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Sociedade
24 setembro 2024 às 00h07
Leitura: 11 min

Médicos e enfermeiros alertam: adesão à greve irá suspender consultas e cirurgias

Hoje é o primeiro dia dos dois de greve decretados, pela primeira vez, por um sindicato dos médicos e por outro dos enfermeiros. É histórico, mas ambos afirmam ter sido coincidente. A crise no SNS é a razão. Fnam e SEP exigem “negociações sérias” e pedem aos profissionais que “não desistam”.

Helena Terleira é médica, especialista em Medicina Interna, no Hospital de Viana de Castelo. Aos 61 anos, e com 36 de profissão, é o rosto do Movimento Médicos em Luta (MML), surgido no ano passado de forma espontânea, com o intuito de dar mais voz à classe e levar as negociações com o então ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a bom porto. Foram muitos os médicos que levaram a sério esta mensagem. Chegou a haver mais de 2500 recusas de horas extras, para além das que são obrigatórias por lei. E os buracos aumentavam nas escalas dos hospitais, sobretudo das Urgências. O próprio diretor executivo da altura também, Fernando Araújo, chegou a afirmar que se nada fosse feito, novembro de 2023, poderia ser “o pior mês do SNS”. Mas, nem mesmo assim, o poder político “fez o que devia”, diz a médica, que hoje e amanhã estará em greve e na manifestação desta tarde, junto ao Ministério da Saúde, em Lisboa.


Marco Aniceto tem 27 anos e é enfermeiro há cinco, no hospital que escolheu, Vila Franca de Xira, e na área pela qual se apaixonou, Urgência. Quando optou pela enfermagem não colocou outra hipótese senão trabalhar no SNS, por se sentir orgulhoso de viver num país em que o Sistema de Saúde “está lá para todos, independentemente da sua situação económica e social, da raça ou etnia. Recebe todos e todos tentamos tratar os que entram por aquela porta da mesma forma. E, olhe, não tenho outra forma de dizer isto. Para mim é lindo, que um país possa fazer isso”. Mas Marco é dos enfermeiros que vai estar em greve os dois dias, precisamente “porque não quero que o SNS deixe de ser para todos, porque as condições de trabalho dos enfermeiros não são as mesmas e alguém tem de lutar por isso”.

Global Imagens Gerardo Santos
Marco Aniceto tem 27 anos e é enfermeiro há cinco. Faz greve “para lutar pelo SNS”.


Por estes testemunhos, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, e o presidente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), José Carlos Martins, esperam “forte adesão” à greve que decretaram e alertam: “Sabemos que os serviços mais afetados serão os das Consultas Externas e os de Cirurgia, em que a atividade programada deve ser fortemente afetada e até suspensa, nalgumas unidades.” A greve dos médicos começou às 00.00 horas de hoje, dia 24, a dos enfermeiros às 08.00, e terminam ambas amanhã às 24.00 horas.


“É como se os médicos estivessem a ser cozidos em lume brando”


Mas à pergunta se mais uma greve vai mudar o curso das negociações, a médica Helena Terleira diz querer acreditar que “sim”, porque espera também que “os médicos não desistam da luta pelo SNS”.


A internista do Hospital de Viana de Castelo define-se como uma pessoa que está acostumada “a resolver problemas e não a arranjá-los”. Aliás, foi assim que nasceu o MML, e é por isso que crê ainda numa solução para os médicos no SNS: “Não vou desistir. Na terça-feira [hoje], lá estarei, em Lisboa, à tarde, à porta do ministério. E peço aos colegas e a todos os profissionais de saúde, que se juntem a nós. Se desistirmos agora estamos a desistir do SNS e dos utentes.”


A médica acusa o poder político de já ter tido muito tempo para arranjar uma solução para os médicos que querem ficar no SNS. E o grande problema de hoje “é que é mais fácil um médico sair do SNS, porque tem logo melhores propostas, do que ficar”.


Parafraseando outros colegas, Helena Terleira assume que “o ambiente nos hospitais é de desânimo. É como se estivéssemos a ser cozidos em lume em brando”, mas, destaca, “uma colega dizia-me há dias, nós, os médicos, teremos sempre trabalho, o problema são os utentes, a quem os cuidados não vão chegar ou não vão chegar de igual forma”.


Sempre quis trabalhar para o SNS, porque tinha também “orgulho” nesta conquista, a qual, como diz, “permite a um sem-abrigo, que teve um AVC ter o mesmo tratamento que o Presidente da República. Este foi sempre o meu orgulho no SNS, cuidados iguais para todos. E é este SNS que não quero perder”. 


