A cabeça de lista do PS às eleições europeias, Marta Temido, resumiu em sucintas oito palavras a sua posição quanto ao acontecimento nacional que marcou o penúltimo dia de campanha. “Eu não tive nada a ver com isto”, disse a antiga ministra da Saúde, na Figueira da Foz, depois de serem noticiadas buscas no Ministério da Saúde, no Instituto da Segurança Social, no Hospital de Santa Maria e na residência do seu ex-diretor clínico, Luís Pinheiro, relacionadas com o alegado favorecimento de duas gémeas luso-brasileiras que, depois de uma rápida obtenção da dupla nacionalidade, receberam o medicamento Zolgensma, com um custo de quatro milhões de euros para o Serviço Nacional de Saúde, procurando travar a atrofia muscular espinal, doença neurodegenerativa de que essas crianças padecem.
Os novos desenvolvimentos do caso, que terá levado ao corte de relações entre o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o seu filho mais velho, Nuno, residente no Brasil e que terá tirado partido dos laços familiares para levar o Governo a favorecer o acesso das gémeas ao medicamento mais caro do mundo, incluíram a constituição do ex-secretário de Estado-adjunto da Saúde, António Lacerda Sales, como arguido por abuso de poder. Terá sido o antigo governante socialista a marcar a primeira consulta no Hospital de Santa Maria, e o seu antigo gabinete no Ministério da Saúde foi um dos locais alvo das buscas esta quinta-feira realizadas pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público. No início da semana já tinha havido buscas à sua residência, em Leiria.
Confrontada com o caso, Marta Temido procurou marcar distâncias em relação a Lacerda Sales, seu secretário de Estado durante a pandemia de covid-19. “As pessoas sabem que a intervenção de um ministro em relação à autorização de medicamentos não existe”, disse a cabeça de lista, num encontro com mulheres socialistas em Coimbra, fazendo um reparo quanto ao timing das buscas. “Quem está na vida política já se surpreende com muito pouca coisa.”
Logo no início do dia, o cabeça de lista da Aliança Democrática (AD), Sebastião Bugalho, distanciou-se da polémica, recusando “considerações sobre investigações em curso”. Até porque, em sua opinião, “seria uma irresponsabilidade democrática e cívica” estar a fazê-lo sobre alguém que disputa eleições consigo. Numa quinta-feira em que a campanha da coligação de centro-direita foi animada pela sondagem da Intercampus para o Correio da Manhã e CMTV, que indica uma ligeira vantagem (24,5%) sobre o PS (24,1%) - confirmando a aproximação patente na sondagem da Aximage, para o DN, JN e TSF, divulgada no domingo, em que o PS continua à frente, com 30,6%, mas a AD sobe para 26,6%, ao contrário dos números da Universidade Católica para a RTP, em que o PS sobe para 33% e a AD desce para 31% -, a prioridade assumida era a participação de Ursula von der Leyen, na campanha eleitoral, tanto na arruada que teve lugar no Porto, no final da tarde, como no comício em que a presidente da Comissão Europeia, e recandidata ao cargo pelo Partido Popular Europeu, esteve ao lado de Bugalho e do primeiro-ministro português, Luís Montenegro.
Essa participação na campanha eleitoral acabou por ser perturbada por cerca de duas dezenas de manifestantes pró-palestinianos, que interromperam o seu discurso, acusando-a de “financiar o genocídio” que dizem estar a ser cometido por Israel na Faixa de Gaza, acabando por ser afastados por agentes da PSP. “Se vocês estivessem em Moscovo, estavam agora na prisão”, disse Ursula von der Leyen, que defenera à Ucrânia e criticara o Chega.
“Contaminação” e “poluição”
A pressão sobre Marta Temido ficou a cargo de outras forças partidárias à direita do PS. Sobretudo do Chega, com André Ventura a aproveitar a arruada de final de tarde em Braga para anunciar que o seu partido irá requerer a presença do anterior primeiro-ministro, António Costa, na comissão parlamentar de inquérito ao alegado favorecimento das gémeas luso-brasileiras. “Não podemos ignorar um facto evidente: a correspondência também chegou ao gabinete do primeiro-ministro. Foi o senhor primeiro-ministro, ou o seu gabinete, que decidiram passar essa correspondência para o Ministério da Saúde. Era importante que esclarecesse o que fez à comunicação que recebeu do Palácio de Belém, para onde é que a transmitiu e se acompanhou o caso ou não”, disse o líder do Chega, que horas antes colocara em dúvida as garantias deixadas por quem é agora cabeça de lista do PS. “É pouco crível que alguém contorne a lei, marque uma consulta desta importância e desta dimensão, sem que a ministra pergunte o que é isto”, disse Ventura, salientando que considera “estranho que a ex-ministra não saiba de nada”.
Por seu lado, após o cabeça de lista da Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo, referir que acredita ser seu trabalho “não deixar poluir a campanha europeia por temas nacionais”, o sucessor na liderança do partido, Rui Rocha, defendeu que “obviamente que há explicações a serem dadas” por quem foi responsável político por um Ministério da Saúde onde existem suspeitas de ter havido favorecimentos a determinadas pessoas.
Em mais um dia em que temas de atualidade nacional dominaram a campanha para a votação que no domingo definirá os 21 representantes dos portugueses no Parlamento Europeu, a cabeça de lista do Bloco de Esquerda disse que “as campanhas eleitorais não devem ser um bate-boca entre partidos e a Justiça e o Ministério Público”. Mas Catarina Martins disse também, numa visita à feira de Barcelos, que a Justiça “tem e deve ter garantias de independência face ao poder político” e que o caso das gémeas deve ser esclarecido.
Tal como outros cabeças de lista, o comunista João Oliveira, falando na Maia, afastou qualquer “aproveitamente político” do caso das gémeas luso-brasileiras. Mas também não se esqueceu de repetir que a posição do PCP acerca da Ucrânia está a ser caricaturada e chegou a defender que as políticas do presidente russo Vladimir Putin são mais próximas da AD e da IL. Isto num dia em que o site noticioso europeu Politico apontou os atuais eurodeputados comunistas Sandra Pereira e João Pimenta Lopes entre os maiores “amigos de Putin” no Parlamento Europeu, tendo em conta os votos contrários a iniciativas de condenação da invasão russa.
Em Lisboa, reagindo ao caso das gémeas na Assembleia da República, a porta-voz do PAN, Inês de Sousa Real acusou o Ministério Público de tentar mediatizar os casos judiciais e “contaminar atos eleitorais sucessivamente”, referindo-se à constituição de arguido de Lacerda Sales e as eleições europeias.
E o cabeça de lista do Livre, Francisco Paupério, que dedicou o dia à saúde, defendeu um papel forte da União Europeia, como durante a pandemia, e maior investimento na investigação científica.