Medidas contra a corrupção
15 abril 2024 às 11h24
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Do lobby às offshore: ministra da Justiça começa a ouvir partidos sobre a corrupção

As reuniões devem durar dois meses, segundo anunciou o Governo. No final, haverá um conjunto de propostas prontas a serem aplicadas. O tema é uma prioridade e une todos, da esquerda à direita.

Uma missão: auscultar “todos os partidos” com assento parlamentar para reunir um conjunto de propostas. E uma protagonista: Rita Júdice, 50 anos, ministra da Justiça.

O anúncio foi feito pelo primeiro-ministro, no dia da tomada de posse (2 de abril), durante o seu discurso. Dizendo que “o combate tem de ser nacional” e “mobilizar todos”. Dizia Luís Montenegro na sua intervenção: “Importa reconhecer que há propostas apresentadas pelos vários partidos parlamentares que merecem ser igualmente estudadas, discutidas e consideradas. Ninguém tem o monopólio das melhores soluções. O contributo de todos é essencial.”

Estava dado o primeiro passo por parte do Governo para incluir propostas de outros nas suas - algo que acabou por fazer no Programa do Executivo, integrando seis dezenas de medidas da oposição.

Dias depois, aquando da apresentação do Programa do Governo, o ministro da Presidência anunciava que a intenção é aprovar “um pacote de medidas que seja ambicioso, eficaz e consensual” para poder combater a corrupção. “O objetivo é ter, no prazo de dois meses, uma síntese de propostas, medidas e iniciativas que seja possível acordar e consensualizar, depois de devidamente testada a sua consistência, credibilidade e exequibilidade”. E reiterou o que Montenegro já dissera: “Ninguém tem o monopólio das melhores soluções.” E, a partir dessa junção de medidas, a intenção do Governo, dizia o primeiro-ministro na tomada de posse, é “partir para a aprovação das respetivas leis”, sejam elas de iniciativa própria ou do Parlamento.

A promessa deixada por António Leitão Amaro foi que, logo após a investidura do Executivo, a ministra da Justiça comece a abordar os partidos para a marcação de reuniões, algo que deverá acontecer já a partir desta semana.

O combate à corrupção é uma prioridade transversal a todos os partidos, algo que está plasmado nos programas eleitorais, da esquerda à direita.

Regulamentar o lobby é tema de consenso

Numa Legislatura que se adivinha difícil, o diálogo será a chave para Montenegro e os seus ministros conseguirem aprovar diplomas. O próprio primeiro-ministro já o assumiu em diferentes ocasiões, o Presidente da República também já aconselhou ao diálogo entre Governo e oposição.

E, à primeira vista, há uma matéria que todos (ainda que com diferentes formulações) incluem nas suas listas: a regulamentação do lobby (prática que consiste em pressões feitas por um determinado grupo ou indivíduo a favor dos seus interesses, geralmente associada a crimes de corrupção e tráfico de influência).

O tema já esteve na agenda parlamentar, antes. Mas, por este ou por aquele motivo, nunca chegou a ser legislado. Antes da dissolução da Assembleia da República, o assunto voltou à mesa de discussões e houve, até, projetos do PS, PSD, Il e PAN a ser aprovados (com votações diferentes). Seguiram para a discussão na especialidade, mas com a queda do Governo (e, depois, com a dissolução do Parlamento), o tema voltou a ser deixado de parte.

Entretanto, nos primeiros dias de trabalho da atual Legislatura, o PCP já anunciou medidas que, previsivelmente, levará para as reuniões com a ministra. Na passada quarta-feira, o deputado António Filipe anunciou que o partido propôs que seja imposta uma proibição a transferências para empresas offshore que não cooperem com autoridades nacionais. Além disso, o partido propôs também que seja aumentado para cinco anos o chamado “período de nojo”, impedindo, durante cinco anos, que os políticos assumam funções em empresas que tenham tutelado.

“Vale de pouco” falar-se sobre o tema, se depois “se permite que centenas de milhões de euros sejam perdidos pelo fisco em manobras de ocultação de proventos por via do recurso a paraísos fiscais”, atirou, sugerindo também que, além de definir quais os países ou regiões que não cooperem com as autoridades portuguesas, o Estado aplique uma taxa de 35% para transações “que sejam feitas para paraísos fiscais”.

Os comunistas querem, ainda, proibir o Estado de “recorrer à arbitragem para diminuir litígios resultantes da contratação pública”.

O que quer o Governo?

Ao longo das quase duas centenas de páginas do Programa do Governo, várias são as referências feitas à Justiça e ao combate à corrupção. A agenda governativa é definida como “ambiciosa, célere e idealmente consensual”.

Entre as medidas propostas pelo Executivo está, naturalmente, a regulamentação do lobby. Mas não só. O Governo quer, entre outras, instituir a pegada legislativa dos seus diplomas (permitindo perceber cada etapa do processo legislativo); alargar o “período de nojo” para empresas privadas, relacionadas com a área de atuação dos ex-políticos (como propõe o PCP); reformar entidades como o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) ou a Entidade da Transparência - algo que Luís de Sousa elogiou, em entrevista ao DN.

Certo é que, no final destes dois meses de reuniões, o Governo já sabe que, sejam quais forem as medidas postas em prática, a associação cívica Transparência Internacional estará a monitorizá-las, como foi anunciado no início do mês.

