Para quem, na sua carreira, já viu passar tantas guerras, acha que esta escalada no Médio Oriente, a envolver Israel no Irão, a guerra na Ucrânia, pode ser o início de uma nova ordem mundial?
Creio que não. Por enquanto, o início de uma nova ordem mundial é aquele que, por exemplo, foi desenhado no recente Pacto para o futuro das Nações Unidas. É certo que as grandes mudanças da ordem mundial se sucedem às grandes tragédias. Foi o caso com o Congresso de Viena, depois das guerras napoleónicas. Foi o caso da Primeira Guerra Mundial em que se seguiu a criação da Sociedade das Nações. O caso da Segunda Guerra Mundial, que deu origem às Nações Unidas, onde ainda vivemos. Mas não creio que neste momento o mundo esteja preparado para criar uma nova ordem mundial. Pelo contrário, é minha convicção de que o que é indispensável na ordem internacional é o sistema das Nações Unidas, universal, englobando todos os países do mundo. Apesar das deficiências que tem, e tem muitas, sobretudo deficiências de atuação em setores fundamentais, como é a questão da segurança internacional, o Conselho de Segurança, as Nações Unidas, continuam a ser um elemento indispensável. É o único palco global de negociação, de troca de opiniões, muitas vezes de aberturas que não se encontram noutro ponto, como é o expoente máximo do multilateralismo. Não temos outro sistema que abarque todos os países do mundo, como acontece com as Nações Unidas. Por isso são indispensáveis e deverão continuar, apesar de todos os problemas com que nos defrontamos, sobretudo ao nível de guerras perigosas. É ainda com as Nações Unidas que devemos trabalhar pensando numa nova ordem mundial, que será sempre um aperfeiçoamento do que estamos a viver agora.
Que eficácia tem verificado na atuação das Nações Unidas nestes recentes conflitos?
Como os outros conflitos no passado, não têm possibilidade de ser geridos pelas Nações Unidas, porque estão os Estados-Membros envolvidos. As Nações Unidas são uma organização intergovernamental. Quem encontra soluções são os Estados-Membros. Se eles não querem, é sobretudo no Conselho de Segurança, ainda um órgão aristocrático herdado da II Guerra, que bloqueia qualquer tentativa de se discutir de uma maneira leal e franca, porque quem tem poder de veto está sempre a negociar com a ameaça de o usar, não teremos as garantias que seriam necessárias para que o Conselho de Segurança fosse, efetivamente, um promotor da paz.
Mas isso não é um fator de bloqueio? Ou seja, nós até podemos dizer aqui longa vida às Nações Unidas, mas depois, se o mecanismo em si não se tornar eficaz e continuar a não ser eficaz conflito após conflito, como é que o mundo ultrapassa isso?
Tem toda a razão nessa observação. Mas qual é a contrapartida disto? No mundo que vivemos, não há outra. Eu lembro-me que em 1986 se estava no ponto crítico das Nações Unidas. Era, nessa altura, número dois nas Nações Unidas na nossa missão. A certa altura estávamos a discutir a crise provocada pelo facto de os americanos detestarem nessa altura a ONU. A embaixadora dos EUA nas Nações Unidas tinha dito, a certa altura, que, se fosse necessário, iria ao porto de Nova Iorque com lencinho branco, despedir-se das Nações Unidas que vão para Moscovo. Estava muito zangada. Eu estava no cocktail na véspera da Assembleia Geral e de chegar o ministro dos Negócios Estrangeiros, Pedro Pires de Miranda, e uma jornalista do New York Times, que me tinha ouvido falar com grande entusiasmado pelas Nações Unidas, numa conferência, veio perguntar-me porquê, dizendo que as instituições estavam paralisadas, que não faziam nada, os americanos estavam a boicotar e aquilo era dominado pelos comunistas e pelos não-alinhados. Pediu-me uma boa razão para se manter as Nações Unidas. E eu disse-lhe: o mundo precisa de terapia de grupo e as Nações Unidas são a terapia de grupo. Apesar de todas as fraquezas das Nações Unidas, o que é certo é que todos os países lá vão, procuram justificar-se, têm um palco onde falar e onde se exprimir que, de outro modo, não poderiam ter. Sobretudo os mais fracos, porque apesar de não terem poder nenhum no Conselho de Segurança, têm o poder e muitas vezes a maioria na Assembleia Geral. Pelo menos o poder moral de confrontar os outros com a opinião de maiorias. E é que isso leva a que o diálogo mundial se mantenha.
Mas deve deve haver uma reforma na organização, não é?
Há muitos anos que nos batemos por isso.