Tensão
19 janeiro 2024 às 07h38
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Irão critica ataque de retaliação do Paquistão e lembra relação “fraternal”

Depois de Teerão ter atacado alegados terroristas em solo paquistanês, Islamabad respondeu na mesma moeda, bombardeando supostas bases terroristas do outro lado da fronteira. Mas a ideia parece ser não querer escalar mais a situação.

O Paquistão não perdeu tempo e respondeu ontem ao ataque iraniano de terça-feira, que tinha alegadamente como alvo o grupo sunita Jaish al-Adl (Exército da Justiça, em árabe), com bombardeamentos contra grupos armados anti-paquistaneses no Irão. Teerão reagiu como Islamabad na véspera: criticou a violação da sua soberania e exigiu explicações ao representante do país vizinho, mas também lembrou a relação “fraternal” entre ambos. A comunidade internacional apela à calma, esperando desarmar a tensão na região.

“Vários terroristas foram mortos durante a operação baseada em inteligência”, indicou o Ministério dos Negócios Estrangeiros paquistanês, falando numa “série de ataques militares, altamente coordenados e de precisão, direcionados contra esconderijos terroristas”. O alvo seriam bases da Frente de Libertação Baloch e do Exército de Libertação Baloch, que defendem a independência do Baluchistão (território nos atuais Irão, Paquistão e Afeganistão).

O ministro do Interior iraniano, Ahmad Vahidi, disse que os mísseis que atingiram Saravan, uma aldeia na província de Sistão-Baluchistão, próximo da fronteira com o Paquistão, mataram quatro crianças, três homens e duas mulheres de nacionalidade “estrangeira”. O ataque iraniano de terça-feira, contra alegados alvos terroristas em Koh Sabz, no Paquistão, terá causado a morte a pelo menos duas crianças.

A operação paquistanesa teve como nome de código “Marg Bar Sarmachar”, que pode ser traduzido por “morte aos combatentes da guerrilha”. Em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros justificou o ataque. “Ao longo dos últimos anos, nos nossos compromissos com o Irão, o Paquistão tem partilhado consistentemente as suas sérias preocupações sobre os refúgios e santuários seguros desfrutados pelos terroristas de origem paquistanesa que se autodenominam Sarmachars nos espaços não governados dentro do Irão. O Paquistão também partilhou vários dossiers com provas concretas da presença e das atividades destes terroristas”, indicou.

“No entanto, devido à falta de ação relativamente às nossas sérias preocupações, estes chamados Sarmachars continuaram a derramar o sangue de paquistaneses inocentes impunemente”, acrescentou. “Esta ação é uma manifestação da determinação inabalável do Paquistão em proteger e defender a sua segurança nacional contra todas as ameaças”, concluiu.

Os especialistas tinham dito, após o ataque iraniano, que seria provável uma resposta paquistanesa nos mesmos moldes. A ideia parece contudo ser não escalar mais a situação, que não beneficia nenhum dos países - numa altura de tensão no Médio Oriente, com a guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, e com a mão de Teerão no apoio a grupos como o Hezbollah, no Líbano, ou os Houthis, no Iémen.  

“O Paquistão respeita totalmente a soberania e a integridade territorial da República Islâmica do Irão. O único objetivo do ato de hoje [ontem] foi a segurança e o interesse nacional do Paquistão, que é fundamental e não pode ser comprometido”, lia-se no comunicado paquistanês. 

Do outro lado, houve também um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, reiterando um compromisso numa relação de “boa vizinhança” e “irmandade” com o Paquistão, pedindo contudo a Islamabad que previna o estabelecimento de “bases e grupos terroristas armados” em solo paquistanês. E reiterou que o ataque de terça-feira foi “preventivo” contra um grupo terrorista iraniano a atuar no Paquistão, insistindo que o alvo era distante de áreas residenciais e que a responsabilidade das forças iranianas é lidar com as ameaças contra o país. “Sublinhe-se que a República Islâmica do Irão diferencia entre o fraternal e amigável Governo do Paquistão e os terroristas”, assegura ainda o ministério. 

História das relações

O Paquistão, que tem armas nucleares e é de maioria sunita, e o Irão, que continua a enriquecer urânio ameaçando com essa possibilidade e é de maioria xiita, partilham uma fronteira de quase 900 quilómetros. Ambos têm enfrentado a ameaça dos militantes separatistas, mas estes ataques cruzados não são normais - especialmente sem qualquer aviso prévio - numa fronteira porosa onde se concentra a maior parte da animosidade pelas acusações mútuas de albergar grupos terroristas.

Apesar disso, a relação entre ambos tem sido amigável, com o Irão a apoiar o Paquistão nas guerras com a Índia na década de 1960 e 1970, e Islamabad a apoiar Teerão na guerra entre o Irão e o Iraque nos anos 1980. O apoio paquistanês aos talibãs, durante a guerra civil afegã de 1992 a 1996, foi mais problemático, já que o Irão era então contra um Afeganistão controlado por esse grupo, tendo na guerra de 1996-2001 apoiado a Aliança do Norte. Após os ataques do 11 de Setembro de 2001, nos EUA, ambos os países juntaram-se à guerra ao terror. A cooperação económica tem existido, sempre que possível, e ainda antes do ataque de terça-feira do Irão, líderes dos dois países tinham estado reunidos.

Reações internacionais

Após o ataque iraniano, a China apelou à contenção de ambas as partes, pedindo que se evitem “ações que possam exacerbar as tensões” e que Teerão e Islamabad “trabalhem em conjunto para manter a paz e estabilidade”. Ontem, Pequim ofereceu-se para desempenhar um “papel construtivo” para acalmar a situação.

Também a Rússia insistiu na mensagem da contenção. “Apelamos às partes para que exerçam a máxima contenção e resolvam as questões emergentes apenas através dos canais políticos e diplomáticos”, disse a porta-voz da diplomacia russa, Maria Zakharova. Já a Índia disse ter “zero tolerância para com o terrorismo”, deixando contudo claro que a questão é “entre o Irão e o Paquistão”.

Por seu lado, os EUA, pela voz do conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, disseram não querer “uma escalada na Ásia Central e do Sul” e estar a “acompanhar de muito perto” as tensões entre Paquistão - um velho aliado dos EUA - e o Irão - um dos países do seu novo “eixo do mal”.

susana.f.salvador@dn.pt 

O Baluchistão deve o seu nome à tribo Baloch (estima-se que sejam atualmente dez milhões de pessoas), que habita há séculos na área que hoje está dividida entre três países - Irão, Afeganistão e Paquistão - e que há décadas defende um estado independente. Alguns defendem mesmo uma insurgência armada, sendo que tanto Teerão e Islamabad enfrentam problemas em ambos os lados da fronteira, com ataques de grupos terroristas como o Jaish al-Adl (Exército da Justiça, em árabe). Tanto a província iraniana do Sistão-Baluchistão como a paquistanesa do Baluchistão (que ocupa 44% da área do país) são as zonas mais pobres dos respetivos países. A maioria são paisagens áridas e desérticas.