pulp: “Já disse algumas vezes que queria ser uma escritora pulp. E de certa forma consegui nos últimos anos.” Explica: “Os meus contos escritos para antologias ou revistas anglo-americanas são importantes para mim. O que se pode fazer com cinco mil palavras e uma liberdade absoluta, faz com que a forma como algo que tínhamos planeado minuciosamente nos comece a surpreender. Lembro-me do que senti no fim do meu conto What I don’t understand is the music, que é uma história pulp em que uma rapariga casa com um homem porque pensa que ele tem dinheiro e ela poderá deixar a sua vida de «ten cents a dance». Depois de saber que ele foi assassinado por sua causa, percebe que o amava. Deveria ter um final trágico, mas inesperadamente – para mim também - ela sente-se bem e invadida por uma onda de felicidade. Porque está apaixonada pela primeira vez na vida. É por momentos desses que vale a pena escrever, não por um parágrafo que lembra Faulkner ou Virginia Woolf num dia mau.”
Essa sensação de prazer percorre toda esta novela, daí que quem a começa a ler só por uma razão extraordinária irá interromper a leitura. Logo à segunda página há um nome que remete o leitor para um filme mítico; chama-se Carlotta Valdez. Em segundos, outros nomes antes referidos, como Madeleine, fazem pensar em Vertigo, o filme que seduziu milhões de espectadores desde que foi estreado. E, conforme se avança na leitura, a suspeita torna-se real. Ana Teresa Pereira confirma: “A ideia de escrever sobre Vertigo já é antiga e, talvez, desnecessária. Mas no ano passado, ao reler o meu primeiro livro, As Personagens, tive a sensação clara de que era um livro sobre este filme.” Vai mais longe: “De certa forma, estive a escrever sobre “Vertigo”, sobre The Valley of Adventure de Enid Blyton e The Black Angel the Cornell Woolrich a vida toda. No entanto, agora tratava-se mesmo do meu Vertigo, de usar as ligações que encontrara entre o filme e outros filmes, e livros, e quadros. A certa altura tudo à minha volta estava relacionado com o filme. E havia todas as pequenas coisas, mesmo que algumas não tão pequenas, que aparentemente ninguém vira antes: as sobreposições com o filme Pushover de Richard Quine. O vestido preto que Scottie compra a Judy quando a quer transformar em Madeleine, e que afinal não é o vestido de Madeleine mas o de Lana, também interpretada por Kim Novak, em Pushover.”
Durante muito tempo, a escritora receou ser ultrapassada nas suas descobertas: “Quando começava a reler ou a ler um novo livro sobre Vertigo, tinha sempre medo de que alguém tivesse descoberto certos pormenores antes de mim. Os que considerava muito meus e que continuam a sê-lo. E, depois de muitos meses e muitos filmes, em que tudo estava relacionado com Vertigo, ainda não sabia como escrever o livro. Teria de ser uma ficção, mas incluir, ou sugerir, algumas das camadas submersas do filme que vemos no ecrã. A solução surgiu inesperadamente: quatro pontos de vista. A rapariga e o homem mais velho; o realizador e a atriz. Mas, como normalmente acontece nos meus livros, a separação entre as personagens não é clara. Quando o terminei, descrevi-o como um livro sobre flores, vestidos, colares, brincos, alfinetes com a forma de pássaros e mais flores.”
Quem conhece a obra de Ana Teresa Pereira sabe que nunca a presença do cinema, substituindo os palcos dos teatros, foi tão importante como neste livro. A autora aceita o facto mas não deixa de alertar que o teatro também está presente: “É durante uma representação de Mary Rose de J.M. Barrie que o homem e a rapariga se conhecem.” Não é por acaso que o faz: “Hitchcock viveu obcecado por Mary Rose desde que viu a primeira representação da peça, quando era muito jovem. Há uma história, provavelmente será uma lenda, que diz que a certa altura os estúdios o deixariam filmar «qualquer coisa exceto Mary Rose». A referência à peça L’Ora della Fantasia de Anna Bonacci também não surge por acaso, com Jeanne Moreau a representar os dois papéis quando a atriz com que contracenava adoeceu. Isso aconteceu de facto.”