Para Helena Terleira, o objetivo do protesto “é mostrar aos políticos que a classe está unida “e que o que queremos é a hipótese de negociações que conduzam a resultados satisfatórios”. Os médicos voltam à rua dois meses depois de o terem feito pela primeira vez já com Ana Paula Martins como titular da pasta, quando rejeitaram um acordo negocial que não incluía as grelhas salariais e outras reivindicações consideradas prioritárias. Para a presidente da Fnam “se esta greve foi decretada a responsabilidade é do ministério de Ana Paula Martins. E se houver uma consulta ou uma cirurgia adiadas devido à greve, o que é sempre um transtorno para o utente, a responsabilidade é igualmente de Ana Paula Martins”.

Médicos saíram pela última vez à rua a 23 de julho


“Uma proposta de aumento de 52 euros é estar a brincar com os enfermeiros”


O enfermeiro Marco Aniceto assume que ainda tem poucos anos de profissão, mas uma das razões que o levam a esta greve foi o ter já percebido “a ausência de valorização do trabalho que os enfermeiros fazem todos os dias, todas as noites, todas as semanas no SNS”.


Ao DN conta que muito cedo, logo na escola, começou a contactar mais com a área da Saúde, que era aquela que mais lhe agradava, até porque “é uma das profissões que permite um maior contacto com a realidade e com as pessoas”. E era isso mesmo que lhe interessava, além de que “dentro da enfermagem tinha uma possibilidade de saídas diferentes para todos os tipos de cuidados de saúde, desde o doente crítico ao doente crónico, e logo no acompanhamento a partir do nascimento até ao fim da vida”. 


Ou seja, “o enfermeiro está presente ao longo de todo o ciclo de vida de uma pessoa”. Por isto, continua a dizer: “Amo o que faço. Não o consigo dizer de outra forma”, mas, ao fim de cinco anos, “só não gosto de como o faço, das condições que tenho para o fazer. A área da Urgência e da Emergência é a área de que gosto, pela sua intensidade, pelo pensamento crítico e rápido que exige, mas, atualmente, as condições que temos para a exercer não são as melhores”, desabafa.


Por isso, ressalva, “quero lutar por melhores condições de trabalho”, porque se há algo de que tem medo no futuro “é que, caso não haja realmente investimento, o SNS deixe de existir como deve de ser”.


Marco aceita que é um jovem trabalhador da área da Saúde, mas que, por ser jovem, também quer constituir família, conciliar a vida pessoal com o trabalho e ser remunerado pelo que merece. “Não faz sentido o Ministério da Saúde ter posto em cima da mesa uma proposta de aumento de 52 euros, que com descontos deveria ficar em 30 euros. Isto é estar a brincar com os enfermeiros.”


O problema é que, “se não forem criadas condições agora, os enfermeiros vão continuar a ir para os privados, para fora do país e até a abandonar a profissão. E depois que futuro resta ao SNS?” Como enfermeiro deixa uma mensagem: “Esta greve é importante. Está dentro de um processo negocial onde temos de exigir a nossa valorização.”

Enfermeiros fizeram greve nacional a 2 de agosto e voltaram a sair agora à rua.


Pela primeira vez, médicos e enfermeiros em greve no mesmo dia


A greve que hoje começa fica marcada por ser a primeira vez em que médicos e enfermeiros param nos mesmos dias: nunca tal tinha acontecido a não ser em situações de greves gerais da Administração Pública. Os dirigentes sindicais dizem que foi coincidência, mas não negam esperar que tal potencie o protesto.


Para os enfermeiros é um “Basta” nas negociações que dizem ser de “fachada”. E, por isto, José Carlos Martins tem a expectativa de que “os enfermeiros realizem uma boa greve, face ao descontentamento em relação ao Ministério da Saúde e por este não apresentar propostas justas como solução para os seus problemas”.


O dirigente do SEP quer “novas negociações” com a ministra da Saúde. E a presidente da Fnam também. “Negociações sérias e não de fachada”, refere o José Carlos Martins. Para Joana Bordalo e Sá, “negociações que possam ser ainda inscritas no OE para 2025”.


Questionados pelo DN sobre: “E se não houver mais negociações?”. Ambos consideram que a luta dos profissionais pode não ficar por aqui. O DN questionou o Ministério da Saúde sobre se está prevista nova agenda para negociações e o que comentava a esta greve em simultâneo, mas até à hora do fecho desta edição não obteve resposta.