Alerta
08 maio 2024 às 07h20
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Portugal perdeu 10 mil bombeiros voluntários desde 2004

Numa altura em que se prepara o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais é nas zonas de maior perigo onde mais faltam meios humanos. Presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, António Nunes, defende que deveriam existir mais e melhores incentivos para quem optasse por este voluntariado.

Lucas Moreira veste a farda dos Bombeiros Voluntários da Batalha desde 2018. A corporação é um caso raro no Distrito de Leiria: aumentou o número de voluntários nos últimos anos, em contraciclo com a realidade da maioria dos quartéis da região e do país. São agora 106 os que integram o corpo ativo, muitos deles na faixa etária de Lucas, 24 anos, que acumula o voluntariado com o curso de Terapeuta Ocupacional na Escola Superior de Saúde de Leiria. 

No final de 2017, o avô (que fora bombeiro na mesma corporação onde agora o neto o enche de orgulho) sentiu-se mal. “Quando vi a forma como os bombeiros socorreram o meu avô, deu-se o clique: era assim que eu queria ajudar as pessoas também”, conta ao DN. Foi ao quartel e pediu uma ficha de inscrição. “É uma questão de cidadania, também. De não me sentir impotente se acontecer alguma coisa. E de estar mais preparado, uma vez que nós recebemos muita formação”, afirma.

Lucas gosta de sentir “o pico de adrenalina” quando sai do quartel para prestar socorro, mesmo sabendo que “qualquer serviço nunca é por coisas boas”. Ainda assim, pode contribuir para que fiquem melhores. E é também por isso que considera a ação dos bombeiros “uma grande escola em termos pessoais e emocionais”. Nesse jogo de cintura que toca o perigo, já chocou de frente com o lado negro da realidade, quando foi o primeiro a chegar a um grave acidente de viação, e conhecia bem a vítima.
Nos últimos tempos voltou a ser posto à prova, num incêndio industrial de grandes dimensões. Não consegue identificar o serviço que mais gosta de fazer, “porque são todos diferentes”. Mas lamenta que “os bombeiros por vezes só sejam lembrados no verão, quando o combate ao fogo florestal é 10% do que fazemos”, sublinha.

No Quartel da Batalha, tem o que considera “uma verdadeira família”, na terra onde vive desde que nasceu.

O caso de Lucas Moreira ilustra bem uma das causas que ainda levam os jovens em Portugal a abraçar a causa humanitária. “Normalmente vão por duas razões: ou gostam do trabalho dos bombeiros, da adrenalina, da tarefa de salvar as pessoas, ou então da capacidade de aprender coisas para além da sua profissão. Isso também preenche muito. Mas muitos ainda vêm porque alguém da sua família também já foi bombeiro”, explica António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses.
Em 2004, Portugal contabilizava mais de 41 500 bombeiros voluntários, e o número foi subindo nos anos seguintes. Mas desde 2008 que começaram a sobrar fardas nos 465 corpos de bombeiros do país, segundo dados da Pordata. Em 2014 já não chegavam aos 30 mil e, desde então, ao longo da última década, a queda começou a acentuar-se.

Os últimos registos apontam para uma ligeira subida (em 2022 estavam registados cerca de 31 mil voluntários), mas o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses acredita que se trata “de uma questão meramente estatística”. Nos últimos dias começaram a soar alarmes, numa altura em que se aproxima o verão, que se prevê quente, e depois de meses de inverno com temperaturas muito acima da média.

Na hora em que os serviços de Proteção Civil fazem contas aos braços disponíveis para o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), o presidente da Câmara de Gondomar veio dar o alerta, temendo que haja menos equipas no terreno durante a época mais perigosa (ver peça ao lado).
Essa é, na verdade, a preocupação diária de António Nunes, desde que há dois anos tomou posse como presidente da Liga. E, também por isso, já separou um dossier com mais de 20 páginas para entregar à ministra da Administração Interna, na primeira ocasião.

Não são apenas os problemas inerentes aos bombeiros voluntários que o preocupam. Há outro, com os dirigentes associativos. “Hoje começa a haver falta de dirigentes nas associações e, por isso, temos que promover o estatuto do dirigente associativo, senão as pessoas não vão”, afirma ao DN. A montante, tem o problema mais vasto, do voluntariado. “É uma dificuldade que tem a ver não só com a demografia, mas sim também com uma questão económica”, sublinha. 

E é fácil sustentar a afirmação de António Nunes, quando olhamos para o mapa, nomeadamente para o Pinhal Interior, que há sete anos foi palco da maior tragédia provocada pelo fogo. Pedrógão Grande, por exemplo, passou de 277 bombeiros no final da década de 90 para 148 na atualidade. Castanheira de Pêra passou de 166 para 51 bombeiros, e Figueiró dos Vinhos de 99 para 75. Foi essa dificuldade grande que este ano levou o comando a promover uma ação dirigida às crianças e jovens do concelho, na pausa letiva da Páscoa. A iniciativa juntou-se a outra, uma escola de infantes e cadetes, para miúdos entre os 6 e os 16 anos. 

Outras formas de voluntariado

Paradoxalmente, faltam bombeiros onde mais são precisos. “É um problema de equilíbrio no nosso desenvolvimento e coesão territorial”, afirma o presidente da Liga. “Só conseguimos ter voluntários se conseguirmos ter gente. E por outro lado, ter um Estatuto do Bombeiro Voluntário que seja apetecível e atrativo”.

