Na infância, e segundo o próprio, José Alberto, “Betinho” de petit nom, foi violado por um namorado de uma prima, enquanto contemplava o firmamento, vendo estrelas, na varanda da casa de família, na passagem do ano de 1971 para o ano de 1972, razão pela qual ainda hoje detesta o odor a Old Spice. Em resultado disso, contraiu também uma infecção que o obrigou a ser circuncidado, tudo às escondidas da mãe, que o protegia e mimava muito, até porque a irmã Gabriela era 18 anos mais velha do que ele e já vivia em Portugal e o mano Sérgio Vieira, 25 anos mais velho, era um alto quadro da Frelimo e estava na clandestinidade.
José diz que foi concebido numa escaldante noite de 19 de Março, Dia do Pai, quando o seu progenitor regressou do mato, pelos vistos em brasa, vindo da caça grossa. Apesar disso, e apesar de o pai ter estudado no Royal College, em Bombaim (tendo depois feito “caça ao polvo gigante no Índico”), e apesar de a família Vieira ter, “além de várias casas”, para cima de “sete mil cabeças de vaca” (ou, se quisermos, sete mil vacas com cabeça), apesar de tudo isto, dizíamos, José/Betinho desenvolveu “um complexo de Édipo” com o pai, talvez porque, opinamos nós, era um confessado “menino da mamã”, que só gostava de “brincar às casinhas” e de vestir as suas muitas bonecas. Na escola, está visto, levava muito no lombo, mormente por banda dos coleguitas, mas seu pai, saliente-se, nunca o censurou por preferir trajes femininos. Um dia, inclusive, quando o viu, era Betinho ainda criança, a pentear-se frente à cómoda da mãe, ter-lhe-á dito que ele tinha os olhos e a boca da Sophia Loren, restando saber se já os terá devolvido àquela diva da 7.ª Arte, o que, tratando-se de José Castelo Branco, temos por assaz duvidoso. Acrescente-se que, na década de 80, quando José já fazia carreira como modelo feminino, o pai Francisco segredou-lhe, não sem certa malícia, “você está com umas pernas, vou-lhe contar… nem a Marlene Dietrich”. Era “a faceta de cinéfilo a vir ao de cima”, diz o filho, e não, não vamos entrar para aqui com dichotes brejeirotes e ordinarotes sobre o que de mais terá vindo ao de cima em Francisco no decurso daquele episódio doméstico, logo íntimo. Outrossim não entraremos na melindrosa questão de saber se Francisco Silva Vieira, apesar do retrato glamoroso que José traça da sua infância de privilégio, afinal era ou não era um simples e pobre motorista de praça em Tete, como afiançam muitos dos que lá viveram na época, logo rebatidos por José com um argumento imbatível: “Ele nunca esteve como chauffeur da alta sociedade porque a alta sociedade éramos nós.” Ainda assim, o “Conde” reconhece que o pai “transportava os homens para as minas e assumia-se como chauffeur”, supomos que para disfarçar a parentela real e todo aquele sangue azul, tal qual os aristocratas russos nas Paris dos anos 20, como na célebre novela de Max du Veuzit. Nos intervalos, Francisco, “um Don Juan”, manteve tórrida relação com uma “branca de pé descalço”, não por acaso chamada Maria dos Pés Queimados, de quem teve um filho, Jorge, hoje residente em Braga e meio-irmão de José, por quem esteve tem “a maior das simpatias”, não sabemos se recíproca.
Entre as reminiscências da infância de “Betinho” avultam ainda, a saber: o uso de bugigangas e de umas calças La Finesse quando tinha nove anitos; a aparição fugaz de uma cabrinha de nome Lady, que adivinhamos alma gémea ou alter ego do seu dono; uma queda no tanque de criação de crocodilos dos primos Emanuel e Matilde, felizmente sem gravidade; a primeira vez que viu lantejoulas (numa digressão do Circo Mariani), essa, sim, com efeitos graves, que ainda hoje perduram, e, sob o olhar atento da PIDE, que andava no encalço do mano Sérgio, as inocentes brincadeiras políticas com o primo Tó Zé, este fazendo de Marcello Caetano e José nas vestes de Américo Thomaz (o que, não desfazendo, devia ser lindo de ver). Pela casa de família, em jeito de África Minha, versão Tete, havia batalhões de criados, como é evidente, com quem José, num assomo interclassista, chegava a partilhar refeições, motivo pelo qual ainda hoje adora os temperos mais puxadotes, como o caril e o piripíri.
