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Internacional
14 setembro 2024 às 00h02
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Os mísseis pedidos por Zelensky que levam Putin a ameaçar o Ocidente

Rússia repete na ONU que decisão de Londres e Washington sobre mísseis de longo alcance equivale à NATO fazer parte da guerra.

A pressão para que britânicos e norte-americanos tomem ou não a decisão de permitir que Kiev use armamento ocidental a atingir solo russo atingiu um novo patamar. Depois de o líder russo, na véspera, ter equiparado tal autorização a que a NATO estivesse na prática em conflito com o seu país, o seu embaixador nas Nações Unidas fez eco do aviso de Vladimir Putin. Em Kiev, Volodymyr Zelensky disse que as suas forças necessitam das armas de longo alcance para “mudar o curso da guerra” e “forçar a Rússia a procurar a paz”. Os mísseis anglo-franceses Storm Shadow/SCALP e os mísseis norte-americanos ATACMS, já usados pela Ucrânia em território ocupado pela Rússia, são a peça central desta escalada, em resultado das notícias de que as forças russas irão começar a usar centenas de mísseis balísticos iranianos.

As ameaças por parte de Moscovo são recorrentes de cada vez que se diz que o Ocidente está a cruzar uma linha vermelha no apoio à Ucrânia. Quando se noticiou a possibilidade dos referidos mísseis serem transferidos para Kiev, no ano passado, a propagandista Margarita Simonyan sugeriu na TV que era altura de se enviar para o Reino Unidos os dois agentes responsáveis pelo envenenamento do ex-agente duplo Sergei Skripal. O ex-presidente Dmitri Medvedev já ameaçou tantas vezes dar uso ao arsenal nuclear que ninguém o leva a sério. E o homem que, em última instância, decide? Vladimir Putin também já fez várias advertências no passado, mas por norma usa uma linguagem mais contida. Desta vez optou pela dramatização. “Se a decisão de levantar as restrições for realmente tomada, isso significará que, a partir desse momento, os países da NATO estão a conduzir uma guerra direta com a Rússia”, disse o embaixador russo Vassily Nebenzia no Conselho de Segurança da ONU, reiterando a mensagem do seu líder na véspera. “Nesse caso, teremos, como compreendem, de tomar as decisões pertinentes, com todas as consequências que os agressores ocidentais teriam.” 

Moscovo fez saber há dias que se prepara para rever a sua doutrina nuclear e estabelece que a Rússia pode utilizar armas nucleares em caso de ataque nuclear por parte de um inimigo ou se um ataque convencional “ameaçar a existência do Estado”.

A Ucrânia já usou armamento ocidental em território russo, quer na incursão surpresa iniciado em agosto em Kursk, quer em bombardeamentos limitados e autorizados pelos EUA na região fronteiriça de Kharkiv quando, em maio, as forças russas tentaram uma nova invasão naquela região do nordeste do país. Além disso, em maio, o presidente francês Emmanuel Macron já dera autorização para que os SCALP fossem utilizados em território russo, desde que visando alvos militares usados para atacar a Ucrânia. 

Os especialistas militares não acreditam que o levantamento das restrições vá mudar o rumo da guerra, até devido ao número limitado de unidades ao dispor, e do desequilíbrio em favor de Moscovo no que concerne ao número de militares, de peças de artilharia e de munições ao dispor - mas traria óbvias vantagens para Kiev. Ouvido pela BBC, Matthew Savill, do think tank Rusi, diz que a liberdade de ação ucraniana quanto aos alvos militares colocaria um dilema à Rússia no que respeita ao posicionamento das defesas aéreas, o que poderia facilitar a passagem dos drones ucranianos. Por outro lado, Savill crê que se os Storm Shadow avançarem, os ATACMS acabarão por ser desbloqueados.

