INVESTIGAÇÃO
11 maio 2024 às 11h58
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Grupos de ódio mobilizaram campanha do Chega e "preparam o terreno" para que partido tome ações mais radicais

A Reconquista e o 1143 já saíram da bolha online e estão nas ruas. Fizeram campanha ao Chega e celebraram o resultado. Agora, trabalham para a radicalização das leis, especialmente a “remigração” - uma maneira soft de chamar a deportação em massa. O discurso já é difundido pela juventude do partido.

Deportações em massa de imigrantes. Mulheres sem direito ao voto e proibidas do acesso à internet. Proibição do aborto em todos as situações - incluindo violações. Dificultar o divórcio. Proibir casamento de portugueses com brasileiras. São algumas das ideias amplamente difundidas por dois grupos de ódio que promoveram uma ampla campanha a favor do Chega nas últimas legislativas, com um objetivo maior: preparar o terreno para a implementação destas ideias no futuro, com ações já em andamento.

Estamos a falar da Reconquista, um grupo ultranacionalista formado por homens portugueses jovens, sob o comando de Afonso Gonçalves, e do 1143, do neonazi Mário Machado. Além de uma grande discriminação no campo dos direitos das mulheres, ambos difundem ideias semelhantes relacionadas com a imigração e propagam a teoria da “Grande Substituição”, que é falsa e motivadora de massacres pelo mundo, admiram os ditadores Salazar e Adolf Hitler. O DN investigou os grupos durante meses e observou uma forte campanha eleitoral pelo Chega.

“As ideias políticas têm ciclos de maturação e evolução; movimentos como a Reconquista estão a preparar o terreno cultural para que partidos como o CHEGA possam assumir posições mais resolutas na questão demográfica. A maioria das pessoas do partido Chega concorda connosco na questão da imigração, mas por uma ou outra razão determinou-se que não era essa a estratégia comunicacional mais inteligente”, escreveu Afonso Gonçalves na rede social Telegram, onde listou os motivos para votar no partido.

O mesmo anunciou publicamente esse apoio e possui relação com vários membros da juventude do partido. É o caso do supremacista branco João Antunes, Ricardo Reis, integrante da Direção Nacional do Chega Juventude e Francisco Araújo - que foi orador num congresso da Reconquista.

Já no grupo 1143, o apoio ao Chega reúne a maioria dos membros, apesar de não ser consensual. O líder Mário Machado declarou o voto no partido. Há membros que votaram no ADN e Ergue-te, por considerar o Chega um partido “pouco radical”. O DN ouviu mais de duas dezenas de horas de debate no X (antigo Twitter) e acompanhou meses de conversa no chat  do Telegram em que as eleições foram tema recorrente. A maior parte dos militantes concorda com as ideias do partido na área de imigração e entendem que é um “início”para alterações na lei mais radicais.

Uma das publicações da Reconquista na campanha eleitoral, com vídeo de Ricardo Reis, da direção nacional da Juventude do Chega.
Print screen: DN

Nas legislativas, um ponto de tensão entre o Chega e o 1143 foi o brasileiro Marcus Santos, da lista pelo Círculo do Porto. Alguns dos militantes recenseados no Porto defenderam que não se devia votar, enquanto outros alegaram a importância de eleger o maior número de deputados possível. Há também quem tenha votado de forma contrariada. Uma das mulheres nacionalistas disse que “odeia brasileiros visceralmente” e que “não os suporta”, mas que votaria no Chega mesmo que elegesse Santos.

Na Reconquista, apesar do irrestrito e declarado apoio, a presença do candidato brasileiro também foi fortemente criticada. “Um preto africano, que fala brasileirês”, definiu Alexandre Gazur, um engenheiro informático considerado o “número 2” do grupo. As declarações ocorreram num space - uma ferramenta amplamente utilizada por estes grupos. Trata-se de um debate em áudio na plataforma X (antigo Twitter), onde os utilizadores podem participar como oradores. Os spaces são recorrentes e contam com a participação dos militantes de ambos os grupos, de outras franjas nacionalistas e de membros oficiais do Chega.