Quem é a nova ministra da Justiça?

Rita Júdice, 50 anos, é advogada. A nova responsável pela pasta da Justiça exerceu durante 25 anos no escritório do pai, a PLMJ, de onde saiu no ano passado. Eleita pela primeira vez deputada nas últimas eleições, a agora ministra é especialista em Direito Imobiliário. Na PLMJ, foi, aliás, coordenadora desta área. E foi também responsável por acompanhar vários processos de Autorização de Residência para Atividade de Investimento em Portugal, os chamados Vistos Gold.

Numa reportagem de 2014 do jornal espanhol ABC, Rita Júdice confirmava que a China era o principal país dos interessados neste regime. Numa entrevista ao Diário Económico, em 2010, queixava-se do sistema judicial, que dizia ser “um labirinto” que demovia “muitos clientes” de continuarem a investir no país.

Chegou à política depois de ter sido convidada a colaborar com o Conselho Estratégico Nacional do partido. Na convenção feita pela AD, em janeiro deste ano, falou sobre pobreza, competitividade económica e habitação. A Justiça não foi abordada nesse discurso.

Luís de Sousa: “Não estamos perante um problema de moralidade. Estamos perante um problema social, de cariz organizacional"

Luís de Sousa, investigador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, afirma que, além de combater, é também preciso repensar o modelo das instituições de fiscalização e controlo.

Na sua opinião, o que se pode fazer em termos de medidas de combate à corrupção?
Em primeiro lugar, é preciso entender que não estamos perante um problema de moralidade. Estamos perante um problema social, de cariz organizacional, que tem a ver com culturas organizacionais e atitudes das pessoas em relação a este tipo de práticas e comportamentos. É um tema de valência. As pessoas, tal como no desemprego ou no combate à pobreza, querem menos disso. Querem menos corrupção, querem uma resposta política adequada que não as faça passar por esse tipo de situações, como solicitações de subornos. É preciso, também, desmistificar. Há outras formas de corrupção que nada têm a ver com o pagamento de subornos, mas sim com a promiscuidade entre pessoas que têm cargos de decisão ou politicamente expostos e os grupos económicos. Essa é que tem sido a corrupção que tem vindo a abalar a opinião pública nos últimos anos, sobretudo após a crise financeira, quando vieram à luz uma data de conluios e promiscuidades. Trouxeram um enorme prejuízo direto e indireto aos contribuintes. E é exatamente isso que se precisa perceber: que é um problema que requer uma política pública. Para a desenhar é também preciso pensar que o Governo fará a sua parte, que não se combate nem casuisticamente, nem pontualmente. É verdade que, de há uns anos para cá, os Governos têm vindo a incluir o tema do combate à corrupção nos seus programas, mas muito vagamente.

Como deve ser feito esse combate?
O combate, prevenção e repressão deve ser feito com base em três pilares: conhecimento; pensado de forma integrada, porque não há balas de prata para este problema; e, por fim, com inovação. Conhecimento, por um lado, porque há toda uma narrativa sobre a especialização na Convenção das Nações Unidas de Combate à Corrupção, especialização na prevenção, especialização na repressão, especialização até na educação, na investigação que se faz na Europa. De forma integrada porque estamos a falar de um sistema, ou de uma engrenagem com várias componentes. Não há um autor único. Temos de pensar com tudo aquilo que temos. E, por fim, com inovação porque é preciso uma reforma. O programa da AD - e gostei de ver isso - incluía uma proposta sobre a reforma institucional das entidades públicas especializadas na transparência e prevenção da corrupção, designadamente o Mecanismo Nacional Anticorrupção, a Entidade da Transparência e a Entidade das Contas, baseada na avaliação do seu desenho institucional, formato, competências e desempenho. Podíamos ficar só pelo desempenho, mas temos de discutir também o desenho. Será que faz sentido a Entidade das Contas estar sob alçada do Tribunal Constitucional? Não, nunca na vida.

Indo nessa ótica da inovação de que fala, deixe-me introduzir outro tema: o lobby. Os dois maiores partidos (PS e PSD) concordam na necessidade de regular esta prática. Deve essa ser outra prioridade?
Vamos ter de encontrar algumas respostas inovadoras e essa questão vai nesse sentido. Não é tudo só sobre como pôr o sistema a funcionar, o que temos de capacitar ou aumentar em termos de especialização, que conhecimento de setores de risco temos de ter. A inovação passa também por processos legislativos que toquem áreas que já venham sendo discutidas há algum tempo, mas também com um processo legislativo pouco adequado. Ou seja, não se ouvem peritos, não se fazem estudos prévios. Mas toda a gente dá palpites sobre a regulação do lobby. Gostava de saber quantos são os atores - e, digo, legisladores - que estão nas comissões a avaliar essas propostas, que estudaram a matéria, que têm estudos comparados com outros regimes feitos lá fora. E assim continuamos. Muito de dedo molhado no ar para ver de onde sopra o vento. Não se faz avaliação, nem legislação assim. Mais do que haver diferentes perspetivas sobre a questão do lobby - porque às vezes anda-se ali numa discussão estéril - é saber se essas perspetivas se enquadram com regimes existentes noutros países, quais as vantagens, desvantagens e resultados conseguidos. E é isso que nunca é dito. As verdadeiras questões ficam à margem.