Morte de Ihor Homeniuk
12 outubro 2024 às 00h15
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Ex-diretor do SEF faz mea culpa e admite que sabia que inspetores estavam a mentir mas não agiu

No segundo julgamento do caso Ihor, o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, arguido por encobrimento, assumiu responsabilidades: “Devia ter feito mais. Não o fiz, por isso estou aqui.” Admitiu saber que os inspetores que causaram a morte tinham infringido regras e mentido ao relatarem a respetiva atuação - mas nada fez.

“Hoje em dia, sabendo o que se passou, só posso pedir desculpa. Devia ter feito mais, devia ter perguntado mais, mas não fiz, não perguntei. Por isso estou aqui.”

Este mea culpa é de António Sérgio Henriques, o diretor de Fronteiras de Lisboa (DFL) - ou seja, o responsável máximo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto da capital - quando Ihor Homeniuk morreu, a 12 de março de 2020, em custódia daquela polícia, entretanto extinta. Proferiu-o esta quinta-feira no Juízo Criminal de Lisboa, como arguido do crime de denegação de justiça e prevaricação, ao depor no segundo julgamento do caso Ihor (no primeiro, que decorreu em 2021, três inspetores, seus inferiores hierárquicos, foram condenados a nove anos de prisão por terem espancado e deixado o detido algemado mais de oito horas, causando-lhe a morte por asfixia). Sobre ele impende a acusação de ter tentado, após saber do óbito, encobrir o que realmente se passou, “martelando” os relatórios oficiais do SEF. Foi de resto essa a conclusão a que chegou a Inspeção Geral da Administração Interna (o orgão que fiscaliza as polícias), propondo a sua demissão da função pública, efetivada em 2021.

Num julgamento no qual se tem visto uma epidemia de amnésia e desresponsabilização nas testemunhas - incluindo a ex-diretora nacional do SEF, Cristina Gatões - a assunção de Sérgio Henriques, o primeiro dos cinco arguidos a aceitar depor (os arguidos podem recusar falar e até agora neste julgamento tinha sido assim), soou surpreendente.

Como surpreendente foi o ex-DFL reconhecer ter detetado “inverdades” no relato escrito dos três inspetores que viriam a ser condenados - Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa - sobre a respetiva interação com Ihor, e nada ter feito para as corrigir, permitindo que constassem do relatório oficial do SEF sobre Ihor Homeniuk. O motivo dessa inação, que parece confirmar o teor da acusação, é tanto mais difícil de compreender quando as alegadas inverdades o comprometiam: os inspetores afiançavam que lhe haviam comunicado ter, na manhã de 12 de março, após terem sido destacados para ir “acalmar” Ihor, por este alegadamente estar a causar “desacatos”, algemado o cidadão ucraniano.

O regulamento do centro de detenção do SEF - o chamado Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT),  onde o SEF “retinha” os estrangeiros não admitidos em território nacional - estatuía que não se podia algemar alguém sem autorização do DFL. Ora Henriques garante que ninguém lhe comunicou, antes ou depois da algemagem de Ihor, que esta ocorrera, e que só soube dela a seguir ao óbito. Como, aliás, garante que ninguém lhe disse que Ihor tinha sido “isolado”, ou seja separado dos outros passageiros, e colocado na “sala dos médicos” (a única divisão do EECIT na qual não havia câmaras de videovigilância) - outra medida especial de segurança que necessitava de autorização superior. Mas perante a afirmação, pelos três inspetores, num relatório oficial que sabia ter como destino os seus superiores, a IGAI e eventualmente o Ministério Público, de que ele, DFL, estava ao corrente e portanto autorizara, não rectificou.

Questionado porquê, disse que “se e quando” alguém perguntasse sobre o assunto, então esclareceria. Donde se retira, naturalmente, que se ninguém perguntasse nunca haveria esclarecimento.

“Nunca me ocorreu que estar algemado aquele número de horas pudesse ser causa da morte”

Sérgio Henriques também admitiu em tribunal não ter, malgrado detetar “erros procedimentais graves” na atuação de vários inspetores, aberto ou proposto a abertura de processos disciplinares a quem os cometeu.