Segundo o cientista político Vicente Valentim é comum que os partidos tenham pessoas ou grupos para divulgar o discurso mais extremista. “Há vozes que não estão formalmente filiadas com o partido ou de atores que são um bocadinho mais abaixo da hierarquia, que acabam por dizer muitas coisas mais extremistas que, às vezes, a cúpula do partido vem dizer alguma coisa mais ambígua”, explica o especialista, autor do recém-lançado livro O Fim da Vergonha.

De acordo com o académico, a estratégia é bastante eficaz. “Quando o partido diz o mesmo com certa ambiguidade, permite chegar a um eleitorado que é menos extremista, mas, ao mesmo tempo, sinalizar claramente às pessoas que são mais extremistas que, se querem votar num partido, este é o partido”, argumenta. “Eles acabam por ter bastante talento a andar, por exemplo, entre não ser tão extremistas que alienam as pessoas um bocadinho menos extremistas, mas ao mesmo tempo dizer claramente aos extremistas que, se querem votar num partido, este é o partido mais próximo [das suas ideias]”, analisa.

Na Alemanha, um movimento semelhante aconteceu com o grupo PEGIDA - que defende a expulsão de imigrantes do país - e o partido Alternativa para a Alemanha (AfD). Em 2018, sob uma ordem do partido em não expor publicamente relações com o PEGIDA, um dos colíderes da AfD apelou a que membros do partido pudessem participar nas ações do grupo. Em 2022, alguns membros da AfD foram presos numa investigação sobre o planeamento de um golpe de Estado no país. Mas nem mesmo as relações obscuras e o envolvimento de membros com o crime afastam o eleitorado: sondagens indicam que a AfD possui pelo menos 15% das intenções de voto para as eleições europeias.

O politólogo Riccardo Marchi, analisa que, por mais que tanto Afonso Gonçalves, quanto Mário Machado discordem do Chega em relação à identidade nacional, viram em Ventura “uma janela de oportunidade nunca vista em Portugal para fazer avançar um certo tipo de ideia” e “apelaram abertamente ao voto ao Chega”. Ao mesmo tempo, o especialista afasta a ideia de que tais grupos são perigosos. “Não representam minimamente um perigo para ninguém e mesmo as tentativas iniciais de entrarem dentro do Chega, por exemplo, foram travadas imediatamente pela própria direção do partido ainda em 2019”, conta. O Chega não respondeu às questões do DN sobre este artigo.

João Antunes, também militante do Chega possui relações com o grupo 1143 e com outros líderes da extrema-direita mundial.

Crimes de ódio e mira das autoridades

Assim como o PEGIDA e AfD, o grupo 1143 e a Reconquista estão listados como grupos de ódio na classificação do Global Project Against Hate and Extremism (GPAHE), que monitoriza conjuntos de extremistas pelo mundo. Heidi Beirich, investigadora e cofundadora do projeto, não hesita sobre o risco. “O maior perigo destes grupos reside na forma de crimes de ódio e terrorismo, geralmente dirigidos contra imigrantes e outras pessoas que eles visam e humilham. Podem também influenciar a política e puxá-la para a extrema-direita, o que também pode ameaçar os Direitos Humanos em geral”, diz ao DN.

Ambos também estão na mira de autoridades portuguesas e referenciados no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) 2023, ao qual o DN teve acesso. “[No ano passado], no campo dos extremismos políticos assistiu-se a um agravamento da ameaça representada por estes setores, sobretudo no âmbito da extrema-direita. Com efeito, após um período de estagnação, as organizações tradicionais e os militantes dos setores neonazi e identitário retomaram a sua atividade, promovendo ações de rua e outras iniciativas com propósitos propagandísticos”, é caso do 1143, um novo grupo com raízes na militância neonazista de Mário Machado, agora com diferentes apoios e atuação nas redes sociais.

As autoridades de segurança portuguesas também traçam o perfil do Reconquista, criado oficialmente no último trimestre de 2023, mas com início da atuação meses antes. “Paralelamente, também foram criados projetos e organizações por jovens que estendem o alcance da mensagem extremista a uma nova geração com um perfil distinto (...) e projetos com convergência ideológica com a extrema-direita mesmo que, por vezes, perpassem a sua versão clássica com ideias patriarcais e misóginas.”, pontuam.

