“Fiz o pedido a 1 de julho; até agora nada”; “Pedido a 11/7, até agora nada”; “Pedido a 27/7… ainda nada”; “Nada, fiz o pedido a 31/7”; “Alguém já recebeu?”; “Podemos esperar sentados”; “Já perdi a esperança, nunca irão pagar esta esmola”.
No grupo de Facebook “Senhorios - rendas anteriores a 1990”, que reúne centenas de proprietários nessas circunstâncias (ou seja, com rendas definitivamente congeladas por decisão do anterior governo, que o atual executivo, contrariando as suas promessas eleitorais, abraçou), sucedem-se os lamentos e irritações. Desde que a 1 de julho, como previsto na lei, apresentaram a sua candidatura ao “apoio financeiro” criado para os “compensar” pelo congelamento - num processo que o ministro da Habitação, Miguel Pinto Luz, denominou na passada quinta-feira de “moroso, dantesco e burocrático” - aguardam resposta. À frustração dessa espera de quatro meses junta-se agora a descoberta de que o Estado está calcular a compensação com base em valores patrimoniais não atualizados.
Isso mesmo acusa um senhorio que a 1 de novembro anunciou, no citado grupo de FB: “Hoje recebi a compensação. Utilizaram para cálculo o valor patrimonial da última avaliação e não o valor patrimonial atual.”
Como este proprietário - chamemos-lhe Daniel - explica, há geralmente, nas cadernetas prediais, dois valores patrimoniais: aquele que corresponde ao valor “atualizado”, que advém dos incrementos que a Autoridade Tributária (AT) vai fazendo, de três em três anos, a partir do coeficiente de desvalorização da moeda (e no qual é baseado o imposto pago sobre o imóvel - IMI), e um anterior, que diz respeito à última avaliação. Quanto mais antigo for o imóvel maior probabilidade há de que os valores sejam bastante diferentes.
Tendo sido o primeiro do grupo a receber a compensação, Daniel veio confirmar uma suspeita que já tinha surgido entre os proprietários que o DN tem ouvido. A de que o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), o qual está a conduzir o processo daquilo que a lei denomina de “apoio financeiro” aos senhorios para os “compensar” pelo facto de estarem há décadas a receber rendas muito abaixo do “valor de mercado” e se verem impossibilitados, pelo congelamento definitivo, de alguma vez poderem proceder a um ajuste real dessas rendas, iria optar por fazer o cálculo desse “apoio” com base no valor patrimonial mais baixo.
No caso de Daniel, o valor patrimonial usado pelo IHRU para calcular o montante da compensação tem 17 anos: é de 2007. Para chegar a tal conclusão, teve de, explica ao DN, pegar na calculadora, já que não recebeu qualquer informação sobre o pagamento. “Vi na minha conta uma transferência do IHRU. Percebi que só podia ser a compensação, mas estava à espera de que fosse mais dinheiro. Andei para ali a fazer contas e experimentei com o valor patrimonial não atualizado. Deu certo.”
Tendo apresentado o requerimento logo no primeiro dia do prazo (1 de julho), apesar de nessa altura não estarem disponíveis a maioria dos documentos exigidos - como o DN tem noticiado, a AT não os disponibilizava e o próprio IHRU foi alterando, ao longo de julho, as exigências e a forma de submissão do processo -, Daniel já tinha a haver cinco meses de compensação. Recebeu, a 31 de outubro, quatro, daí ter tido de fazer contas para perceber que lhe estavam a pagar pelo cálculo mais desfavorável. O "subsídio", como lhe chama, referente a novembro foi-lhe transferido apenas a dia 13.
Ao telefone, a voz tem riso, de descrença e amargura, quando comenta: “Para cobrar o imposto usam o valor atualizado pela inflação; para o subsídio escolhem o não atualizado. Na caderneta predial estão os dois valores, mas nunca me ocorreu que fossem usar o mais antigo. Então se a ideia é compensar os senhorios, fazem a conta pelo valor mais baixo? Está visto que querem pagar o menos possível.”
“Vou reclamar, não aceito um cálculo pelo valor mais baixo”
Recordemos que a “compensação” criada pelo Decreto-lei 132/2023, no âmbito do Programa Mais Habitação, é determinada com base no valor patrimonial tributário (VPT), através de uma operação aritmética na qual o VPT é dividido por 15, sendo o resultado dividido por 12 (os 12 meses do ano). O “apoio financeiro” é então a diferença entre esse montante e a renda paga pelo inquilino.
Assim, quanto mais baixo for o VPT do imóvel, mais baixa será a compensação a pagar pelo Estado - que pode aliás nem existir, caso a renda que o inquilino paga seja superior ao montante que resulta do cálculo descrito. Será esse o caso de uma boa parte dos contratos anteriores a 1990 - mas já lá iremos; agora vamos voltar ao caso de Daniel.