Desde logo, os três inspetores que viriam a ser condenados pela morte de Ihor: além de o terem algemado sem comunicarem o facto ao DFL, tinham deixado o cidadão ucraniano assim, isolado e sem supervisão, horas a fio.

“Uma pessoa foi algemada, foi colocada na sala sem me ser comunicado, teria de ter ficado lá alguém a tomar conta, porque o passageiro [no jargão do SEF, os detidos era designados de “passageiros”] é uma pessoa, tem dignidade”, acusou Sérgio Henriques no seu depoimento. Porém, reconheceu, não acionou quaisquer procedimentos disciplinares. O mesmo quanto ao “inspetor de turno” (ou seja, o que superintendia os outros) da manhã de 12 de março, João Agostinho: este, conhecedor da situação - esteve no EECIT no momento da intervenção dos três inspetores e assistiu a parte dela, tendo voltado ao EECIT depois e espreitado para dentro da divisão onde estava Ihor - não a comunicou ao inspetor de turno seguinte. Agostinho é outro dos cinco arguidos deste processo, acusado de homicídio por omissão, por, crê o MP, ter sabido que Ihor estava algemado, sozinho, e nada ter feito para o auxiliar.

A explicação destas decisões do então DFL é, mais uma vez, bizarra: argumenta que não atuou disciplinarmente porque a diretora nacional tinha encarregado o responsável da divisão de Inspeção Interna do SEF, João Ataíde, de averiguar sobre a morte, e porque o caso iria ser reportado à IGAI (a lei assim o determina), que poderia depois investigar o que entendesse - se, claro, entendesse investigar (o que não aconteceu até que a 30 de março os três inspetores foram detidos pela Polícia Judiciária, indiciados por homicídio).

Sucede que João Ataíde é chamado a “inspecionar” dias depois (limitando-se a visionar, com o então DFL, no dia 16 de março, as imagens de videovigilância em fast forward, concluindo que “não havia indícios objetivos de maus-tratos”, informação que transmitiu à direção nacional). E Sérgio Henriques teve logo no dia do óbito, após saber do mesmo - o próprio o afirmou em juízo -, conhecimento de que Ihor tinha sido algemado na manhã de 12 de março, pouco depois da oito horas, e que ainda estava algemado às 16H40, pouco antes de morrer: disse-lho o inspetor Rui Marques (testemunha neste julgamento), que retirou a Ihor as algemas metálicas que lhe haviam colocadas na “visita” dos três inspetores.

O ex-DFL alega que quando soube desses dois factos não quis crer que fosse possível Ihor ter estado mais de oito horas algemado - “Na altura, e durante muito tempo, não acreditei que o cidadão pudesse ter estado algemado aquelas horas todas”. Não poderá no entanto ter sido “muito tempo”: no seu depoimento admitiu que "os seguranças me transmitiram que o cidadão tinha estado algemado, e os inspetores também.

Mas o então diretor de Fronteiras de Lisboa, com funções de chefe de polícia criminal, assevera que não sabia que alguém estar algemado tantas horas de mãos atrás das costas e na posição em que Ihor foi deixado - deitado - podia levar só por si à morte. “Não sabia que algemar uma pessoa e colocá-la deitada teria aquelas consequências. O curso de algemamento que fiz foi em 1994. Não sabia. Desde o primeiro momento, quando me foi apresentada a certidão, ou atestado de óbito, não sei o que lhe deva chamar, para mim foi uma morte por causas naturais. Houve um erro procedimental grave, a pessoa esteve algemada aquele número de horas, nunca me ocorreria que pudesse ser causa de morte.”

“Eu ia fazer o quê? Pareceu-me prudente não efetuar mais diligências”

Em todo o caso, a informação sobre esse “erro procedimental” identificado por Sérgio Henriques não se encontra em nenhum dos dois relatórios cujo preenchimento supervisionou - porque, como explicou ao tribunal, ambos estavam incompletos quando a morte ocorreu. O dos inspetores do SEF, intitulado relatório de ocorrência (RO), efetuado para cada detido no EECIT e consistindo numa espécie de “diário” das ocorrências a ele respeitantes, estava apenas preenchido até dia 10, quando Ihor chegara a Lisboa; o dos seguranças, que devia ter o relato de cada turno de oito horas dos mesmos, tinha “parado” na madrugada de 12 de março, quando o cidadão ucraniano foi, por alegadamente ter “causado desacatos”, isolado dos outros detidos e colocado na sala onde acabaria por morrer.