A militância de Afonso Gonçalves começou nas redes sociais ainda em 2022. O primeiro tema que lançou ao estrear o canal no Telegram foi um vídeo intitulado “o feminismo é uma doença”. Outra das primeiras publicações é uma foto em que simula dar uma bofetada na deputada Inês Sousa Real, do PAN.

A misoginia é marca registada do grupo, e com o tempo, outras pautas foram exploradas, como a falsa “ideologia de género” e, posteriormente, com maior foco, a imigração. No podcast  Zugacast, Afonso confessou um dos motivos que o levou a militar politicamente, já que não tinha tradição política, nem influência familiar na matéria: “O bichinho surgiu, primeiro, em outubro de 2019, quando vi André Ventura irromper ao Parlamento. Me despertou ali qualquer coisa”, disse na entrevista, realizada no dia 4 de outubro de 2023 e visualizada por quase 10 mil pessoas.

Nesta mesma entrevista, durante quatro horas, abordou vários temas e disse na cara de um dos apresentadores (brasileiro), que “preferia” um português comunista do que um não-português conservador. Por mais que o brasileiro tentasse ganhar a simpatia do entrevistado e puxar a conversa para o âmbito direita x esquerda - que Afonso disse considerar importante, ele foi irredutível na afirmação de que é necessário deportar “massivamente” todos os “extraeuropeus” e proibir direitos das mulheres. Muitas destas ideias não eram novas para os seguidores do jovem. Num dos posts, Afonso disse que “a imigração Brasileira e as suas consequências são a PRINCIPAL ameaça à sobrevivência de Portugal”, além de frequentemente associar as mulheres brasileiras à prostituição - mas também o faz com as demais mulheres que frequentam o ginásio, usam as redes sociais e têm qualquer opinião.

É precisamente na internet que está o foco da militância destes grupos, que aliam o ativismo de rua com a propagação das ideias na internet. Tanto no 1143 quanto na Reconquista, a comunicação online tem padrões. Há uma mistura nas ações. Por exemplo: as atividades na rua, como protestos e instalação de faixas com frases xenófobas em locais públicos e autocolantes, são filmadas e fotografadas. Depois, são criadas comunicações para todas as redes sociais, desde os grupos no Telegram até o TikTok, onde atingem uma camada mais jovem da população.

O próprio RASI 2023 destaca o uso da internet como forma de ativismo e radicalização. “Este crescimento da extrema-direita, nomeadamente entre as gerações mais jovens, deveu-se, em grande parte, ao esforço desenvolvido na esfera virtual, tornando-a o seu principal veículo de disseminação de propaganda e motor de radicalização e contribuindo, assim, para a proliferação das narrativas extremistas, que atingem um público mais alargado e diversificado.”

Publicação do líder da Reconquista sobre o lançamento do livro "Identidade e Família", apresentado por Passos Coelho em abril.

Milhões de pessoas atingidas

Mas qual a dimensão do poder da internet em alcançar a percentagem da população que não está online? A resposta está em “universalizar questões quotidianas”. 

Quem responde é a especialista Fernanda Sarkis, com experiência neste tipo de monitorização em Portugal e no Brasil. “Ao mesmo tempo que a rede social é um veículo de comunicação de massa, na perspetiva da distribuição em massa, a dinâmica da construção de sentido, ela se dá num processo comunitário. Você precisa também de um comportamento coletivo que acompanha esse processo”, explica.

Ter imigrantes como alvos - elo entre o Chega, o 1143 e o Reconquista -, foi o tema que mais conseguiu transcender a bolha da rede social e ir para as ruas. “Eles conseguiram entender que todo mundo tem alguma história com o imigrante ou ouviu falar de uma história com o imigrante. Aí uma história que acontece numa aldeia, todo mundo no café vai ficar sabendo. Quando chega uma hora que você vai na aldeia, o cara tá falando sobre isso. Então um vídeo que chega no Whats- App, ele vai fazer muito sentido pra pessoa, é o viés de confirmação [confirmation bias]”, detalha a especialista.

O maior exemplo deste trabalho é a série de 18 vídeos intitulada A Grande Invasão, criada pela Reconquista. Segundo anunciou Gonçalves, os objetivos foram “tornar a substituição populacional em tema de debate nacional” e “levar esta realidade a todos os lares Portugueses antes das eleições”. Na divulgação nas redes sociais, todos os posts eram acompanhados pela hashtag #Chega  e amplamente partilhados por militantes do partido de André Ventura. 

