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Morte de Odair Moniz
25 outubro 2024 às 23h47
Atualizado em 25 outubro 2024 às 16h56
Leitura: 11 min

Queixa-crime contra Ventura e Pinto junta mais de 50 mil subscritores. MP abriu inquérito

50 mil cidadãos já subscreveram a queixa contra o presidente do Chega, o líder parlamentar e um assessor do partido. Subscritores iniciais incluem Francisca Van Dunem, a jurista Teresa Beleza, ex-coordenadora do Observatório do Racismo, Miguel Sousa Tavares, Vhils e Sérgio Godinho. Ministério Público abriu inquérito.

Desde que esta sexta-feira o DN noticiou a existência de um projeto de queixa-crime, elaborado por um grupo de cidadãos, contra o presidente do Chega, André Ventura, o líder parlamentar e um assessor do partido - Pedro Pinto e Ricardo Reis -, por declarações a propósito da morte do cidadão Odair Moniz, baleado por um agente da PSP, vários leitores contactaram o jornal a perguntar como podem juntar-se à iniciativa.

A resposta, dada ao DN pelo grupo inicial de cidadãos que elaborou a queixa, é que a partir da tarde desta sexta-feira há a possibilidade de subscreverem a queixa online. Até às 23H45, já juntara mais de 50 000 subscritores.

Entretanto o Ministério Público, em resposta à pergunta que o DN lhe dirigiu esta quinta-feira, anunciou que abriu inquérito às declarações dos membros do Chega, o qual "corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Lisboa". A resposta da Procuradoria Geral da República não esclarece qual o crime ou crimes cuja suspeita está em causa no inquérito.

Entre os subscritores iniciais da queixa, como o DN revelou esta sexta-feira, está a ex-ministra da Justiça e da Administração Interna e ex-procuradora-geral distrital de Lisboa Francisca Van Dunem, que disse ao jornal: “Atingiu-se um limite. Nenhum democrata pode deixar de se indignar com estas declarações. A minha consciência obriga-me a tomar uma atitude em relação a quem se aproveita deste clima para fazer apelos ao ódio e a mais violência. Vou subscrever a queixa, que espero que seja subscrita pelo maior número possível de pessoas.” 

Ao nome de Van Dunem juntou-se ao início da tarde desta sexta-feira o da também jurista Teresa Beleza, catedrática jubilada e ex-coordenadora do Observatório do Racismo e Xenofobia.

"Foi com alguma surpresa, apesar dos antecedentes, e muita indignação que ouvi as declarações de deputados do Partido Chega sobre a morte de Odair Moniz, abatido a tiro pela Polícia no seguimento de uma aparente fuga a uma ordem de parar o veículo que conduzia. As circunstâncias exactas do sucedido não são ainda claras, mas as afirmações de André Ventura e Pedro Pinto são de uma gravidade inaceitável", disse Teresa Beleza ao DN. "A liberdade de expressão, como todas as liberdades, tem limites. E um deles é a inadmissibilidade de discursos de incitamento ao ódio, com evidentes contornos de racismo e xenofobia, como transparece do que foi publicamente dito por estes dois deputados à Assembleia da República. Não se trata já apenas de populismo eleitoralista, mas de ilegítimo ultrapassar de barreiras que um sistema democrático de Direito, como o português, impõe a todos nós, a bem da protecção da dignidade e dos direitos de todos e de cada um."

Também o ex-ministro da Educação João Costa e as ex-secretárias de Estado da Igualdade Catarina Marcelino e Rosa Monteiro são subscritores. 

"Chega a um ponto em que a inação se torna cúmplice"

"As declarações de André Ventura, de Pedro Pinto e do assessor do Chega Ricardo Reis configuram, no meu entender, práticas claras dos crimes de incitamento à prática de crimes e à desobediência coletiva e ofensa à memória de pessoa falecida. Estamos muito para lá dos limites da liberdade de expressão, porque se trata, na verdade, de pôr em causa os alicerces do Estado democrático. Chega a um ponto em que a inação se torna cúmplice", disse João Costa ao DN.

Igualmente subscritores de primeira hora são os jornalistas Mafalda Anjos e Rodrigo Pratas, os advogados Ricardo Sá Fernandes, Garcia Pereira e Miguel Prata Roque, os juristas João Miranda, Romualda Fernandes (ex-deputada) e Ricardo Castanheira, assim como os académicos Vicente Valentim (autor de Como a direita radical se normalizou), Cristina Roldão e Sheila Khane, a professora Luísa Semedo, os comentadores Miguel Sousa Tavares, Blessing Lumueno, Maria Castello Branco, Daniel Oliveira, João Maria Jonet e Pedro Marques Lopes, as apresentadoras Rita Ferro Rodrigues e Anabela Mota Ribeiro, os escritores José Eduardo Agualusa e Pedro Vieira, as atrizes Beatriz Batarda e Cláudia Semedo, os músicos Sérgio Godinho e Eva Rap Diva, a empresária Miriam Taylor, o humorista Hugo Van Der Ding, a programadora cultural Joana Gomes Cardoso, o radialista Nuno Markl e o consultor de marketing Vasco Mendonça. 