Aos 12 anos veio viver para Portugal, estudando como interno no Colégio Valsassina, onde, além de muitos carolos na cabeça e contumazes assédios nocturnos (“à noite queriam todos comer-me”), ganhou os epítetos de “Lulu” ou “A Preta”. Os fins-de-semana passava-os na casa da tia Nené, em Campo de Ourique, e na residência da tia Maria Amélia, em Cascais, com cujas amigas passava as tardes jogando bridge e tomando chá, todas na quadrilhice. Depois foi para Coimbra, para o Colégio de São Pedro, mas da Lusa Atenas recorda apenas, por um lado, uma criada gorda com cheiro a bacalhau que trabalhava na casa onde morava e, por outro lado, as frequentes idas à perfumaria Caravela em demanda de cremes e maquilhagens.
Regressaria a Lisboa para estudar na Escola António Arroio, hospedando-se em casa dos padrinhos, de aristocráticos nomes Aguinaldo Bulha e Cremilde, que viviam à Rua António Pedro, perto da Praça da Chile, outra zona de elite. Com maior liberdade de movimentos, José deslumbrou-se então com as montras e as luzes da cidade e passava as tardes no Centro Comercial Imaviz, tentando aproximar-se à outrance, mas sem êxito, do afamado costureiro José Carlos.
Por essa altura conheceu Artur, que lhe deu a conhecer o Bric, ao Príncipe Real, onde logo à entrada ficou “histérico” com o ambiente - e com os sons de Diana Ross. Tornou-se aí amigo de Nicha Cabral e de João Bon de Sousa (“a quem chamávamos ‘Joaninha Má-Má’”), passou a frequentar também o Trumps, na doirada, mas improvável, companhia “das Pereira Coutinho, das Champalimaud, das Espírito Santo e das Burnay”. Raramente ia ao Finalmente, o “das pindéricas”.
Aos 16 anos regressou a Moçambique, reencontrando-se com os pais, mas uma aparição mais ousada numa discoteca de um hotel de Inhaca, onde se apresentou somente de cuecas brancas, nas raias do fio dental, valeu-lhe ser sumariamente expulso daquele país africano, às ordens de Armando Guebuza, então ministro do Interior, e com a conivência do seu irmão Sérgio. De novo em Lisboa, confessou ao padrinho Aguinaldo que era homossexual, mesmo sans conscience de soi, acabou por ser expulso da casa dos primos, começou a trabalhar num cabeleireiro em Campo de Ourique, no primeiro centro comercial do bairro. A experiência durou pouco, mas, logo a seguir, foi à boutique Alta Roda e, com enorme lata, disse ter jeito para modelo, chegando a participar num desfile no Cinema Europa, outra experiência efémera. Ainda passaria mais tarde pelo salão de Isabel Queirós do Vale (“não lavava cabeças, mas fazia brushing”), sendo despedido ao fim de duas semanas pois passava o tempo na “converseta com as amigas”, ao invés de dar o litro.