Cada um dos vídeos foi filmado num distrito do país. As “histórias” contadas vão ao encontro da narrativa do Chega: de que os imigrantes são criminosos, que não trabalham e vivem de subsídios.

No programa eleitoral do partido, constava, entre outras medidas, criar o crime de residência ilegal e proibir o acesso à apoios sociais nos primeiros cinco anos - medidas inconstitucionais. O líder da Reconquista usou como tática descontextualizar as informações, fazer edição para ocultar respostas, não informar o objetivo real das entrevistas e induzir respostas aos imigrantes - a maior parte deles não-falantes de português ou mesmo de um inglês com total compreensão. Houve quem escondesse o rosto e pedisse para não ser filmado - incluindo requerentes de proteção internacional que foram expostos. Afonso entrou em hotéis e Pousadas da Juventude onde ficam instalados temporariamente os requerentes de asilo - algo previsto em lei e de acordo com as regras da União Europeia (UE). No entanto, a apresentação era sempre de “pessoas a viver à custa do Estado”. Muitas vezes, Afonso fez publicações em que gozava com os cidadãos. 

Num space nas vésperas das eleições, Afonso contou que a produção custou 4,5 mil euros, paga com doações. Na maior parte das publicações, é feito o pedido de dinheiro para arcar com os custos do grupo. Estão disponíveis números de Mbway, PayPal e bitcoin - para aqueles que não querem ter registo da doação. Os recursos resultaram nos vídeos já publicados, baseados na falsa ideia da “Grande Substituição”, a mesma usada por partidos ultranacionalistas da Europa e por Donald Trump, candidato à presidência dos Estados Unidos. A mesma teoria supremacista já foi referida por André Ventura em mais de uma ocasião e é uma das bases do grupo europeu Identidade e Democracia (ID), do qual o Chega faz parte.

A “Grande Substituição” já saiu da esfera virtual e motivou massacres pelo mundo. É o caso do atirador que matou 10 pessoas - a maior parte negras - num supermercado de Buffalo, nos Estados Unidos. No Texas, outro jovem de extrema-direita fez um verdadeiro banho de sangue ao matar 20 pessoas e ferir outras 26. Há exemplos também na Nova Zelândia e agressões a imigrantes noutros países europeus em investigação como crime de ódio. É também o caso de Portugal, onde as autoridades investigam se houve motivação racista na agressão a 10 estrangeiros no Porto a 3 de maio.

“Ninguém está a substituir ninguém”

Com o número de imigrantes em Portugal, que chega a 1 milhão de pessoas, a ideia parece ser sedutora para alguns. No entanto, a investigadora Catarina Reis desmente a narrativa. “Nós estamos a falar de apenas 7,5% dos estrangeiros residentes que têm uma sobre represen- tação naqueles territórios férteis e ativos que realmente interessam ao país. E, portanto, quando nós estamos a falar dos envelhecidos, estamos a falar dos restantes 92% da população que reside em Portugal. Daí que este discurso não faça de todo sentido, porque ninguém está a substituir ninguém”, ressalta. Catarina Reis, também autora do relatório anual Imigração em Números, vai mais longe no desmontar das fake news  associadas à imigração. 

“Na última década o número de estrangeiros mais que duplicou. Ora, se houvesse uma relação direta, o que nós iríamos ver nos dados era um aumento da criminalidade dos estrangeiros e um aumento dos reclusos estrangeiros no sistema prisional português”, contextualiza. 

O investigador João Henriques, vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico em Portugal, assinala que outra mentira é de que a população islâmica no país não quer integra-se. “Essas pessoas não querem impor a sua cultura aqui para conviver. Isso não é verdade em Portugal”, rebate. Henriques vê com preocupação esse discurso e defende que a única forma de combatê-lo é com educação. “É educando logo na escola, educando a população portuguesa desde os bancos da escola, para que essa situação seja desmistificada. Tem de haver também um esforço de integração das autoridades e de alguma comunicação social em desmontar essa imagem”, complementa.