Em causa na queixa, como o DN noticiou, está o que Pedro Pinto disse na noite de quarta-feira na RTP3, durante um debate com o líder da bancada parlamentar do BE, Fabian Figueiredo. A propósito da morte de Odair Moniz, do facto de ter sido baleado mortalmente por um agente da PSP e dos comentários que o presidente do seu partido já fizera sobre o caso - nomeadamente propondo, logo na terça-feira, “uma condecoração” para o polícia, Pinto afirmou: “Se calhar, se [os polícias] disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem”.

Quanto a André Ventura, logo na terça-feira 22 de outubro tinha, perante câmaras de TV, afirmado, sobre o agente da PSP que baleou mortalmente o cidadão Odair Moniz: ‘Nós não devíamos constituir este homem arguido; nós devíamos agradecer a este polícia o trabalho que fez. Nós devíamos condecorá-lo e não constituí-lo arguido, ameaçá-lo com processos ou ameaçar prendê-lo’. No mesmo dia, às 18H50,  na sua conta de Twitter, o presidente do Chega reiterou a mesma afirmação, comentando um título do Expresso que a reproduzia: "Num país normal todos pensariam o mesmo, mas parece que se protegem mais os criminosos do que os polícias”.

Ainda no mesmo dia e igualmente no Twitter, André Ventura partilhou, às 22H33 de 22 de outubro, um vídeo no qual, com um volume intitulado "Estudos sobre a Constituição" nas mãos, afirma: "Obrigado, obrigado. Era esta a palavra que devíamos a dar ao polícia que disparou sobre mais este bandido na Cova da Moura (...). Tentou esfaquear polícias, estava a fugir deles, e estava a cometer crimes com toda a probabilidade. (...) Sim, o polícia esteve bem."

Até agora não existe, como tem sido noticiado ao longo da semana, uma versão fixada dos acontecimentos que levaram à morte de Odair Moniz. Estando a investigação da Polícia Judiciária a decorrer, afirmar categoricamente, como fez o presidente do Chega (com base, em parte, no comunicado inicial da PSP), que Odair Moniz "tentou esfaquear polícias e estava a cometer crimes com toda a probabilidade" e apelidá-lo de "bandido", constitui, na visão dos subscritores da queixa, a cujo projeto inicial o DN teve acesso, "acusações falsas e inventadas", visando "incendiar os ânimos sociais, provocando tumultos sociais, raiva, ressentimento e violência"

Diz ainda o texto: "Nenhum ser humano – ainda para mais quando ainda nem sequer foi enterrado e a família está a velar o seu morto e a viver o seu luto – pode ser caraterizado, humilhado e despersonalizado como “bandido”, apenas para fomentar uma maior adesão popular às mentiras que determinado indivíduo difunde, designadamente, em redes sociais e outras plataformas de comunicação."

Assim, além dos crimes de “instigação à prática de crime”, “apologia da prática de crime”, “incitamento à desobediência coletiva” e "associação criminosa" - já elencados na notícia do DN desta sexta-feira e todos públicos (ou seja, qualquer pessoa tem legitimidade para deles participar às autoridades, como estas têm legitimidade para abrir inquérito sem que haja participação) -, a queixa inclui também o crime de "ofensa à memória de pessoa falecida". Este crime, previsto no artigo 185º do Código Penal, é cometido por quem, "por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida", e depende da queixa de quem tiver legitimidade para a fazer - no caso, a família de Odair Moniz. 

Em reação à notícia do DN desta sexta-feira, André Ventura assegurou que no caso de o Ministério Público o constituir arguido solicitará "logo" o levantamento da imunidade parlamentar. Comentou, porém: "É muito negativo numa democracia quando o debate político se transfere para os tribunais. Ou seja, quando há uma parte do país que acha que a solução para uma contenda política é usar os tribunais, é tentar prender os opositores."

Ventura e Chega processam jornalistas e políticos

Recorde-se que André Ventura e o partido foram condenados, em tribunal cível, num processo que terminou em 2021 no Supremo Tribunal, por ofensas à honra e segregação racial, depois de terem apelidado de "bandidos" uma família negra residente no bairro da Jamaica. Em reação à notícia do DN sobre essa condenação, Ventura processou, também em tribunal cível, o jornal e a jornalista responsável pela notícia (a mesma que assina a presente), tendo perdido a ação

Ventura e o Chega têm vindo a processar outros jornalistas - caso de Paulo Baldaia, que está a braços com dois processos cíveis, por textos no DN e no Expresso.

Mas o partido também recorre a processos criminais. Em 2022, 10 deputados do Chega apresentaram queixa-crime contra a então coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, por declarações que estava fez na noite das legislativas de 2022. Catarina Martins afirmou "cada deputado racista eleito no Parlamento português é um deputado racista a mais e cá estaremos para os combater todos os dias". O processo acabaria arquivado.


(em atualização)