Justiça
20 março 2024 às 00h12
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Fraudes a fundos da UE já ultrapassaram 70 milhões de euros em três anos

Não há registo recente de um valor tão elevado em fraudes com fundos europeus como o que levou a buscas em todo o país, entre as quais ao empresário Manuel Serrão e ao jornalista Júlio Magalhães. A operação envolveu um recorde de inspetores da PJ, juízes e magistrados: cerca de 300. Não há ainda arguidos constituídos.

O empresário Manuel Serrão é designado por “Maestro” numa revista de nome “T, na qual é o diretor, dedicada a “ajudar a progredir a comunidade têxtil portuguesa”.

Foi esta a inspiração que levou a escolher “Maestro” para nome da mega operação da Polícia Judiciária (PJ), coordenada pela sua Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) em que Serrão, conhecido comentador televisivo, foi um dos principais visados.

Entre os alvos das cerca de 80 buscas em todo o país, no âmbito de um inquérito titulado pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que investiga suspeitas de fraude na obtenção de fundos europeus num valor que pode exceder os 50 milhões de euros, esteve outra figura pública: Júlio Magalhães, jornalista e pivot da TVI, cujas funções suspendeu durante a tarde desta terça-feira.

Magalhães integra também a equipa da mencionada revista “T”, que o apresenta como “um homem ocupado, mas apesar disso ainda arranja tempo para aligeirar a página 3 da edição mensal em papel do T, com uma entrevista curta mas bem humorada e com perguntas aguçadas e certeiras”.

De acordo com as informações que foram sendo divulgadas, a proximidade de Manuel Serrão de Júlio Magalhães não se esgotará aqui, sendo sócios em, pelo menos, duas das empresas identificadas pela investigação criminal como tendo beneficiado ilicitamente de fundos europeus.

Inquérito sem arguidos

As autoridades suspeitam que pelo menos Serrão teria uma ligação privilegiada a Nuno Mangas, o presidente do COMPETE, organismo do governo que gere estes apoios.

Nuno Mangas, ex-presidente do Conselho Diretivo do IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, que foi nomeado para este cargo em 2020 pelos então ministros das Finanças, João Leão, e da Economia, Pedro Siza Vieira, juntamente com outros funcionários, podem ter violado os respetivos “deveres funcionais e de reserva, na agilização e conformação dos procedimentos relacionados com as candidaturas, pedidos de pagamento e a atividade de gestão de projetos cofinanciados”, diz a PJ.

Ao que o DN soube junto a fonte judicial, não foram emitidos mandados de detenção, nem há ainda arguidos constituídos, “por uma questão de estratégia da investigação”. É ainda possível que o crime de corrupção, ativa e passiva, possa vir a ser acrescentado à base de indiciação dos suspeitos. 

Para já, segundo o comunicado da PJ, as buscas tiveram como objetivo “a recolha de elementos probatórios relacionados com fortes suspeitas da prática dos crimes de fraude na obtenção de subsídio, fraude fiscal qualificada, branqueamento e abuso de poder e que lesaram os interesses financeiros da União Europeia e do Estado português”.

Não há registo recente de um valor tão elevado em fraudes na obtenção de fundos europeus como este que está a ser investigado pelo DCIAP.

Uma pesquisa feita aos comunicados da PJ e a notícias publicadas de 2022 para cá , revela que os quase 50 milhões de euros que terão sido recebidos ilicitamente, não têm paralelo.

No total, os outros casos investigados aproximaram-se dos  20 milhões de euros, os quais somados aos 50 resultam em quase 70 milhões de 2022 até agora (ver outros casos no final do texto).

Falta de prevenção

“Se a tónica fosse colocada, de modo mais assertivo, na prevenção deste tipo de ações, através de sistemas de controlo interno mais robustos, da assimilação de práticas de boa governação e ainda do aumento da consciencialização sobre os riscos de fraude, evitaríamos, no futuro, assistir a ações como a desta terça-feira”, sublinha Rute Serra, da direção do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.  

Ainda assim não deixa  valorizar a relevância deste género de operações, como dissuasoras da prática dos crimes em causa: “a operação que a Polícia Judiciária desenvolveu,  de combate à fraude aos fundos europeus reveste-se de elevada importância, considerando o impacto negativo que este tipo de práticas têm, não só na economia, mas também na confiança dos cidadãos, sobre a adequada utilização de valores públicos”.

Rute Serra está “confiante que se desenvolve hoje uma ação rigorosa e competente, importante para garantir a eficácia do sistema judicial e a devida responsabilização daqueles que se venha a provar que prevaricaram”.

Este Observatório tem tido uma missão ativa, enquanto entidade da sociedade civil, na monitorização e prevenção da fraude, nomeadamente, aos fundos europeus, colaborando assiduamente com as instituições formais e informais que têm a competência de gerir os riscos que a utilização dos fundos compreende.