Mesmo que as ideias que servem de base a tais narrativas amplamente divulgadas sejam falsas, os objetivos da Reconquista foram alcançados com a série e celebrados pelos membros. Conforme apurou o DN, a mensagem de uma suposta “substituição populacional” foi transversal, atingindo até mesmo moradores de bairros sociais e imigrantes de segunda ou terceira geração. O trailer  de apresentação da série alcançou mais de 1 milhão de visualizações e circulou amplamente em grupos de WhatsApp, por exemplo.

Thaís França, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), aponta que a narrativa é sedutora pelo momento que Portugal vive. “Acham que Portugal vai deixar de ser o Portugal. Porque agora tem outras culturas vindas, são culturas muito diferentes do que eram antes. Depois, também há a discussão de que essas pessoas sobrecarregam o Sistema Público, como na Saúde e Educação”, explica a investigadora, coordenadora do projeto Mapping Out: Portugal on the European Anti-Immigrant Movements Map (Mapeando: Portugal no Mapa Europeu dos Movimentos Anti-Imigrantes).

A internet como grande aliada

Na investigação realizada pelo DN nos últimos meses, também se verificou uma atmosfera comum nas publicações. No caso da Reconquista, com o passar dos meses e aumento no número de militantes, passaram a profissionalizar-se mais, inclusive com a contratação de um web designer. Os primeiros vídeos, gravados sem microfone e sem edição, deram lugar a produções elaboradas, com linguagem padrão e estratégias de marketing  bem delineadas. No grupo 1143, as estratégias também passam por edição, com uso de músicas épicas nos vídeos e grafismos. Assim como as da Reconquista, entre as hashtags  utilizadas está a #PartidoChega  e #AndreVentura. Nos comentários, é comum encontrar pessoas a declararem voto no partido.

Outra estratégia é a articulação nacional e internacional entre grupos com ideias semelhantes. Páginas como a Invictus Portucale, que soma quase 100 mil seguidores nas redes sociais, com frequência partilham publicações da Reconquista e também publicações do 1143. Páginas internacionais, como a Rádio Genoa, uma plataforma digital de notícias falsas e descontextualizadas sobre imigração, também é parceira de ambos os grupos de ódio. 

Heidi Beirich, investigadora já referenciada nesta reportagem, afirma que “sem a internet seria muito improvável o recrutamento, radicalização e difusão do discurso extremista”.

O alcance da narrativa de ódio não foi ainda mais longe por força dos mecanismos de moderação das plataformas. O canal inicial do YouTube foi derrubado durante as exibições dos primeiros vídeos da série. Os perfis no X também chegaram a ser banidos, mas retornaram. No TikTok, o grupo 1143 e seus membros já tiveram contas banidas. É o caso de Miguel Morato, responsável pelo marketing  do grupo. A cada conta que vai abaixo, é criada uma nova e assim sucessivamente. 

Heidi Beirich, defende a suspensão. “Concordo que se um grupo ou indivíduo espalha ódio ou extremismo, deve ser removido destas plataformas. Não creio que um número suficiente deles tenha sido removido neste momento e as empresas de media  social devem fazer um trabalho melhor”, afirma. 

“Elite do futuro em Portugal”

Afonso Gonçalves já disse que o objetivo da Reconquista é “radicalizar a política em Portugal” e “formar a elite do futuro” do país. A média de idade dos membros é de 23 anos e estar alinhado com a misoginia é uma dos requisitos. O que leva jovens a entrarem neste caminho da radicalização? Cátia Moreira de Carvalho, investigadora de extremismo e radicalização, afirma que os jovens em formação de personalidade são “mais predispostos” a aderirem a movimentos extremistas. 

“Está relacionado com perceção de ameaça e de ataque à identidade. É um regresso a um estado saudosista em que tudo estava compartimentalizado, sem grandes mudanças e, por isso, sem causar incerteza ou desconforto. A equidade de género ameaça a perceção de dominância de alguns homens e isso faz com que não se sintam confortáveis com estes novos papéis pouco definidos, de acordo com os seus padrões mentais”, diz ao DN. 

Cátia vê a situação como perigosa, especialmente para as mulheres. “Trazem para a agenda política e para o debate público temas que há muito deviam estar arrumados numa gaveta e que deviam ser consensuais na sociedade. Estes movimentos questionam os direitos das mulheres conquistados com muito custo e podem minar o futuro das mulheres que são agora jovens e um dia se tornarão adultas”, explica.