Neste período atribulado da sua vida, onde deixou para trás os estudos na António Arroio e o sonho de cursar Belas-Artes (nunca gostou de ir à escola, aliás), mudou várias vezes de casa, ou cama, e chegou a viver num cubículo com 15 enxergas numa cave da Rua Pascoal de Melo, à Estefânia, pertença de um amigo bailarino de Tete. Iniciou então uma relação, que garante ter sido platónica, com um homem mais velho, o Quim, estivador de profissão, no decurso da qual José, sempre mitómano, dizia ser Cleópatra e ele Marco António. Terminado este romance histórico, ao fim de quatro meses de Antigo Egipto, desabrochou Tatiana, ou, melhor dito, Tatiana Waleska Romanova, em homenagem dupla à família imperial russa e à amante polaca de Bonaparte (“as minhas amigas pensavam que o meu fetiche passava pelos pirilaus grandes e diz-se que Napoleão o tinha”, restando saber se, neste trecho napoleónico, José se refere ao fetiche ou ao pirilau). O debute como Tatiana aconteceu tinha ele 18 anos, num Carnaval passado no Bric, onde fez um strip ousado ao som de This Is My Life, de Shirley Bassey. Foi tal o sucesso que, nessa mesma noite, o levaram ao Scarlatty Club, cuja proprietária Guida dirá, anos depois: “Ele já tinha tendência para a aristocracia, mas pouco mais fazia que menear as ancas altivamente e sacudir o rabo na tentativa de aliciar algum espectador desprevenido. Adoro o Zé, é um amor, educado, mas vive no século passado. A coquetice dele está desfasada no tempo […] Se não é homossexual, como afirmou publicamente, então imita muito bem e é uma afronta aos homossexuais masculinos assumidos. Ou então, 20 anos depois, ainda não conseguiu despir-se da Romanov…”
José, de seu lado, afirma não apreciar o mundo do travestismo, quanto a ele demasiado suburbano e pejado “de ‘bichas’ do Barreiro”, realidade que ignoramos o que seja, quem sabe operárias da CUF. Nessa fase Romanova, dava aulas de passerelle, vestia Ana Salazar, mas continuava vivendo aos baldões, ora numa pensão frente à boate A Gata, ora noutra, pior ainda, junto ao Elevador da Glória, perto dos Restauradores. Destino aziago para um jovem de tão belas estirpes, destino que o próprio tentou fintar como pôde, contando com a ajuda de amigas, como a Raquel, com quem, entre o mais, partilhou a guarda de um galgo afegão. Em 1981 teve o pior dia de aniversário da sua vida, e por duas razões, ambas piscícolas: à uma, fez uma “peixeirada” no Finalmente por causa da conta, o que levou Raquel a romper a amizade com ele (ignora-se o destino do galgo, que era afegão); à outra, foi almoçar com a irmã e o cunhado a casa destes, mas o cunhado e os sobrinhos comeram na copa e, quiçá por causa disso, José saiu de lá com um Tupperware carregado de bacalhau com grão.
Após um sem-fim de relações episódicas, sempre tempestuosas, num desfile no Hotel Altis conheceu Maria Arlene, assistente de televisão no programa Arca de Noé, de Fialho Gouveia, que José define como uma rapariga “gordinha, com cara bonitinha, simples, com um vestido da Loja das Meias”. Entretanto, os pais tinham-se mudado para Portugal, mais precisamente para Santo António dos Cavaleiros, localidade que, não sendo bem Nova Iorque, anda lá muito perto. Do pai pouco se sabe, as always, mas Nini, conta o filho, lavava tachos num restaurante e, mais tarde, graças a certeiras cunhas, tornou-se secretária de uma repartição de finanças, facto que não impediu Betinho de se relacionar com “o topo da cadeia alimentar antes da Revolução, Champalimaud, Espírito Santo e o conde Nuno Botelho”, além de Manuel Luís Goucha, cuja posição na cadeia alimentar não é especificada. Foi então viver com os pais em Saint Antoine des Chevaliers, como lhe chama, mas aí gerava escândalo quando ia à missa vestido de mulher (“levei muitos arrasos”) e, apesar de uma pulsão religiosa que o levou a pensar até tornar-se missionário, acabou por casar com Arlene, de quem gerou um filho, crê-se que sem esforço. No dia do casamento teve angústias, indecisões. Levou o seu dobermann pela trela a um descampado nos arredores de Santo António dos Cavaleiros, o areal possível, onde tinha por hábito