Denúncia
10 fevereiro 2024 às 09h00
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Ministério Público investiga denúncia anónima de entrega de 120 mil euros a Salvador Malheiro

O número quatro da lista da AD por Aveiro é alvo de uma denúncia anónima no Ministério Público. Em causa está a requalificação do Esmoriztur, uma casa de espetáculos em Esmoriz em relação à qual a oposição pede uma comissão eventual na Assembleia Municipal.

A recuperação de um edifício em Esmoriz (concelho de Ovar) que se arrasta há décadas está sob suspeita. O Ministério Público recebeu uma denúncia anónima sobre alegadas irregularidades na adjudicação da obra com o relato de situações que podem configurar os crimes de corrupção e participação económica em negócio. Ao mesmo tempo, a oposição na Assembleia Municipal de Ovar pede uma comissão eventual para averiguar os contornos de uma obra na qual, segundo o Orçamento e Grandes Opções do Plano para 2024 da Câmara de Ovar, o município já gastou 1.225.165 euros e para a qual está previsto gastar um total de 4.235.265 euros.

A denúncia, a que o DN teve acesso, conta como o empresário José Barros de Sousa terá usado Mário Monteiro - à data militante do PSD e entretanto dirigente do Chega Ovar - para chegar a Salvador Malheiro, presidente da Câmara de Ovar. Segundo a denúncia, Monteiro terá conseguido marcar um almoço no restaurante Bosque com Malheiro e Barros de Sousa, em 2016, no qual o empreiteiro terá apresentado a empresa Binónimo Elevado Lda como interessada em ficar com a construção de um museu em Válega.

Denúncia fala em entregas de dinheiro

“Foi combinado que Salvador Malheiro receberia 120 mil euros pela adjudicação da obra, valor que seria entregue em envelopes com notas, coisa que aconteceu entre 2016 e 2017, através do tal contacto comum, Mário Monteiro”, lê-se no texto que seguiu para o Ministério Público. Segundo uma fonte envolvida no processo, terão sido realizadas oito entregas presenciais entre julho de 2016 e janeiro de 2017.

Esta é uma alegação que Salvador Malheiro rejeita por completo. “Naturalmente que refuto liminarmente essas acusações”, começa por dizer ao DN, assegurando estar “de consciência absolutamente tranquila” quanto à denúncia de que é alvo. “Infelizmente, já começo a estar habituado”.

O DN contactou Mário Monteiro para o confrontar com estes dados, mas o homem que é apontado como tendo feito entregas de dinheiro a Salvador Malheiro não quis fazer qualquer comentário.

No Portal Base, encontra-se o primeiro contrato que a Binómio Elevado conseguiu com a autarquia: uma empreitada para a construção do Museu Escolar Irmãos Oliveira Lopes, em Válega, atribuída por concurso público, a 12 de maio de 2016, no valor de 895 420, 66 euros.

Dois anos mais tarde, a Binómio Elevado ganha novo concurso público. A empreitada de requalificação da Casa de Artes do Esmoriztur, um prédio abandonado há anos em Esmoriz, que foi adquirido pela autarquia ainda antes de Malheiro chegar a presidente da Câmara de Ovar. O contrato, que está no Portal Base, tinha o valor de 1,4 milhões de euros e foi assinado a 23 de março de 2018.

Empresas diferentes, a mesma pessoa

O contrato, a que o DN teve acesso, foi assinado por Salvador Malheiro, em representação da autarquia, e por Manuel Brandão de Pinho, pela Binómio Elevado. Apesar disso, na notícia publicada no site da Câmara é Barros de Sousa quem aparece na cerimónia de assinatura.

Contactado pelo DN, Barros de Sousa não soube explicar a que título aparece nessa cerimónia, mas admitiu ter trabalhado na Binómio Elevado “como técnico”. Em que período? “Não me recordo”, diz o empreiteiro que garante não ter já relação com essa empresa.

Durante a empreitada do Esmoriztur, o valor da obra foi derrapando. Ao todo, foi preciso assinar cinco adicionais ao contrato inicial (todos aprovados em reunião de Câmara), no valor global de 300 mil euros.

A denúncia diz que esse valor “foi combinado em duas reuniões”, uma com Mário Monteiro, Barros de Sousa e o chefe de divisão de Obras Públicas da Câmara, José Pinto, e uma segunda entre o chefe de divisão e o vice-presidente da Câmara Domingos Silva e Mário Monteiro.

Domingos Silva, o vice-presidente que está agora à frente da Câmara por Malheiro ter suspendido o mandato para ser candidato às eleições pela AD, diz contudo não conhecer José Barros de Sousa. “Não conheço. O nome não me diz nada. Não tive reuniões com ele na Câmara”, declara ao DN.

De resto, Domingos Silva justifica a derrapagem no preço com “situações detetadas na obra que não foram detetadas antes”, como a necessidade de impermeabilização à volta do edifício e o facto de haver no telhado materiais que não podiam ser zincados, ao contrário do que estava no projeto.

Mas é a Barros de Sousa que pertence a Goldpromise Lda, a empresa a quem a autarquia adjudicou, por consulta prévia a empreitada de “Medidas de Proteção no Edifício Esmoriztur” a 28 de dezembro de 2020, numa altura em as dificuldades financeiras da Binónimo Elevado tinham já levado a Câmara de Ovar a tomar posse administrativa da obra.

Essa intervenção da Goldpromise, que Domingos Silva diz ter servido para “vedar a obra”, custou cerca de 46 mil euros. “Não sei como foi escolhida a empresa”, acrescenta Domingos.

