Justiça
25 janeiro 2024 às 23h47
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Vitória para o Ministério Público, uma “desilusão” para José Sócrates

Tribunal da Relação decidiu que Sócrates e outros 21 arguidos devem ir a julgamento. O ex-primeiro-ministro está pronunciado por três crimes de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal. Justiça quer julgamento a começar em março, mas Sócrates diz que vai recorrer deste acórdão.

Uma vitória para o Ministério Público (MP). Uma “desilusão” para José Sócrates. É assim que se pode resumir a decisão do Tribunal da Relação sobre a Operação Marquês, que entendeu que existem indícios suficientes para o ex-primeiro-ministro e outros 21 arguidos irem a julgamento, depois de o juiz de instrução Ivo Rosa ter decidido em abril de 2021 arquivar 171 crimes que constavam da acusação deste processo, mantendo apenas 17 crimes e cinco arguidos.

A Relação entende que Sócrates deve ser julgado por três crimes de corrupção, 13 crimes de branqueamento de capitais e seis crimes de fraude fiscal, num total de 22 crimes.

Em causa estão mais de 34 milhões de euros, reunidos entre 2006 e 2015, a maior parte dos quais guardados em contas offshore na Suíça, controladas por Carlos Santos Silva. Segundo o Ministério Público, o dinheiro terá sido fruto de subornos vindos de três proveniências diferentes: o Grupo Lena, os acionistas do empreendimento de Vale de Lobo e o Grupo Espírito Santo.

“Não me conformo”, reage José Sócrates ao DN, anunciando que vai recorrer da decisão das três desembargadoras que assinam o acórdão. “Esta decisão é uma profunda desilusão para mim e vou contestá-la perante os tribunais a que possa recorrer”, declara Sócrates, que diz ainda estar a estudar com a sua defesa os moldes desse recurso.

O recurso de José Sócrates deve assentar em “duas dimensões”. Por um lado, o ex-primeiro-ministro vai contestar o facto de a Relação considerar “indiciadas alegações que foi provado na instrução que eram falsas”, relativamente aos factos relacionados com a OPA da Sonae, com o processo do Vale do Lobo e com o TGV. José Sócrates entende que na fase de instrução foram apresentados “contra indícios” que fizeram com que essas alegações fossem desmentidas. As três juízas da Relação dão agora essas alegações como indiciadas. “Vamos recorrer disso. As alegações são falsas, são insultuosas”, afirma José Sócrates.

Outro ponto que Sócrates pretende contestar é o facto a Relação aceitar a correção feita pelo MP relativamente à acusação de corrupção ser relativa a atos ilícitos e não lícitos (como constava inicialmente da acusação). “O Ministério Público vem agora dizer que se enganaram e as juízas são cobertura a isto, são provimento a um erro”, ataca José Sócrates, para quem isso “constitui uma alteração de factos”.

Além disso, Sócrates entende que a decisão do Tribunal da Relação vai contra uma sentença do Tribunal Constitucional (TC) sobre a contagem dos prazos de prescrição dos crimes de corrupção, segundo a qual essa contagem se iniciava no momento do pacto corruptivo e não na data do último recebimento indevido de vantagem. “Há várias questões jurídicas que tenho de estudar melhor, mas não sou pronunciado nos mesmos termos da acusação e vou recorrer para um tribunal superior”, vinca Sócrates.

Os crimes de corrupção

Os três crimes de corrupção imputados a José Sócrates com o financiamento, pela Caixa Geral de Depósitos, do resort de Vale do Lobo, promovido por um grupo de empresários liderado por Helder Bataglia, as relações do grupo Espírito Santo com a Portugal Telecom e ainda os projetos estatais a que se candidatou o Grupo Lena, como o concurso para o TGV. O que as juízas que assinam o acórdão entendem é que Sócrates usou o poder que detinha para beneficiar estes empresários do setor privado.

Além de José Sócrates, há 21 outros arguidos que o Tribunal da Relação entende que terão de ir a julgamento na Operação Marquês, incluindo Ricardo Salgado, que já foi condenado a oito anos de prisão efetiva em maio de 2023 (num dos quatro processos nos quais o juiz Ivo Rosa entendeu dividir o mega processo da Operação Marquês, que esta decisão da Relação agora reconstitui). 