O apartamento T2 lisboeta que recebeu em herança em 2015, e cuja inquilina paga, num contrato iniciado em 1967, 105,71 euros, tem, segundo a caderneta predial, um valor patrimonial, atualizado em 2022, de 53 300,36 euros. Foi esse valor - sobre o qual pagou este ano o IMI referente a 2023 - que David usou para calcular a compensação a que teria direito, subtraindo a renda (105,71 euros) ao resultado da divisão do VPT por 15 e depois por 12 (296,11euros). Esperava então um apoio do Estado de 190,40 euros mensais.
Aquilo que recebeu, porém, foi o resultado da mesma conta mas feita sobre o valor patrimonial do mesmo imóvel em 2007: 48 790 euros. Assim, o “apoio” desceu para 165,34 euros mensais; o Estado poupou 25 euros.
Situação semelhante é a de outro proprietário agraciado com uma resposta do IHRU. Para um apartamento T3 de 100 metros quadrados no Areeiro (Lisboa), com uma renda congelada de 113,36 euros, a compensação, baseada no “valor patrimonial atual” do imóvel, “determinado em 2022” (96 124,33 euros), seria de 420 euros mensais. Mas a comunicação enviada pelo IHRU por email certifica que, tendo o pedido sido deferido, a compensação será 37 euros mensais mais baixa: 382,81. Porquê? Porque foi tido em conta um VPT de 89 310 euros, que corresponde a uma avaliação de 2011.
Não foi pois um azar de Daniel: o IHRU está efetivamente a usar no cálculo do “apoio financeiro” um valor patrimonial determinado há muitos anos. Perplexo, este senhorio tenciona reclamar. “Estou à espera de receber a comunicação do IHRU sobre o pagamento, para me basear nela para a reclamação”.
O mesmo promete a criadora do grupo de Facebook dos senhorios, Suéli de Carvalho. No seu caso, o imóvel em Braga que herdou do pai, e que está arrendado à mesma inquilina desde 1977, tem valor patrimonial atual de 62 144,38 euros, determinado em 2021, enquanto o da última avaliação - de 2006 - é 56 880 euros. No seu caso, o Estado vai poupar 29,24 euros mensais. “Tenho aqui o documento para pagar o IMI, e o valor que usam é o mais alto. Para receber a compensação não aceito que seja usado o valor mais baixo. Mas ainda não recebi. Vou aguardar.”
Valor médio de compensação mensal calculado em 17 euros
Vejamos o que diz a lei: no citado decreto-lei 132/2023, que “estabelece a compensação aos senhorios e os limites da renda a fixar nos contratos de arrendamento para habitação anteriores a 1990”, lê-se que na entrega da candidatura os proprietários comprovam o valor patrimonial do imóvel em causa através "da cópia da caderneta predial urbana que ateste o VPT do locado à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (…)”.
A avaliação a que se faz referência é aquela que, segundo o referido código, tem em consideração os vários critérios para a determinação do VPT - e que passam pela área do imóvel, grau de conservação, coeficiente de localização e vetustez, etc. Mas essa avaliação é, evidentemente, aquela sobre a qual decorrem as atualizações da inflação, e a lei diz “o VPT do locado à data da entrada em vigor do presente decreto-lei”.
Há, pois, motivo para a dúvida que a Associação Lisbonense de Proprietários (ALP) já tinha, antes do início dos deferimentos/pagamentos, colocado ao IHRU: qual o valor patrimonial escolhido para o cálculo? A resposta do IHRU foi aquela que já sabemos - o do valor da avaliação, seja qual for a respetiva data. Interpretação que a ALP, ouvida pelo DN, vê como “possível” face à redação do diploma mas que qualifica de “mais uma injustiça”: “Se doravante estes proprietários deixarão de pagar IMI e IRS, reivindicação da ALP à qual o governo anterior foi sensível, até este ano, em que esteve em liquidação o IMI relativo a 2023, pagaram o imposto sobre esses imóveis com base no valor patrimonial atualizado.”
Acresce que os imóveis com rendas congeladas têm pelo menos 34 anos de idade - estão arrendados desde antes de 1990 -, o que significa que, em geral, o seu VPT é baixo. Tão baixo que, como alertou um estudo do IHRU sobre estes arrendamentos publicado em novembro de 2023, uma compensação atribuída com base no VPT não daria, em 38% das “unidades administrativas” do país, lugar a qualquer pagamento por parte do Estado. Como se lê no documento, nesses casos “a renda mensal ajustada ao VPT já é igual ou inferior” à renda paga pelos inquilinos.