14 financiamentos suspeitos

A Polícia Judiciária explicou no seu comunicado que o modus operandi  da operação “Maestro” assenta “na criação de estruturas empresariais complexas, visando a montagem de justificações contratuais, referentes a prestações de serviços e fornecimentos de bens para captação fraudulenta de fundos comunitários no âmbito de, pelo menos, 14 operações aprovadas, na sua maioria, no quadro do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI), executadas desde 2015”.

Através dos referidos 14 projetos cofinanciados pelo FEDER, executados entre 2015 e 2023, os suspeitos conseguiram obter, até ao momento, o pagamento de incentivos no valor global de, pelo menos, 38.938.631,46€ euros - um valor que fontes da investigação admitem ao DN poder já ultrapassar os 50 milhões de euros, pelo menos.

Como já foi referido, a PJ reconhece que “resultaram fortes suspeitas do comprometimento de funcionários de organismos públicos, com violação dos respetivos deveres funcionais e de reserva, na agilização e conformação dos procedimentos relacionados com as candidaturas, pedidos de pagamento e a atividade de gestão de projetos cofinanciados”.

Apesar dos elevados valores em causa nestas fraudes, nem a  nem a PJ nem o Sistema de Segurança Interna têm sistematizado e diferenciado este tipo de crime.

Quer o número de inquéritos abertos na PJ, quer o número de participações feitas aos outros órgãos de polícia criminal relacionadas com estas fraudes que lesam os interesses financeiros da UE e do Estado português, são contabilizados em conjunto com as fraudes na obtenção de subsídio a nível nacional

Ao que o DN conseguiu saber, segundo os dados do SSI que estão a ser preparados para o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) relativos a 2023, neste ano ter-se-á registado uma queda quase para metade destes crimes, categorizados como “fraude, obtenção de subsídio, subvenções, créditos e desvio na sua utilização”. 

Fonte oficial da PJ esclareceu, por seu turno, que “nos inquéritos recebidos no âmbito de investigação por fraude na obtenção de subsídio ou subvenção (art.º 36.º do  DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro - Infrações antieconómicas e contra a saúde pública), os dados que são tratados nesta Polícia englobam tanto os subsídios comunitários como os exclusivamente nacionais, não sendo possível extrair informação estatística desagregada, uma vez que os dados são trabalhados por tipo de crime e não pela natureza do subsídio e/ou subvenção”.

Assim, indica a mesma fonte, em 2020 deram entrada para investigação 66 inquéritos, em 2021 foram 85, em 2022 foram 75 e em 2023 diminuíram para 64.

Na operação “Maestro” participaram 250 inspetores, 32 peritos da Unidade de Perícia Tecnológica e Informática e 24 peritos da Unidade de Perícia Financeira e Contabilística.

Contou, ainda, com a colaboração das Unidades Nacionais, Diretoria do Norte, Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo, Diretoria do Centro, Departamentos de Investigação Criminal de Setúbal, Braga, Guarda e Aveiro, além de magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e especialistas do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT) da Procuradoria-Geral da República.

O DN tentou contactar, sem efeito e até ao fecho desta edição, Manuel Serrão e Júlio Magalhães, figuras públicas conhecidas. 

Outros casos

19 de abril de 2022

Nesta data, a Polícia Judiciária (PJ) fez seis buscas para obter elementos de prova devido a crimes de fraude relacionados com a obtenção de subsídios, fraude fiscal qualificada e branqueamento. O valor aproximado destes crimes era de nove milhões de euros. A investigação foi iniciada por participação da Agência para o Desenvolvimento e Coesão, e abrange os fundos do programa Portugal 2020.

24 de maio de 2022

A PJ recolhe provas e dá início à Operação Showroom, cumprindo 54 mandados de busca em Aveiro, Beja, Braga, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Lisboa, Porto, Portalegre, Santarém e Setúbal. Em causa estavam factos relacionados com “projetos suscetíveis de cofinanciamento” pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), “através dos apoios diretos à Internacionalização das PME, no âmbito do Portugal 2020, que envolvem incentivos superiores a 3 milhões de euros”, anunciava a PJ. Os factos podiam consubstanciar os crimes de fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal qualificada.

9 de março de 2023

São feitas buscas numa empresa e numa residência em Reguengos de Monsaraz. A alegada fraude com fundos europeus ascenderia a 880 mil euros. Em causa, mais uma vez, estavam as subvenções do FEDER, atribuídas a um evento (Water - World Forum for Life) organizado pelo município alentejano entre a 3 a 6 de junho de 2021. O inquérito ficou a cargo do gabinete de Lisboa da Procuradoria Europeia e indicava, ainda, que a contratação para a organização tinha sido feita por ajuste direto a uma empresa privada.

31 de maio de 2023

Desta vez, as buscas foram na Madeira. Em comunicado, a PJ  disse, na altura, que tinham sido “submetidos a cofinanciamento documentos de despesas no valor total de 5,9 milhões de euros”. Havia suspeitas de apropriação indevida de fundos, com um impacto direto nos interesses financeiros da UE, num montante global de três milhões de euros. Dizia a PJ: “As diligências incidem sobre um conjunto de 19 projetos aprovados no quadro do Empreender 2020, financiados pelo FEDER e executados entre 2016 e 2018”.