Também os ex-administradores da PT, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, Helder Bataglia, o empresário luso-angolano que fundou a Escom, ou Joaquim Barroca, do Grupo Lena, que tinham visto cair as acusações que pendiam contra si, devem afinal sentar-se no banco dos réus. Também a ex-mulher de Sócrates, Sofia Fava, o empresário Carlos Santos Silva, o ex-ministro socialista Armando Vara, o antigo motorista de José Sócrates João Perna e várias empresas do Grupo Lena constam o lote de 22 arguidos que devem, segundo esta decisão da Relação, ir a julgamento.

De fora do julgamento apenas deverão ficar cinco empresas acusadas e a filha do ex-ministro socialista Armando Vara, Bárbara Vara, a quem o Ministério Público imputava dois crimes de branqueamento de capitais.

Candura e ingenuidade de Ivo Rosa

O acórdão da Relação não poupa críticas ao juiz de instrução Ivo Rosa, que é agora também desembargador daquele tribunal. As juízas acusam Ivo Rosa de “uma certa ‘candura/ingenuidade’” na forma como descartou as suspeitas de que Sócrates recebeu perto de seis milhões do Grupo Lena como pagamento pela sua intervenção no processo da concessão do primeiro troço da alta velocidade, entre o Poceirão e Caia. “Justifica a falta de indícios, relativamente à existência dos ditos pagamentos, nas declarações do arguido [Sócrates] e na interpretação que o mesmo fez dos documentos relativos às viagens à Venezuela (...). Confessamos que estas ilações do senhor juiz denotam uma certa ‘candura/ingenuidade’, pois é desde logo evidente que, tratando-se de atos ilícitos, os mesmos não vêm escritos em documentos”, atacam as desembargadoras.

De resto, as magistradas entendem que o juiz de instrução devia ter apreciado a prova na sua globalidade e não de forma parcelar, “porque os meandros e os caminhos traçados pelos arguidos, na vertente da acusação, não são lineares, mas tortuosos, cheios de manobras de diversão”.

De resto, as magistradas entendem que há indícios de que José Sócrates usava o dinheiro que alegadamente pertencia ao seu amigo Carlos Santos Silva como se fosse seu, algo que indicia que esses fundos poderiam efetivamente ser seus e ter sido obtidos de forma ilícita. José Sócrates vai ser julgado por 22 crimes, três deles de corrupção.

O antigo primeiro-ministro esteve em prisão preventiva durante nove meses, entre novembro de 2014 e setembro de 2015, no Estabelecimento Prisional de Évora, seguindo-se um curto período de prisão domiciliária. Segundo o Expresso, a intenção da Justiça será iniciar o julgamento da Operação Marquês em março. Resta saber se os recursos anunciados por José Sócrates desta decisão da Relação têm ou não efeitos suspensivos (um ponto sobre o qual os juristas divergem) e se poderão atrasar muito mais o arranque do julgamento. 

Os arguidos

José Sócrates
3 crimes de corrupção
13 crimes de branqueamento de capitais
6 crimes de fraude fiscal
TOTAL: 22 crimes

Carlos Santos Silva
2 crimes de corrupção
14 crimes de branqueamento
7 crimes de fraude fiscal
TOTAL: 23 crimes

Joaquim Barroca
2 crimes de corrupção
7 crimes de branqueamento
6 crimes de fraude fiscal
TOTAL: 15 crimes

Ricardo Salgado
3 crimes de corrupção
8 crimes de branqueamento
TOTAL: 11 crimes

Zeinal Bava
1 crime de corrupção
1 crime de branqueamento
1 crime de fraude fiscal
TOTAL: 3 crimes

Hélder Bataglia
5 crimes de branqueamento
TOTAL: 5 crimes

João Perna
1 crime de branqueamento
TOTAL: 1 crime

Sofia Fava
1 crime de branqueamento
TOTAL: 1 crime

Rui Mão de Ferro
1 crime de branqueamento de capitais
TOTAL: 1 crime