Batemos então na tecla que soa mais alto: “Porque o jovem de hoje não é o mesmo de há 30 anos. As opções de fazer voluntariado hoje são imensas. As únicas em que se mantém a mesma forma é bombeiros, escuteiros e eventualmente Cruz Vermelha. Hoje temos ambiente, ecologia, migrações , organizações não-governamentais de luta contra a fome, contra a exclusão. Há hoje uma atratividade de voluntariado para os jovens com menos risco e menos responsabilidade do que aderirem a um corpo de bombeiros. Porque, logo à partida, têm de fazer 300 horas de formação, piquetes todas as semanas, ficar fora de casa. Há que perceber que a sociedade também mudou”, justifica António Nunes. Mas o território também.

O presidente da Liga lembra que Portugal não é o país da Europa que tem mais voluntários. “A Alemanha ou a Áustria têm mais do que nós. Mas lá foram criadas condições para esse voluntariado. Nós temos é de criar condições para fixar as pessoas”. “Qual é a vantagem que um funcionário de uma câmara municipal, de uma Misericórdia ou de um Lar vai ter sendo bombeiro voluntário? Pode sair quantas horas por mês? E numa empresa? Que vantagem tem um patrão por empregar um bombeiro voluntário? Uma baixa do IRC, da TSU? É que nos outros países têm”, aponta.

E olha de novo para fora, agora para alguns casos da América do Sul: “Há países em que os voluntários são como os Rotários ou os Lions, em que pagam uma quota para serem bombeiros e são reconhecidos por isso. A sociedade vê neles um exemplo. Aqui, falamos dos Soldados da Paz, da Vida por Vida, mas não os reconhecemos.”

“Se eu moro a 20km do quartel, o que é que me interessa ter transporte gratuito, se não tenho nenhum à porta. A alternativa é pagar-lhe a gasolina porque de certeza que o bombeiro vem de carro. Assim como de pouco importa ter entrada gratuita no museu, porque vai-se lá uma vez. Ou o que me interessa ter entrada gratuita nas piscinas municipais, se durante o verão estou a combater incêndios?”.

As perguntas de António Nunes têm caído em saco roto. “ Há aqui um conjunto de circunstâncias que podem ser muito bonitas, mas que não são realistas.” E por isso o presidente da Liga contrapõe com outras benesses que seriam mais úteis, como “uma bonificação para entrar na universidade; a possibilidade de fazer exames a título extraordinário quando um bombeiro falta por via de estar ao serviço”.

“No litoral não há uma crise muito forte de voluntariado. O problema coloca-se nos municípios do interior, que podem não ser tão interior quanto isso.” Volta ao Pinhal Interior para exemplificar a falta de voluntários: “Normalmente onde nós recrutamos é entre os 18 e os 25 anos. Depois é difícil. E é nessa fase que os jovens vão para as cidades, e deixam as suas terras.”

A propósito, aponta um exemplo concreto - Mourão, no Alentejo, onde metade da população terá mais de 65 anos. “Como é que recrutamos aí bombeiros voluntários?”

A poucas semanas da entrada em funcionamento do DECIR, António Nunes volta a insistir numa das principais reivindicações, que é a criação de um comando autónomo dos bombeiros, independente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). “Precisamos é que a Proteção Civil entenda, de uma vez por todas, que bombeiros comandam bombeiros e que a Proteção Civil coordena as ações de emergência e quando a Proteção Civil precisar dos bombeiros, nós estamos lá exatamente como a Guarda Nacional Republicana, PSP, Forças Armadas ou saúde. O que nós não aceitamos é estarmos subjugados a uma situação ou a ordens, muitas das vezes escritas nas entrelinhas”, afirmou.

"Vais ser difícil recrutar gente para o socorro"

O presidente da Câmara de Gondomar veio dar o alerta por estes dias. Em declarações à TSF, o autarca Marco Martins mostrou-se preocupado com o socorro, afirmando que “vai ser difícil recrutar gente para essa tarefa, aliado à questão que não é de agora, já vem de trás, que é o baixo pagamento”. “Ou seja, a retribuição, no ano passado, era de 64 euros por cada 24 horas, dá menos três euros por hora para os voluntários andarem a fazer essa missão suplementar”, frisou.

O presidente da Câmara de Gondomar (onde existem pouco mais de 320 bombeiros, quando já chegaram a ser mais de 500) explicava que “hoje o bombeiro voluntário em Portugal, além de poder pedir reembolso de propinas e não pagar taxa moderadora no acesso aos cuidados de saúde, pouco mais regalias tem, além daquelas que muitas autarquias, muitas câmaras municipais, depois dão em complemento àquilo que o Governo dá”. Por isso, fala na necessidade, a nível nacional, “uniformizar e dar equidade a todo este tipo de apoios, para conseguirmos ter mais voluntários nas fileiras dos corpos de bombeiros, porque é um assunto que mexe com aquilo que é o socorro de cada um de nós”.

Além dos 31 000 bombeiros voluntários contabilizados pela Pordata, haverá mais 15 000 na reserva. A estes juntam-se cerca de 3000 sapadores-bombeiros, afetos às câmaras municipais: 950 em Lisboa, 600 no Porto, 150 em Vila Nova de Gaia e Braga, e vários casos abaixo dos 100.


paula.sofia.luz@ext.dn.pt