O antigo secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales é o primeiro a ser ouvido, já nesta segunda-feira, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o caso das gémeas luso-brasileiras, mas as audições prometem fazer correr tinta, com cada partido a querer levar à Assembleia da República mais de uma dezena de personalidades ligadas, à altura dos factos, a várias instituições. Na vontade de apurar por que motivo o Estado comparticipou a administração, através de uma alegada cunha, de um medicamento (Zolgensma) que custou 4 milhões de euros no total das duas crianças que o receberam, para tratar a atrofia muscular espinhal, nem o Presidente da República escapa aos deputados.
O Supremo Tribunal de Justiça confirmou no início deste mês que Marcelo Rebelo de Sousa não está “visado no respetivo processo, não existindo contra ele qualquer suspeição ou indiciação da prática de qualquer ato ilícito”. No dia anterior à divulgação deste comunicado, o Presidente da República afirmou que a justiça está a funcionar e que respeitará “o que a justiça for fazendo”.
Entretanto, já três partidos - Chega, IL e BE - pediram para ouvir o chefe de Estado no Parlamento e o PAN limitou-se a solicitar uma resposta por escrito.
No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa ainda não afastou nenhuma dessas possibilidades. “A minha posição, naturalmente, é esperar por aquilo que sejam as iniciativas do Parlamento, da Comissão Parlamentar de Inquérito e depois tomar a posição em função delas. Só posso ponderar depois de saber aquilo que vou ponderar”, considerou durante as comemorações do Dia de Portugal.
Para já, sabe-se que a CPI, que resulta de um “requerimento potestativo” apresentado pelo Chega, vai continuar, tanto por vontade do partido proponente como por parte de todos os outros.
Como é habitual em inquéritos que tenham como pano de fundo processos criminais, como é este caso, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, pediu um parecer à Procuradoria-Geral da República, que, segundo um despacho emitido pelo gabinete da segunda figura do Estado, concluiu que “a lei expressamente prevê a possibilidade de suspensão do processo de inquérito parlamentar mediante deliberação da Assembleia [da República]”.
Apesar de os deputados ainda poderem suspender as audições e qualquer averiguação neste contexto enquanto decorre o processo criminal, a verdade é que, segundo fonte próxima de Aguiar-Branco, os partidos continuam a solicitar documentos e a mostrar-se empenhados na CPI, o que sugere que não haverá nenhum bloqueio à audição das dezenas de pessoas que estão na calha. De qualquer modo, o despacho será votado a 17 de junho, no mesmo dia em que é ouvido Lacerda Sales.
O PS quer ouvir o antigo secretário de Estado, que agora inaugura a CPI e já foi constituído arguido no processo, e o filho de Marcelo Rebelo de Sousa, Nuno Rebelo de Sousa, na qualidade de ex-presidente da Câmara Portuguesa de Comércio de São Paulo. Fora das audições socialistas ficam Marcelo Rebelo de Sousa e a antiga ministra da Saúde Marta Temido, que exercia funções em 2019, ano em que as duas crianças chegaram ao Hospital de Santa Maria para que lhes fosse administrado o Zolgensma. Mas quase todos os outros partidos não a dispensam.
Em torno de Marcelo, Chega e IL também querem ouvir o chefe da Casa Civil da Presidência da República, Fernando Frutuoso de Melo, e a assessora do chefe de Estado para os Assuntos Sociais, Maria João Ruela.
O partido liderado por André Ventura, que preside à CPI através do deputado Rui Paulo Sousa, quer ainda levar ao Parlamento a atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, que ocupou o cargo de administradora no Hospital de Santa Maria já depois do momento em que o medicamento foi administrado.
O Livre, com o deputado Paulo Muacho, propõe a audição do presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, do ex-presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) Daniel Ferro, do diretor clínico do CHULN, Luís Pinheiro, e da presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, Filomena Rosa.
O PCP, por seu lado, só pretende o depoimento do presidente do Infarmed, optando por provas documentais.
O BE, representado por Joana Mortágua, entre as duas dezenas de pessoas que quer ouvir no Parlamento inclui também a equipa da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), com Maria de Lurdes Lemos e Marta Gonçalves, ou também os neuropediatras Carla Mendonça e José Pedro Vieira e a médica que acompanhou as gémeas Teresa Moreno.
O CDS, para além dos antigos governantes, quer ouvir a ex-secretária de Estado Adjunta e da Saúde Jamila Madeira, a secretária pessoal de Lacerda Sales, Carla Silva, e o ex-ministro da Saúde Manuel Pizarro.
No rescaldo da constituição da CPI fica ainda uma nota para outra gincana política, relacionada com o acesso a comunicações pessoais e informações clínicas pedidas pelo Chega, partilhadas por WhatsApp e Messenger, ficando o auditor jurídico da Assembleia da República de ainda dar um parecer sobre a utilização deste tipo de registos. De acordo com a deputada do Chega Cristina Rodrigues, o pedido do partido exclui questões da vida privada dos visados, resumindo as “comunicações ao pedido de concessão de tratamento das gémeas”.