Ao The Times, Ben Barry, do britânico International Institute for Strategic Studies explica quais os pontos fortes dos supersónicos mísseis norte-americanos, conhecidos pela sua precisão: “Têm uma ogiva concebida para explodir à superfície, pelo que são muito bons para alvos como baterias de artilharia, quartéis-generais de divisões, paióis e instalações de mísseis antiaéreos.” Tendo em conta o Storm Shadow, disse: “É como comparar uma faca e um garfo: pode fazer-se um pouco com um ou outro, mas é melhor usar os dois em conjunto.” George Barros, do norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), identificou nada menos do que 245 alvos militares que a Ucrânia poderia atingir com os ATACMS e disse que “a lista é conservadora”, uma vez que “identifica apenas uma parte de todos os alvos militares” ao alcance daqueles mísseis balísticos.

E o que faz o míssil de cruzeiro anglo-francês? Lançado de aviões, pode voar a uma altitude tão baixa quanto 30 metros e dizem os peritos que são ideais para penetrar em bunkers, atingir depósitos de combustível, postos de comando e centros logísticos. Fora da equação estão os mísseis Taurus, de fabrico germânico. O chanceler Olaf Scholz voltou a rejeitar tal hipótese, contra a opinião dos parceiros de coligação e dos democratas-cristãos, na oposição. O social-democrata teme que tal medida eleve o conflito para outro patamar. 

Foi contra esta cautela que o presidente ucraniano voltou a manifestar-se na sexta-feira, classificando a situação de “humilhante para o mundo democrático”. Acusou o Ocidente de ter demasiado “medo” para sequer encarar a hipótese de abater os mísseis e drones russos que se dirigem para o seu território. “Se os aliados estão a abater conjuntamente mísseis e drones no Médio Oriente, porque é que ainda não existe uma decisão semelhante para abater conjuntamente mísseis russos e Shaheds [drones iranianos] nos céus da Ucrânia? Têm medo até de dizer ‘estamos a trabalhar nisso’”. Sobre as armas de longo alcance disse que “qualquer pessoa que veja no mapa a partir de onde a Rússia ataca, onde treina forças e mantém reservas, onde estão localizadas as instalações militares e quais as rotas de abastecimento que utiliza, qualquer pessoa que veja tudo isto compreende obviamente porque é que a Ucrânia precisa” delas.

Comparativo

Míssil M57A1 ATACMS lançado de um sistema HIMARS. (EXÉRCITO DOS EUA/DVIDS)

Storm Shadow/SCALP-EG 

Origem
Projeto anglo-francês datado de 1996 pelas empresas British Aerospace e Matra, é hoje fabricado pelo consórcio MBDA detido pela Airbus, pela britânica BAE Systems e pela italiana Leonardo.

Características
Como o nome completo de versão francesa indica (Système de Croisière Conventionnel Autonome à Longue Portée - Emploi Géneral), é um míssil de cruzeiro de longo alcance. É lançado do ar.

Velocidade
Ao atingir 1163km/h fica no limiar abaixo do sónico.

Ogiva
450 quilos.

Alcance
Dependendo da versão, 250 quilómetros ou mais do dobro. A versão enviada até agora era a de menor alcance.

Custo unitário
850 mil euros, segundo dados de 2023 do Institut Français des Relations Internationales.

ATACMS
Origem
O conglomerado norte-americano Ling-Temco-Vought (entretanto extinto) desenhou o míssil balístico em 1986, e mais tarde a Lockheed Martin fabricou-o.

Características
O MGM-140 Army Tactical Missile System é um míssil balístico tático lançado de sistemas de lançamento múltiplo de superfície (M70 MLRS ou HIMARS).

Velocidade
Atinge a velocidade máxima de 3700km/h, ou seja, cerca de três vezes a velocidade do som.

Ogiva
242 quilos

Alcance
Consoante a versão, até 165 quilómetros ou até 300 quilómetros.

Custo unitário
Cerca de 700 mil euros, segundo dados relativos à aquisição pelo Departamento de Defesa dos EUA em 2020.

cesar.avo@dn.pt