pôr-se em biquíni e dali fazer uma “minipraia”, rezou 13 terços e 22 salmos e, fortalecido pela fé, deu o passo. Por imposição do padre Lourenço, vestiu-se de homem no dia da boda, mas, no domingo seguinte, para ir à missa, já estava a envergar “um Hanae Mori que parecia um macramé de tecidos num pano preto com mangas ligeiramente quimono e saia preta”. Ao vê-lo acercar-se do altar para receber em si o Santíssimo, padre Lourenço mirou-o de cima a baixo e sibilou, derrotado: “Casou para nada. Continua na mesma.” E mesma, de resto, já se tinha verificado noutro dia fatídico, o da inspecção militar, em Setúbal, onde José se apresentou em trajes femininos e, em conformidade, foi declarado “completamente inapto” para o serviço à pátria. No final, à saída do quartel, já quase na porta de armas, ainda pediu para dar uma vista de olhos aos mancebos (“estava com sede de ver mancebos”), mas a pretensão foi indeferida pelas autoridades castrenses, no caso castrantes. De regresso a Lisboa, e na companhia de Arlene, cujo verdadeiro papel neste enredo todo nem sempre descortinamos, decidiu passar uns dias de lazer em Tróia, onde se exibiu na piscina com “maillots lindos”, “umas sandálias Dior encarnadas de salto alto, um pareo e uma capeline encarnada”, visual um tudo nada arrojado que o colocou na iminência de ser gostosamente raptado por um bando de matulões australianos que estanciavam às margens do Sado. Quando já se encontrava na suíte dos aussies a bebericar champanhe, pronto para a festa, todo lampeiro, salvou-o in extremis Arlene, a quem ele apelida, et pour cause, de sua “guarda-costas”. Neste fim-de-semana alucinante houve ainda outro incidente íntimo, este do foro das entranhas: à noite, ao jantar no restaurante do hotel, estando ele ataviado “com um vestido azul cristal antracite superjusto com uns bolsos da cintura à coxa que faziam drapeado”, a ingestão vespertina de quatro laxantes Dulcolax, hábito que ainda mantém, produziu em si um atroz efeito atómico, cujos pormenores José Castelo Branco, sempre fino, não omite nas páginas 97-98 da sua biografia, mas que nos abstemos de descrever, referindo tão-só que tudo girou, ou parece ter girado, em torno de um balde de plástico amarelo que havia no armário das vassouras (é desta atenção aos detalhes, ao amarelo do balde, que se fazem as grandes biografias e demais obras literárias, na linha do conhecido “efeito-realidade” de que falava Roland Barthes). Diremos ainda e tão-só, porque ele também o diz, que, de novo à conta dos laxantes (e da sua divisa de vida “não consigo fazer cocó, odeio”), teve um desastre idêntico num autocarro carregado de peregrinos, quando iam em direcção a Fátima. Noutro périplo religioso, e já na Cova da Iria, José decidiu fazer a Via Sacra, talvez por ir de quimono e calças, mas os seus delicados pés começaram a inchar e ele teve de descalçar-se, o que lhe valeu uma observação chalaceira do diácono Manuel Freitas (“Ó filha, vai descalça!”) que o deixou em êxtase, fazendo-o sentir-se irmanado a Maria Madalena, rameira arrependida, ou à Ava Gardner em The Barefoot Contessa.
Houve ainda um caso tórrido com um jogador do Benfica, orgias com o plantel deste clube da Superliga ou com alguns dos seus membros, a separação de Arlene, um curso de bordado de tapetes de Arraiolos, actividade que lhe permitiu sobreviver durante um ano. Leitor assíduo da Olá Semanário (na sua biografia cita também O Capital, de Marx, e A Utopia, não por acaso o livro da sua vida), deparou-se um dia nessa revista com a fotografia de Helena Ferreira de Lima, depois Pereira Coutinho, e, com o atrevimento habitual, ligou para a mãe desta, estabeleceu o contacto e acabou desafiado por Helena, que tinha uma galeria de arte em Cascais, para ser “marchand à comissão”, título envernizado de vendedor comissionista. Acabaria despedido da galeria por excesso de intimidade com as “tias”, com destaque para Lili Caneças, que se tornou sua grande amiga - e que o ajudou a projectar no “social” -, até ao anúncio do casamento com Betty, que Lili reprovou. Hoje, José, sempre venenoso, trata-a por “Ivana Trump em pobrezinho”.
