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Registo cadastral
28 setembro 2024 às 00h00
Leitura: 9 min

Portugal em “situação de faroeste”: mais de metade do país tem terras sem dono conhecido

Situação pode levar a constrangimentos, incluindo na prevenção de fogos e na contratação de seguros para propriedades. Há sete anos que os Governos tentam agilizar o processo, mas os levantamentos feitos pelo Balcão Único do Prédio não passaram a cadastro. Sobreposição de entidades contribui para o impasse.

Dos 278 municípios de Portugal Continental, 153 ainda não têm registo cadastral dos seus terrenos. Ou seja: não se conhecem, oficialmente, as configurações geométricas (e a área), nem quem são os donos das terras nesses locais, que representam 55% do território.

A maior parte, sobretudo de caráter rústico, localiza-se no norte do país, onde o levantamento é mais difícil por várias razões, entre as quais, aponta Paulo Pimenta de Castro, presidente da Acréscimo - Associação de Promoção ao Investimento Florestal, está a própria natureza do terreno, “composto sobretudo por minifúndios”.

No entanto, isso não justifica tudo, segundo o também engenheiro silvicultor. “Já há uma parte considerável do território cadastrado, mesmo em termos de minifúndio, que tem a ver com toda a rede de infraestruturas, como a rede ferroviária ou a rede de telecomunicações”, explica, criticando: “Na prática, era apenas preencher as partes que ficavam no meio, digamos assim, dessas retas constituídas por este tipo de infraestruturas. Não se faz porque não se quer.”

Segundo o mapa disponível no site da Direção-Geral do Território (DGT), há apenas sete concelhos já mapeados a norte do Distrito de Aveiro (Paredes, Penafiel, Santa Marta de Penaguião, Mesão Frio, Peso da Régua, Lamego e Mogadouro). De resto, a carta cadastral da maior parte dos concelhos nessa região é desconhecida - e na Região Centro só algumas zonas da Beira Interior estão registadas. Tudo o resto é uma incógnita, à exceção do sul, onde a cobertura da DGT já é maior.

Rui Pedro Julião, investigador na Universidade Nova de Lisboa, acrescenta ainda que é “fundamental” e “imprescindível” conhecer a estrutura das propriedades em Portugal. Mas a “falta de capacidade financeira do Estado para investir nesse processo, aliada à complexidade do mesmo, e, mais recentemente, ao crescente desconhecimento que há sobre a propriedade”, acabam por dificultar o processo. “Ou seja”, especifica, “as pessoas foram falecendo e os herdeiros, muitas vezes, nem sabem onde se localizam as propriedades”.

Isto, diz Luís Vidigal, especialista em governação eletrónica e cronista do DN, origina uma “situação de faroeste”, em que não se sabe nada sobre esses territórios. E as implicações são várias, podendo interferir em diversas áreas, desde as “políticas de Educação à Saúde” até, por exemplo, à contratação de seguros para propriedades.

No entanto, mais do que organizar o território, o cadastro é também importante para que se possa saber quem são os proprietários, explica Paulo Pimenta de Castro. Em caso de incêndios, como aqueles que assolaram Portugal na semana passada, é importante saber “quem é o público-alvo” em cada território para que possa haver “responsabilidade” nessas zonas. Mas “não pondo aí o foco”, acrescenta o engenheiro, “pode olhar-se, até, para a questão de incentivos comunitários”. 

“Esse, de facto, é um problema” que se verifica há vários anos e que, no passado, já obrigou o Estado a fazer um parcelário para poder receber fundos da Política Agrícola Comum. “Aí tiveram de saber exatamente em que parcelas é que era um objeto de financiamento” e quando se fez o parcelário para “cereais e vinha” poder-se-ia “ter feito também o da floresta”, sendo que o parcelário não é “o cadastro propriamente dito”, mas apenas “uma indicação”. Portanto, reitera: “Não se tem cadastro porque não se quer.”

Além de Portugal, apenas a Grécia não tem também cadastro. Mas aí, explica Paulo Pimenta de Castro, “a situação é menos problemática”, uma vez que a igreja tem uma grande parte dos terrenos do país.

Governo criou estrutura para tornar o registo mais rápido

Para tentar resolver este problema, o Governo decidiu criar um sistema de informação cadastral simplificada. Tal seria feito através do Balcão Único do Prédio (BUPi), criado em 2017 como um projeto-piloto em dez concelhos, mas, entretanto, alargado a todo o país do norte e centro.

Tutelado pelo Ministério da Justiça, o BUPi funciona gratuitamente, com a adesão a ser feita pelos municípios de forma voluntária. Há, então, duas possibilidades de fazer o registo: online, no site do BUPi, ou presencialmente, com técnicos no terreno. Caso a identificação seja feita online, o processo é depois encaminhado para um técnico habilitado, que validará.

A intenção, estipulada logo aquando da constituição do BUPi (que constitui uma estrutura de missão para cadastrar o território), era garantir a “interoperabilidade” entre plataformas. Contudo, teve o efeito contrário, uma vez que o Instituto de Registos e Notariado (IRN), a DGT e a Autoridade Tributária (AT) já tinham, elas próprias, competências sobre o tema.

Apesar da intenção do Governo, de tornar o processo mais célere, tal não tem acontecido. Ao que o DN apurou, nenhuma informação recolhida pelo BUPi foi, até agora, transformada em cadastro. Isto porque, antes, o processo terá de ser harmonizado com... o IRN, a AT e a DGT. Segundo sabe o DN, só assim se poderá evitar a construção de um cadastro paralelo ao existente no Sistema Nacional de Informação Cadastral. Nada evita, no entanto, que haja sobreposições de proprietários num mesmo terreno após um primeiro levantamento, algo que depois terá de ser resolvido. Ou seja, diz Rui Pedro Julião, “é algo meramente declarativo que não pode, naturalmente, substituir o verdadeiro cadastro da propriedade”.

O DN enviou perguntas ao Ministério da Justiça (MJ) sobre o funcionamento até agora e o futuro do BUPi (uma vez que a atividade deste está prevista apenas até 2025). Nenhuma resposta chegou até à hora do fecho desta edição.

Terras sem dono podem passar para o Estado em 2026

Na complexa equação que é o ordenamento do território português, entra ainda um outro fator: a partir de 2026, o Governo poderá ficar com estas “terras de ninguém”. Mas, em casos excecionais, estas terras podem passar já para as mãos do Estado.

Em causa está uma alteração ao regime jurídico do BUPi, publicado em 2023, que previa que o Estado pudesse vir a ficar com estes terrenos. Segundo disse o Ministério da Justiça ao Público em janeiro deste ano, isto, se os terrenos estiverem localizados em “áreas territoriais prioritárias de intervenção”.

Em 2021, o Executivo do PS decidiu fazer um diagnóstico, estudar possibilidades e propor medidas que facilitassem a gestão dos terrenos rurais. Para isso, criou o Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica (GTPR). Em julho de 2023, a equipa, coordenada por Rui Gonçalves, ex-secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas, entregou um relatório com propostas para resolver, entre outros, o problema das terras que são herdadas após a morte dos proprietários. No documento, considerava-se que o mercado sucessório “convida ao imobilismo”, o que leva muitas vezes a um abandono de terras, e dificulta, depois, a elaboração do cadastro.

Mas, com a queda do Governo e a dissolução do Parlamento, o relatório ficou em stand-by, competindo ao atual Executivo retomar o tema. Entretanto, o GTPR cessou funções.