Também os cenários a que o leitor está habituado, como o do Reino Unido invernoso, quase não existem. Pergunta-se se é o prenúncio de uma mudança? Responde: “Esta era uma história em São Francisco, embora esta cidade para mim San seja sempre a de Vertigo e de mais alguns filmes.” Insiste-se na hipótese de uma mudança: “Vi tantos filmes nos últimos tempos, e alguns tão inesperados, que gostaria de escrever sobre eles e dar-lhe como título Os Filmes Obscuros. Também gostava de voltar a escrever sobre Cornell Woolrich, afinal o meu conto Looking for You Through the Gray Rain, incluído na Antologia Black is the Night – Stories Inspired by Cornell Woolrich, editada por Maxim Jakubowski, é muito importante para mim. Porque o conto é bom e porque o acabei a escrever com a mão esquerda, com um braço partido e deprimida, o que me fez sentir muito próxima de Cornell. Estou muito grata a Maxim por ter incluído contos meus em três antologias e me ter convidado para a próxima, que é justamente sobre Hitchcock. Sempre quis ver os meus livros traduzidos para inglês, mas ao que parece ser traduzida - e vender livros - requer qualidades que eu não tenho. Mas melhor ainda do que ser traduzida é escrever contos em inglês.”
Quanto à preferência sobre os dois protagonistas, o homem e a rapariga, qual terá sido o que mais agradou escrever? Ana Teresa Pereira divide em dois estágios: “Na primeira parte, sentia-me mais próxima da rapariga, na segunda parte, creio que me senti mais próxima do homem.” Porquê essa alteração é a questão. A autora recorda o processo de criação e aponta a frase que dá início ao sexto capítulo como parte da resposta: “Foi no Verão em que a minha irmã estava a ler The Ballad of the Sad Café”. Teria sido esta a primeira linha se tivesse escrito o livro unicamente do ponto de vista da rapariga. No entanto, a ideia de relembrar filmes mais antigos de Kim Novak para criar o passado da personagem surgiu muito cedo, como foi o caso de Picnic, de Joshua Logan, baseado na peça de William Inge. Quando revi o filme, reparei que o volume que a irmã de Madge está a ler é demasiado grande para ser A Balada. Na verdade, trata-se de The Heart is a Lonely Hunter [de Carson McCullers]. Depois, aquando da escrita da segunda parte, comecei a sentir-me mais próxima do homem. Porque ele é Hitchcock, que conheço desde criança e vi muitos dos seus filmes com os meus pais. São seus alguns dos filmes da minha vida e também outros que detesto. O realizador é uma personagem muito complexa, com uma crueldade natural e ao mesmo tempo uma vulnerabilidade que comove. Mas a sua paixão pelo cinema, a abstração de alguns dos seus filmes – Vertigo, é na realidade, uma pintura abstrata -, os seus sonhos, o filmar Mary Rose com uma atriz que fosse finalmente o amor da sua vida... Havia ali tanta coisa, há tanta coisa, porque Hitchcock, tal como o seu filme, é um poço sem fundo.”
A autora não se sentiu condicionada pelos debates ao longo dos tempos em redor do filme em torno do filme, tendo voltado a rever Vertigo durante a escrita de Como Numa História de William Irish. Já lera muitos livros e artigos sobre Hitchcock, alguns sobre Vertigo, mas a sua intenção era de que houvesse no seu livro elementos novos: “Embora não seja um ensaio é o resultado de muita pesquisa. Voltei a ver o filme, embora quase o soubesse de cor, e descobri que na receção do Hotel McKittrick havia um vaso de violetas e que no final Judy usa uns brincos que não fazem qualquer sentido.”
Se a novela faz uma interpretação psicológica do argumento de Vertigo, pode perguntar-se se as atitudes daquele longínquo trio de personagens poderiam existir na sociedade atual? Ana Teresa Pereira reflete e sintetiza: “Acredito na existência de um inconsciente no texto, que tanto pode ser num livro, num filme, numa peça, mas o que significam as flores, as cores, as jóias, é intemporal. É assim que nós, pelo menos alguns de nós, somos feitos. Os que não se apaixonam por seres reais mas por imagens, como acontece nos livros de John Dickson Carr ou de Cornell Woolrich. Um caso extremo, e seria interessante escrever sobre ele, é M. Butterfly, de David Cronenberg. Os que não aceitam a morte. Ou seja, não tem nada a ver com a época em que se passa.”