O relatório dos seguranças estava incompleto, adiantou Henriques no seu depoimento, porque aqueles tinham dúvidas sobre o que escrever. “Isso tinha a ver com ter falecido uma pessoa?”, perguntou a juíza, Hortense Marques. “Devia com certeza ter a ver com isso”. respondeu o ex-DFL, que nas imagens de videovigilância é visto sentado no balcão dos seguranças a escrever no respetivo computador, acabando por admitir que redigiu uma boa parte da “informação” do relatório. Sem contudo, como a juíza Hortense Marques sublinhou, assinalar esse facto.

“O senhor assumiu a autoria do que lá escreveu?”

“Não, não pus lá”.

“Então não tem explicação sobre não ter assumido a autoria”, concluiu a magistrada.

A principal acusação contra o ex-DFL diz precisamente respeito a essa “ajuda” anónima. É que se, como lembrou ao tribunal, “determinei que alguém escrevesse no relatório que se colocasse a algemagem, porque não estava lá, e o nome dos [três] inspetores que lá tinham ido e a hora”, tendo assumido “provavelmente fui eu que escrevi”, não fez ali constar o momento da desalgemagem. “Não, não coloquei que o [inspetor] Rui Marques encontrou o cidadão algemado. Só pode ter sido esquecimento.”

Também não há no relatório dos seguranças (nem no RO dos inspetores, que o DFL ordenou que fosse preenchido por todos os que tinham interagido com Ihor) referência à posição em que Ihor esteve várias horas, nem o estado em que se encontrava no momento do óbito - descomposto, urinado, com escoriações na face e hematomas no corpo.

“Não me foi reportada a posição em que o cidadão esteve, se gemeu, se sofreu”, justificou Henriques, que admite no entanto ter observado o cadáver: “Não gosto de ver pessoas mortas, mas era a minha obrigação. Fui vê-lo e vi marcas. A senhora Roxana [uma das seguranças, que deverá testemunhar esta segunda-feira] foi atrás de mim. Eu disse: ‘Tem marcas na cara’. E ela disse: ‘Sim mandou-se contra a parede e caiu’.”

“Quando lá chegou estava coberto?”, perguntou o procurador, Abel Matos Rosa.

“Sim, com um lenço.”

“Destapou só a cara?”

“Sim.”

“Acha que era a cara de uma pessoa que tinha tido uma morte natural, ou só natural?”

“Era condizente com o relato que eu tinha. Sabendo o que sabemos hoje provavelmente não foi assim.”

“Por que não pôs no relatório: pelas X horas o DFL deslocou-se aqui e viu escoriações na face?”

“Não lhe sei dizer.”

A 18 de março - senão antes - Sérgio Henriques soube, através de um email que lhe era dirigido, que a Brigada de Homicídios da PJ (alertada a 14 de março por uma denúncia anónima e pelo médico que autopsiou Ihor) estava a investigar a morte de Ihor.

José Gaspar Schwalbach, advogado da assistente (Oksana Homeniuk, viúva de Ihor), perguntou a Henriques se no momento em que soube da entrada em campo da PJ não tinha considerado importante verificar a acuidade do relatório do SEF - o RO - sobre o que sucedera no dia 12 ao cidadão ucraniano, até porque sabia que havia ali "inverdades".

“Eu ia fazer o quê?”, respondeu o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa. “A minha diretora nacional já tinha comunicado a morte à IGAI. O Ataíde, do gabinete de inspeção, estava a investigar, a brigada de homicídios também. Pareceu-me prudente não efetuar mais diligências.” 

O crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto no artigo 369º do Código Penal, é cometido por funcionário que “no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce”, e é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias. Quando “o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém”, a pena vai até cinco anos.