Foi na galeria de Helena que, em finais de 1993, conheceu Betty Graffstein, a “Lady”, como no filme da Disney (sim, A Dama e o Vagabundo), que do marido herdara uma casa em Sintra e estava então deprimida, e com quem casaria em 1996, primeiro em Nova Iorque, depois em Lisboa (isto, note-se, apesar de ele mal falar inglês, uma falha imperdoável da sua educação esmerada). Com o bom gosto habitual, José refere que, na primeira vez que fizeram sexo, após ela ter-lhe massajado os pés no Hotel Dom Pedro, em Vilamoura (ele encontrava-se hospedado no Hotel Jardim, em Loulé), “o preservativo ficou lá dentro”, ou seja, portanto, nas cavernas da Betty, em jeito de poço da morte ou túnel do Marão. O resto da história é conhecido e parece ter terminado há dias, pelo menos até ver, com a detenção de José e um vendaval danado, a pari passu acompanhado por tudo quanto é televisão e jornal, inclusive “de referência”. O próprio, claro está, fala de uma “cabala”, pois já na sua autobiografia dizia ter poucos ou nenhuns amigos (“amigos, amigos, conto pelos dedos das mãos”: Marianela Mirpuri, Marluce, ex-Carlos Cruz, Rosalina Machado) e batalhões de inimigos, mas talvez as investigações em curso venham a descobrir uma realidade sinistra de décadas de violências e abusos, já que, importa dizê-lo, não são de agora as suspeitas de maus-tratos. Até na biografia oficial do “Conde” elas são ventiladas, e, note-se, como remontando aos anos 90. Além de desastres de viação, Betty já teve várias quedas e acidentes, tendo chegado, inclusive, a estatelar-se de encontro a um vidro da loja Vuitton da Rua Augusta.
Politicamente, como em tudo na vida, José Castelo Branco é heterodoxo e heteróclito. Em adolescente chegou a ir com amigas à Festa do Avante! (“uma caturreira”) e considera a filosofia de Marx “interessantíssima”, não desdenhando votar no PCP. Assume-se como “uma pessoa antidireita” e “um monárquico de esquerda”. Apesar disso, defende uma sociedade com classes, com o simiesco argumento “cada macaco no seu galho”. Navegou pelo MRPP (“tinha um primo lá”), passou pelo PPM, porque se “sentia monárquico”, desaguou no CDS (“não sei porquê, acho que gostava do logótipo”). Durante anos votou na CDU de Demétrio Alves para a Câmara de Loures, foi um entusiasta apoiante de José Sócrates (“um macho, interessante e seguro da sua sexualidade”), alinhou com Alegre nas presidenciais, teve um devotado fascínio por Álvaro Cunhal e adora Jerónimo de Sousa, “um senhor, é coerente, é povo, é aquilo que é, não é possidónio”. Também aprecia Louçã e Portas (“o Paulinho é uma ‘bicha’ fantástica, poderosa”), o Presidente de quem mais gostou foi Soares, e naturalmente odeia Cavaco (“pode-se tirar o homem da província, mas não a província do homem”). Em Junho de 2019 anunciou que ia formar um partido, o MJP - Movimento de Justiça Portuguesa, mas semanas depois desistiu desse intento devido à saúde da Betty. Em 2022 disse estar ao nível de Marcelo Rebelo Sousa e que poderia substituí-lo com grande êxito e maior proveito.
De tudo se sabe na sua biografia: somos informados de quantos medicamentos ingere ao dia, muitos (na fase Romanova tomava pílulas anticoncepcionais, cinco injecções de hormonas/dia e uma de Proluton 2150, indicado para não abortar), das operações plásticas que faz amiúde para ficar miúdo, e até ficamos a saber que, no Verão de 2008, foi pela primeira vez a um urologista, que o submeteu a um toque rectal, descrito com indisfarçável gozo (“sou virgem e não tenho dilatação nenhuma”, p. 138).
Menos loquaz é José, porém, ao falar de outros fastos da sua vida, das condenações por agressões, de quando foi detido em Nova Iorque por furto de roupa numa loja, em 2001 (“um mal-entendido”), ou, em 2003, quando voltou a ser detido no aeroporto de Lisboa, na companhia de Betty, por suspeita de tráfico de jóias. Levado aos calabouços da Gomes Freire, onde se encanzinou com os guardas, “ordinaríssimos”, e pernoitou “de T-shirt e cuequinha”, teve por colegas de infortúnio José Braga Gonçalves, da Universidade Moderna, e Carlos Cruz, Casa Pia.
Assim vai o mundo: por incrível que pareça, foi o escândalo gerado por esta detenção que o projectou na miserável esfera pública nacional e que, pasme-se, levou Pedro Curto, da produtora Endemol, a convidá-lo para participar no reality show Quinta das Celebridades, onde estrelou e se beijou com o actor porno Alexandre Frota e, claro, ganhou. Sucederam-se outras mil aparições televisivas (1.ª Companhia, Circo das Celebridades, Perdidos na Tribo, Secret Story - Casa dos Segredos), programas próprios, a gravação de um disco (Oui C’est Moi, de 2008, lançado na loja Worten do Centro Comercial Vasco da Gama), presenças constantes em revistas que de rosa só têm o nome.
