“Hoje em dia, sabendo o que se passou, só posso pedir desculpa. Devia ter feito mais, devia ter perguntado mais, mas não fiz, não perguntei. Por isso estou aqui.”
Este mea culpa é de António Sérgio Henriques, o diretor de Fronteiras de Lisboa (DFL) - ou seja, o responsável máximo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto da capital - quando Ihor Homeniuk morreu, a 12 de março de 2020, em custódia daquela polícia, entretanto extinta. Proferiu-o esta quinta-feira no Juízo Criminal de Lisboa, como arguido do crime de denegação de justiça e prevaricação, ao depor no segundo julgamento do caso Ihor (no primeiro, que decorreu em 2021, três inspetores, seus inferiores hierárquicos, foram condenados a nove anos de prisão por terem espancado e deixado o detido algemado mais de oito horas, causando-lhe a morte por asfixia). Sobre ele impende a acusação de ter tentado, após saber do óbito, encobrir o que realmente se passou, “martelando” os relatórios oficiais do SEF. Foi de resto essa a conclusão a que chegou a Inspeção Geral da Administração Interna (o orgão que fiscaliza as polícias), propondo a sua demissão da função pública, efetivada em 2021.
Num julgamento no qual se tem visto uma epidemia de amnésia e desresponsabilização nas testemunhas - incluindo a ex-diretora nacional do SEF, Cristina Gatões - a assunção de Sérgio Henriques, o segundo dos cinco arguidos a aceitar depor (os arguidos podem recusar falar), soou surpreendente.
Como surpreendente foi o ex-DFL reconhecer ter detetado “inverdades” no relato escrito dos três inspetores que viriam a ser condenados - Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa - sobre a respetiva interação com Ihor, e nada ter feito para as corrigir, permitindo que constassem do relatório oficial do SEF sobre Ihor Homeniuk. O motivo dessa inação, que parece confirmar o teor da acusação, é tanto mais difícil de compreender quando as alegadas inverdades o comprometiam: os inspetores afiançavam que lhe haviam comunicado ter, na manhã de 12 de março, após terem sido destacados para ir “acalmar” Ihor, por este alegadamente estar a causar “desacatos”, algemado o cidadão ucraniano.
O regulamento do centro de detenção do SEF - o chamado Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), onde o SEF “retinha” os estrangeiros não admitidos em território nacional - estatuía que não se podia algemar alguém sem autorização do DFL. Ora Henriques garante que ninguém lhe comunicou, antes ou depois da algemagem de Ihor, que esta ocorrera, e que só soube dela a seguir ao óbito. Como, aliás, garante que ninguém lhe disse que Ihor tinha sido “isolado”, ou seja separado dos outros passageiros, e colocado na “sala dos médicos” (a única divisão do EECIT na qual não havia câmaras de videovigilância) - outra medida especial de segurança que necessitava de autorização superior. Mas perante a afirmação, pelos três inspetores, num relatório oficial que sabia ter como destino os seus superiores, a IGAI e eventualmente o Ministério Público, de que ele, DFL, estava ao corrente e portanto autorizara, não rectificou.
Questionado porquê, disse que “se e quando” alguém perguntasse sobre o assunto, então esclareceria. Donde se retira, naturalmente, que se ninguém perguntasse nunca haveria esclarecimento.