Ferrovia
22 agosto 2024 às 07h20
Leitura: 9 min

TGV. País tem dois anos para provar que bitola europeia não compensa

Para avançar com a construção das linhas de alta velocidade como planeado, com os carris na modalidade ibérica, Portugal terá de apresentar a Bruxelas um estudo socioeconómico a demonstrar que a bitola europeia não traz vantagens, segundo novo regulamento europeu.

Portugal não está obrigado a construir as linhas de alta velocidade em bitola europeia. O país tem dois anos para provar que não há benefícios sociais e económicos em utilizar a distância entre carris de 1435mm em vez do padrão ibérico, de 1668mm. A exceção consta do novo regulamento para as redes transeuropeias, que entrou em vigor no passado dia 18 de julho e que interfere nas novas linhas Porto-Lisboa, Porto-Vigo e Lisboa-Évora.

Até 19 de julho de 2026, Portugal tem de submeter à Comissão Europeia “uma avaliação que indique as linhas ferroviárias existentes situadas nos corredores europeus de transporte, tendo em vista a eventual migração destas para a bitola nominal da norma europeia de 1435 mm”. O documento “deve incluir uma análise dos custos e benefícios socioeconómicos quanto à viabilidade da possível migração” e uma “avaliação do impacto” da alteração na interoperabilidade, isto é, na possibilidade de um mesmo comboio circular em vários países sem necessitar de grandes alterações.

A mesma análise tem de ser feita no caso de o país “não construir novas infraestruturas ferroviárias em conformidade com a bitola nominal da norma europeia de 1435 mm e uma avaliação do impacto na interoperabilidade”. O processo terá de ser coordenado com Espanha para os troços ferroviários que envolvem os dois países.

No máximo um ano depois de submetida a avaliação, Portugal tem de indicar as linhas que se situam nos corredores transeuropeus e qual deve ser o calendário da migração. A partir dos dois documentos, a Comissão Europeia pode conceder uma isenção temporária a Portugal, caso seja negativa a análise dos custos e dos benefícios socioeconómicos de uma eventual construção das novas linhas, logo à partida, em bitola europeia.
O pedido de isenção será avaliado à luz da justificação apresentada, bem como, se for caso disso, em termos do seu “impacto significativo na interoperabilidade e na continuidade da rede ferroviária”. Bruxelas pode pedir mais dados 30 dias depois de Portugal entregar o pedido de isenção. Se não for suficiente, há ainda um segundo pedido adicional de informação, no prazo de 30 dias a contar da data de receção dos elementos. Findo este período, será preciso esperar, no máximo, seis meses, para a decisão final da Comissão Europeia. A isenção é temporária embora não esteja definido por quantos anos.

Portugal, até agora, não apresentou qualquer análise socioeconómica junto da Comissão Europeia, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com Espanha e a Finlândia. O país escandinavo recusa a migração da bitola russa para a medida-padrão, porque os custos seriam superiores aos benefícios. O DN/Dinheiro Vivo ficou sem resposta ao pedido de esclarecimento feito junto do Ministério das Infraestruturas.
As novas linhas de alta velocidade em Portugal serão construídas em bitola ibérica, mas com travessas polivalentes, já prevendo uma eventual migração da distância entre carris para o padrão europeu, que depois também obrigaria a trocar todos os aparelhos de mudança de via. Com a bitola ibérica, um comboio proveniente de Porto-Campanhã pode seguir diretamente até Lisboa ou então fazer paragens intermédias em Aveiro e Coimbra.

Na proximidade destas estações serão construídas variantes em bitola ibérica para que seja feita a passagem entre a nova linha e a Linha do Norte. A alta velocidade em bitola ibérica já existe em Espanha, nas ligações Ourense-A Coruña-Vigo e entre Madrid e Badajoz. Neste caso, os operadores teriam de comprar comboios com eixos variáveis, já admitindo uma futura mudança para a bitola ibérica.
Se a linha fosse feita na medida-padrão, a variante para aceder a Aveiro teria de ter um terceiro carril nas vias colocadas em bitola ibérica e o acesso a Coimbra obrigaria ao uso da bitola europeia, aumentando custos de manutenção.

A opção também dificultaria a realização de serviços híbridos (34 das 60 viagens estimadas Porto-Lisboa) entre a linha de alta velocidade e a restante rede convencional. Seria uma “ilha ferroviária” dentro da rede portuguesa a não ser que fossem instalados vários intercambiadores ao longo da nova linha e que fossem comprados comboios com eixos variáveis.

Ministro sem explicação

A alta velocidade em Portugal implica a compra de novos comboios. A CP conta que ainda este ano seja autorizada a lançar o concurso: a empresa pública propôs ao anterior Governo a encomenda de 16 unidades por 578 milhões de euros, recorrendo a um empréstimo bancário, ou seja, sem apoio do Estado. Mas o agora ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, discorda do plano: “Não é nossa visão que a CP venha a operar em monopólio a alta velocidade, nem sequer em posição maioritária. A visão do PS era comprar comboios para [a CP] ter uma quota de mercado de perto de 80%”, referiu o governante em julho, durante uma audição parlamentar.

Em países com concorrência na alta velocidade, o operador do Estado tem sempre mais de metade da quota de mercado: em Espanha, no final de 2023, a Renfe tinha mais de 50% dos passageiros nos cinco principais corredores de alta velocidade apesar de concorrer com a Iryo (com a empresa estatal Trenitalia como maior acionista, com 45%) e a Ouigo (subsidiária da ferroviária pública francesa, SNCF); em Itália, a Trenitalia também lidera o mercado apesar da concorrência da Italo (empresa totalmente privada).

O DN/Dinheiro Vivo procurou perceber como Pinto Luz tinha concluído que a CP poderia ter perto de 80% da quota de mercado com a compra de 16 comboios. “Além do que foi dito pelo senhor ministro das Infraestruturas e Habitação na Comissão Parlamentar, neste momento, não há mais nada a acrescentar”, respondeu o gabinete de Pinto Luz. Também o PS enviou perguntas ao governante no dia 30 de julho, que aguardam retorno. 

A transportadora pública terá igualmente ficado surpreendida com as palavras do ministro, segundo o jornal Público.

As declarações foram feitas no mesmo dia em que a B-Rail (grupo Barraqueiro) reforçou o compromisso de entrar na alta velocidade, com a encomenda de oito comboios por 300 milhões de euros, em entrevista ao Jornal de Negócios. A empresa apenas poderá concorrer com a CP a partir de 2029. Mas o ministro não vê isso com bons olhos: “Tenho tido reuniões sucessivas com um dos operadores para acelerar a sua entrada. Não se coaduna com esperar por quatro ou cinco anos”.

O mercado ferroviário está liberalizado desde 2019, ao abrigo do 4.º Pacote Ferroviário da União Europeia. Qualquer empresa pode constituir-se como operador ferroviário, desde que obtenha uma autorização de segurança por parte da Autoridade Nacional de Segurança Ferroviário (IMT) e que não seja posto em causa o equilíbrio econó- mico do contrato de serviço público da CP, num teste feito pela Autoridade da Mobilidade e dos Transportes.

Além da B-Rail, a Iryo e a Renfe estão interessadas no mercado lusitano. Para garantir a entrada de vários operadores, Portugal terá de dar garantias de longo prazo relativamente à bitola da alta velocidade, permitindo a encomenda atempada de material circulante e que o investimento tenha retorno após décadas de viagens. Assim o país consiga acertar tudo sobre carris junto da Comissão Europeia.

geral@dinheirovivo.pt

Tópicos: comboios, TGV