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Se de José pouco se sabe, de Betty menos ainda. A entrada da Wikipédia, magérrima, identifica-a apenas como “uma personalidade do jet set português”, seja lá isso o que for, e diz que nasceu como Elizabeth Larner aos 27 de Novembro de 1928, tendo, portanto, 95 primaveras (quando casaram, ele tinha 32, ela 65, porventura em cada perna).
Na biografia de José, refere-se, muito en passant, que Betty nasceu em Inglaterra e que é filha adoptiva de um tipógrafo, editor de “uma revista de gentlemen, charutos e coisas assim”. Não falta, como é evidente, um toque aristocrata, e em altíssimo quilate: segundo José, Betty é filha do amor impossível de duas altas figuras da corte britânica, que, para abafarem o escândalo, a deram com três mesitos para a National Adoption Society, onde acabou perfilhada pelo tipógrafo e pela esposa. A avó de Betty, é óbvio, era dama de companhia da rainha e a tia era costureira, mas também da rainha. Já a bela da Betty emigrou para os EUA “para fugir ao trabalho da guerra” (!) e foi trabalhar, imagine-se, como cabeleireira, outra afinidade electiva com o futuro marido, já que um e outro começaram por ganhar a vida a passar a mão pelo pêlo alheio. Não se sabe se nessa actividade ou numa outra menos confessável conheceu Albert Graffstein, já então pai de dois filhos e antes envolvido num escândalo de receptação de artigos roubados, do qual saiu ilibado, parece.
Na biografia de Castelo Branco diz-se que Albert Graffstein era presidente do Diamond Club, em Nova Iorque, mas o que encontramos com esse nome na Grande Maçã é uma empresa de joalharia pertencente a outra família, os Magzalcioglu, e um clube de strip-teasesito ao Bronx. E, quando pesquisamos na Net a Graffstein Diamond Corporation, anunciada como “um império” nas revistas do coração, deparamo-nos com um endereço postal em Manhattan, o n.º 15 da Rua 47, um entreposto que alberga mais de 100 joalheiros e ourives. No LinkedIn, onde tem 25 seguidores (!), a empresa de Betty é apresentada em português do Brasil como “comércio varejista de jóias e relógios”, apontam-lhe de dois a dez funcionários e um outro endereço nova-iorquino… uma loja na H&M na 5.ª Avenida. Notícias do ano passado asseveravam que Betty devia entre 7500 e 35 mil euros ao Fisco português e que estava na “lista negra” do Banco de Portugal. Entre 2006 e 2007 fez três hipotecas da sua casa em Sintra, no valor total de 700 mil euros, mas não cumpriu as obrigações tributárias e foi alvo de várias execuções fiscais, as quais culminaram, em 2022, numa nova penhora do palacete (Correio da Manhã - Vidas, de 2/2/2023).
Depois de andar à tapona nos tribunais e fora deles, com Barbara, a sua enteada casada com um milionário mexicano, Betty só viu uma parte menoríssima da fortuna de Albert (falecido de cancro da próstata), a qual, ademais, é administrada por Roger Basile, filho de uma anterior relação sua. Talvez por isso Betty, uma “multimilionária nova-iorquina”, aluga quartos a turistas e partes de casa da sua quinta de Sintra e, em conjunto com José, encontra-se em permanente contenda com a sua criadagem por questões laborais, e não só.
Do passado dela pouco se sabe. Castelo Branco publicou uma vez, como atestado de opulência, um recorte de um jornaleco, o Women’s Wear Daily, de 25 de Abril de 1969, que a dava como mercadora de jóias entre a Europa e a América, mas ia dizendo que encontrar Betty “era um mistério”, já que ela apenas recebia por marcação, que os encontros tinham de ser pedidos por escrito e que o seu endereço só era dado através de uma terceira pessoa.