Malheiro diz que “processo é cristalino”

Ao DN, Salvador Malheiro também diz não conhecer José Barros de Sousa ou as suas empresas. “Era a obra que eu tinha mais interesse em que corresse bem, por eu ser daqui de Esmoriz. O processo fala por si. É cristalino”, afiança o candidato a deputado da AD, que desvaloriza as suspeitas. “Deve haver várias denúncias anónimas sobre isto. Estou completamente tranquilo”.

Malheiro e Domingos Silva admitem conhecer bem Mário Monteiro, que foi militante do PSD em Ovar durante 40 anos, mas não lhe atribuem credibilidade, vincando que hoje Monteiro está no Chega. “Não merece credibilidade. Está numa cruzada e não é de agora”, desvaloriza Domingos Silva. E negam qualquer irregularidade num processo que, dizem, seguiu todos os trâmites legais. “Todos os pagamentos [de trabalhos em obra] foram feitos mediante autos de medição feito pelos técnicos da Câmara”, vinca Salvador Malheiro.

Salvador Malheiro diz desconhecer Barros de Sousa e a Goldpromise, mas o DN teve acesso a documentos que ligam esta empresa à Engasp, uma sociedade que foi fundada por Malheiro e por dois irmãos e da qual o social-democrata se desvinculou quando foi para a Câmara de Ovar.

Há uma fatura de 11.500 euros pagos pela Goldpromise à Engasp, que é justificada com “prestação de serviços de engenharia”, e há um cheque datado de 9 de novembro de 2019 no valor de seis mil euros também para a empresa que tem sede fiscal na antiga morada dos pais de Salvador Malheiro e cujo NIF é usado pela mulher de Malheiro num negócio de venda de bijuteria online.

“Deixei de ser sócio antes de ser presidente de Câmara”, reage Salvador Malheiro, descartando qualquer intervenção sua na empresa que continua nas mãos de um irmão que é engenheiro civil e de uma irmã médica.

Apesar de a Câmara de Ovar já ter gastado mais de 1,2 milhões de euros no Esmoriztur, a prometida sala de espetáculos com 500 lugares continua por concretizar. A Câmara chegou a lançar um novo concurso público no valor de 2,3 milhões, mas não houve interessados.

“Estamos a ultimar um novo concurso e a olhar para o que pode ter afastado os candidatos”, diz Domingos Silva, que espera apenas aprovar uma alteração ao orçamento para lançar um novo concurso cujo valor “deve rondar os três milhões de euros”.

A subida dos valores envolvidos face ao que estava previsto em 2016 é justificada por Domingos Silva com uma alteração ao projeto feita já depois de a Câmara ter rescindido o contrato com a Binómio Elevado. “Não estava previsto ser tão ambicioso. Tivemos um grande upgrade em termos de mecânica de cena”, afirma.

Segundo o Portal Base, pelo primeiro projeto feito em 2016 a Câmara pagou 19 750 euros ao atelier de arquitetura Cofetis Gestão de Projetos SA. Por este novo projeto, adjudicado em 2021, o mesmo atelier recebeu 48 805 euros.

Oposição questiona gastos

“O que se gastou com o Esmoriztur é imenso e injustificado”, diz ao DN Alcides Alves, deputado municipal do PS, que se confessa “apreensivo” com o processo. “Esta Casa das Artes vai ficar mais cara do que a pala do altar do Papa”, comenta, notando que tem pedido explicações ao executivo sem se sentir esclarecido. “Há muito nevoeiro à volta daquela obra”, diz, afirmando que depois de tanto dinheiro gasto “o que lá está é um monte de escombros”.

São essas dúvidas que fizeram o deputado municipal do CDS Fernando Almeida iniciar contactos com outras forças da oposição para pedir uma comissão eventual que permita esclarecer os contornos da obra. “Já tive resposta favorável por escrito do BE, PCP e do Movimento 2030”, conta ao DN o centrista que quer pedir uma visita ao espaço para entender o que já foi feito. “Faço questão de perceber tudo o que se tem passado”.

Mário Manaia, eleito pelo BE para a Assembleia Municipal, diz que há várias obras em Ovar que se vão arrastando e em relação às quais os bloquistas querem respostas, mas entende também haver falta de transparência na gestão. “Há uma lista de empresas a que a Câmara recorre e que aparecem sempre nos concursos, ora ganhando o A ora o B. Isso é factual. Já fiz pergunta sobre isso e não foi respondida”, declara ao DN.

Domingos Silva não vê, porém, utilidade numa comissão eventual sobre o Esmoriztur. “A Câmara nunca negou informação sobre o processo. Uma comissão eventual para quê? Não faz sentido. O Ministério Público que venha cá investigar. A porta da Câmara está aberta”.

Outras suspeitas

A Operação Vórtex, na qual é arguido o antigo deputado Joaquim Pinto Moreira, também passou pela Câmara de Ovar. Segundo o Correio da Manhã, a 19 de abril de 2022 Pinto Moreira terá contactado o vereador do Urbanismo de Ovar, António Bebiano, para conseguir desbloquear o licenciamento de uma obra que seria contrária ao PDM em vigor no concelho.
Esta acusação tem sido negada por Pinto Moreira e por Salvador Malheiro que, de acordo com a SIC, apareceria referido em escutas como sendo um dos “homens de bolso” do PSD local, peça chave para desbloquear licenciamentos.