Discurso de ódio x liberdade de expressão

Na maior parte das vezes, a defesa está na liberdade de expressão, garantido pela Constituição. A discussão ganhou mais forma nos últimos dias, quando Mário Machado foi condenado a quase três anos de prisão efetiva por incitamento ao ódio contra mulheres no X, em processo movido pela vítima, Renata Cambra. Muitos dos extremistas referidos nesta reportagem defenderam o neonazi e evocaram a liberdade de expressão. Mas, onde acaba esse direito e começa o crime de ódio? 

A constitucionalista Teresa Violante diz que está legalmente prevista a punição de organizações. “A Constituição Portuguesa proíbe apenas as organizações de ideologia racista e não a expressão individual de opiniões racistas. Podemos reprimir socialmente o discurso de ódio ou racista, mas questão distinta é a sua repressão penal”, explica ao DN.

No entanto, a punição penal é possível. “A criminalização advém, essencialmente, quando o exercício da liberdade de expressão ofende bens jurídicos, colocando em perigo outras pessoas ou ofendendo a sua honra ou bom nome ou o seu direito à igualdade”, ressalta. Outra coisa é certa, segundo Violante. “Sendo certo que a liberdade de expressão não pode ser utilizada para propagar o ódio a grupos, um dos limites à liberdade de expressão é precisamente quando os seus titulares incorrem na prática de crimes”, argumenta. 

Tanto o 1143 como a Reconquista se inspiram em Adolf Hitler. Afonso Gonçalves fez um ensaio fotográfico com um bigode a imitar Hitler e a legenda “Weimar conditions require  Weimar solutions”. A frase é referência ao período anterior à ascensão do Partido Nazi na Alemanha. 

Ensaio de Afonso Gonçalves ao estilo "Hitler".

No caso do 1143, a ligação com o neonazismo é aberta. Na passada semana, no chat do Telegram, um dos integrantes sugeriu que o uso de símbolos nazis poderá afastar apoio à causa. A maior parte dos integrantes afastou a ideia. “Eu, no dia que me digam que não posso fazer ou defender o que acredito, no mesmo dia digo adeus ao grupo. Esses modos de operar é comum nos grupos de esquerda. Castrar a liberdade individual num grupo”, disse um deles, que não utiliza nome, posição partilhada por outros militantes que, com frequência, postam fotos e frases saudosistas a Hitler.

A constitucionalista Teresa Violante alerta que a ideologia nazi não é proibida em Portugal. “Organizações que perfilhem ideologia fascista são proibidas nos termos da Constituição, mas a ideologia nazi, individualmente, não é proibida e pode ser difundida ao abrigo da liberdade de expressão, se não constituir crime de discriminação ou de incitamento ao ódio ou à violência”, explica.

Grupo 1143 já realizou duas manifestações neste ano, uma em Lisboa e outra no Porto.
Foto:André Rolo / Global Imagens

Remigração, a nova estratégia

Campanha eleitoral para as legislativas feita, vitória alcançada e celebrada, os grupos, especialmente a Reconquista, agora querem pressionar o Chega [que elegeu 50 deputados] para ter ideias ainda mais radicais na área da imigração. A nova estratégia é falar em remigração - um termo mais soft para deportação em massa

No dia 12 de abril, Gonçalves partilhou um discurso de Ventura a falar no Parlamento da “grande invasão” de imigração e pontuou. “[Estamos a], um nadinha da REMIGRAÇÃO”. Membros da juventude do Chega já propagam a ideia nas redes sociais. Miguel Lourenço, do Chega de Guarda, escreveu na semana passada, num post  de André Ventura no X. “Remigração... mais cedo ou mais tarde falar-se-á nisso e o CH vai propor, aposto um dedo”. Outra ação em andamento é uma petição pública que conta mais de 16,5 mil assinaturas que propõe um referendo para as políticas migratórias para que o tema seja discutido na Assembleia da República (AR). No fim do texto online, está lá, a hashtag utilizada pelos grupos neonazi e nacionalista nas eleições: #CHEGA.

amanda.lima@globalmediagroup.pt