Por um prodigioso milagre, “Lady Betty” parece que não envelhece e, em verdade, verdadinha, sempre a conhecemos assim como está agora, um coati empalhado, quiçá mumificado, ou melhor, plastificado, tantas e tão intensas foram as intervenções estéticas a que se sujeitou em vida, tudo para chegar ao excelentíssimo nível onde hoje está, oscilando entre o monstruoso, o grotesco e o patético, e capaz de ombrear com os piores anões de Velázquez ou com o Joker da fita homónima.
Que haja gente disposta a pagar para ter a “presença” desta avantesma num evento diz-nos muito sobre o “social” português e sobre as transformações que ele vem sofrendo nos últimos anos, de resto em sintonia com a tendência mundial para a vulgaridade e o kitsch de clave neobarroca. Outrora dominado por fiapos da velha aristocracia e por parcos ricaços, que malgré tout ainda mantinham algum decoro e bom gosto, o jet set lusitano compõe-se hoje de apresentadores da TV e de “moranguitos”, em ameno e por vezes promíscuo convívio com profissionais do esférico, estrelas dos reality shows e, agora, influencers de toda a espécie. Nesta interessante passagem da sociedade do espectáculo para o espectáculo da sociedade, o principal combustível já não é, nem pode ser, a sofisticação, o glamour ou o inacessível, mas apenas e tão-só o escandaloso e o controverso, razão pela qual não há semana sem um “caso” ou uma “polémica” palpitante, logo esquecida em favor do sketch seguinte. É nisto que “o Conde” é mestre, sendo inútil desfiar as centenas de “casos”, “polémicas” e “escândalos” em que andou metido.
O autor da biografia de José Castelo Branco descreve-o, logo nas primeiras páginas, como “o mais mediático produto televisivo desde o aparecimento das estações privadas no nosso país”. Provavelmente está coberto de razão. Na verdade, com indiscutível argúcia, e não menor desvergonha, “o Conde”, um mestre absoluto do theatrum mundi, foi dos primeiros a intuir a actual hipertrofia do escandaloso, e a saber manipulá-la a seu favor. Daí o sem-fim de polémicas em que se vê envolvido, todas oportunamente transmitidas à imprensa e por esta difundidas urbi et orbi. Com desarmante candura, José confessa o efeito causado pela sua presença na Quinta das Celebridades: “A partir daí, tudo me foi permitido.” É um facto. Até lhe permitiram que dissesse, em plena crise de 2008, que “as únicas que não estão a sofrer com a crise são as pessoas pobres”, já que ele e a Betty, e outros amigos de Nova Iorque, “tinham perdido milhões no Madoff”, entre outras calamidades (em 2010, Castelo Branco afirmava não conseguir viver com menos de 40, 50 mil euros/mês).
O El País chamou-lhe, em 2008, “o conde que quer ser rainha”, intento hoje prejudicado pelas notícias que dão conta da sua detenção e queda em desgraça. Castelo Branco diz que, entre outros muitos vícios, o povo português “maltrata quem se destaca” e afirmou um dia, com conhecimento de causa, que “o putedo no meio da comunicação faz-me confusão. Os arrivistas fazem-me confusão”. Agora talvez também lhe faça confusão que as televisões e os jornais se precipitem sobre o seu cárcere, que ponham drones no seu encalço, que nos informem que foi detido de saltos altos, que jantou bochechas de porco no posto da GNR de Alcabideche e que, antes de ser ouvido pelo juiz no Tribunal de Sintra, lhe deram “uma sandes, um sumo e uma peça de fruta” (TV 7 Dias, de 10/5/2024). Por obra e graça do rasquedo televisivo, com a TVI e a CNN à cabeça, a prisão do “Conde” mostrou Portugal ao espelho, a ponto de poder dizer-se, sem favor nem esforço, que Castelo Branco somos todos nós, nas grandezas e misérias, sobretudo nestas.
O “Conde”, porém, tem experiência nestas coisas, foi detido várias vezes, há muito que vive do escândalo. É possível, até provável, que encare tudo isto como um derradeiro e apoteótico acto de glória, igual ao de uma outra glória, a Swanson do célebre filme. De facto, para quem se sente um deus, nada melhor que o crepúsculo, Götterdämmerung. Ainda assim, cumpre fazer a pergunta, fatal e inevitável: e agora, José?
* Prova de vida (46) faz parte de uma série de perfis.