Na verdade, esse estudo do IHRU permite concluir mais: que em grande parte dos contratos de arrendamento habitacionais anteriores a 1990 as rendas, apesar de muito baixas, já serão ela por ela com o montante que resultara do cálculo sobre o VPT. Estimando existirem pouco mais de 124 mil contratos habitacionais anteriores a 1990 aos quais se poderia aplicar a compensação, o IHRU estabelece que o gasto total do Estado com ela, se baseada no VPT, orçaria em 2 215 125 euros mensais. Dividindo esse total pelos 124 083 contratos contabilizados constata-se que o “apoio financeiro” em causa corresponde a pouco mais de 17 euros por contrato (por mês).
Parece assim evidente que quem tomou a decisão política de basear no VPT aquela que foi anunciada como “uma justa compensação” dos proprietários com rendas congeladas sabia estar optar pela “solução” mais barata para o erário público (face a outras elencadas no estudo do IHRU, e decerto mais justas, como a do valor fixado para os imóveis no Programa de Arrendamento Acessível - 80% do “preço médio de mercado” tal como definido pelos índices do Instituto Nacional de Estatística para cada zona e tipologia). E que uma parte considerável desses senhorios não teria direito a um cêntimo, enquanto para muitos outros a “compensação” resultaria tão baixa que não mereceria a maçada de a requerer.
Número de senhorios que pediram apoio é “risível”?
Como é sabido, o governo AD decidiu manter as rendas congeladas e a "compensação" legislada pelo PS. Porém, na passada quinta-feira, no parlamento, o ministro das Infraestruturas e Habitação reputou de “risível” o facto de desde julho só terem dado entrada no IHRU cerca de quatro mil pedidos (foi o número que mencionou) de “apoio financeiro” relativos a rendas congeladas - quando o universo estimado destes contratos é o dos tais 124 mil.
Será mesmo "risível"? Tendo em conta as duas compensações deferidas de que este artigo se faz eco, imaginemos que o valor médio das relativas aos quatro mil contratos que o IHRU tem “em análise" é 200 euros: tal corresponderia a 800 mil euros mensais/ 9,6 milhões anuais. Teríamos assim, neste tão pequeno contingente de pedidos, o correspondente a mais de 36% do valor global estimado anualmente pelo IHRU para este apoio. Donde se poderá concluir que os contratos cuja renda e VPT permitem uma compensação que, passe o pleonasmo, compense minimamente o esforço da candidatura são uma pequena parte do universo total dos arrendamentos anteriores a 1990.
Mas há mais: serão pouco mais de 21 mil aqueles que podem desde já ser candidatados ao “apoio financeiro”. Isto porque o decreto-lei 132/2023 restringe esse recurso aos que correspondem a inquilinos que requereram, na sequência da tentativa do senhorio de efetuar a transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano e/ou de aumentar a renda, comprovativo do rendimento anual bruto corrigido (de modo a invocarem “insuficiência económica”). Ora, segundo o estudo do IHRU, aquando do Censo de 2021, em 124 083 contratos anteriores a 1990 só 21084 estavam nessas condições (correspondendo também a senhorios privados, os únicos que podem recorrer à compensação).
Só será então possível algum espanto com o pequeno número de pedidos de compensação “entrados” se se ignorar a forma como aquela é calculada e quais as exigências para a requerer. E isso antes de chegar ao tal processo “moroso, dantesco e burocrático” sobre o qual o DN tem vindo a reportar e a questionar o ministério de Pinto Luz. Um processo que agora, mais de quatro meses após o respetivo início e à beira do fim do ano, o governante assevera querer “agilizar”,
Depois de em outubro ter invocado “um problema de software” para justificar os meses de atraso, o ministro apresentou agora um novo motivo: “O processo afunila na Autoridade Tributária [refere-se ao facto de haver documentos exigidos que dependem da AT e que esta, como o DN alertou logo em junho, não faculta], na burocracia a que é difícil alguns senhorios poderem aceder.” E adianta: “Estamos a alterar o processo de validação, equacionando até a exclusão da questão da AT. Estamos a agilizar, por proposta do IHRU, todo este processo. Porque é um processo moroso, dantesco, burocrático. (…) Até ao final deste ano tenho o compromisso do IHRU de que as quatro mil candidaturas estarão resolvidas, despachadas e a pagamento”.
Pinto Luz prometeu até pagar aos senhorios “aquilo que merecem”. Não explicou o que quer dizer com isso - só se sabe que a verba inscrita no Orçamento de Estado de 2025 para este “subsídio” foi já diminuída dos estimados 26 milhões para 20.
No mencionado grupo de FB de senhorios, estas palavras do ministro foram partilhadas em vídeo. Nos comentários, uma das proprietárias exprime o seu enfado: "Se houvesse mesmo interesse em fazer a compensação não precisava de haver qualquer burocracia. Sabem a data de início dos contratos, sabem o valor matricial a utilizar e têm o IBAN de cada contribuinte. A única coisa que falta é interesse em resolver.”