Protesto
25 janeiro 2024 às 12h39
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Carta aberta pede às autoridades que travem manifestação xenófoba em Lisboa

Documento “Contra o racismo e a xenofobia, recusamos o silêncio” reúne cinco mil assinaturas e é endereçada ao presidente Marcelo Rebelo de Sousa, membros do Governo e outras autoridades. Associações temem pela “segurança de todas as pessoas imigrantes em Portugal”.

Um grupo de coletivos e associações que combatem o racismo tentam impedir que uma manifestação xenófoba, marcada para 3 de fevereiro, aconteça em Lisboa. A carta aberta intitulada “Contra o racismo e a xenofobia, recusamos o silêncio” é assinada por mais de sete mil pessoas e coletivos. O documento foi enviado esta quinta-feira ao presidente Marcelo Rebelo de Sousa, ao presidente do Tribunal Constitucional, José João Abrantes, autoridades na área de imigração e membros do Governo, como o José Luís Carneiro, ministro da Administração Interna, e outros.

O conjunto exige que “ todos os responsáveis políticos e institucionais façam cumprir o artigo 13.º da Constituição, o princípio da igualdade, e acionem os mecanismos processuais para que se aplique o artigo 240.º do Código Penal, relativo à discriminação e incitamento ao ódio e à violência”. O objetivo é mesmo travar a saída da manifestação, que terá local na rua do Benformoso, no bairro Martim Moniz, onde mora um grande número de imigrantes de origem asiática. O evento “constitui-se como incitamento ao ódio e à violência e não mero exercício da liberdade de expressão”, pontuam.

O artigo 240º, na versão atual, versa sobre discriminação e incitamento ao ódio e à violência. A pena prevista é de seis meses a cinco anos de prisão. É crime “Fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda que incitem ou encorajem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas em razão da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo (...). É punido igualmente quem “Participar nas organizações referidas na alínea anterior, nas atividades por elas empreendidas ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento”.

Os subscritores pretendem “defender a segurança de todas as pessoas imigrantes em Portugal, combater o racismo, a xenofobia, a hostilidade religiosa e o crescimento do discurso de ódio a que temos vindo a assistir, particularmente vindo de partidos e movimentos de extrema-direita”. Para o grupo, é necessário “dar um sinal inequívoco e público de que atos e organizações sociais, políticas e partidárias racistas e xenófobas são inaceitáveis e queremos demonstrar a nossa solidariedade para com as vítimas de todos os ataques de ódio em Portugal”. 

A iniciativa é um conjunto de organizações de todo o país e de várias áreas, como a Kilombo, AfriCandé, Renovar a Mouraria, Cidadãos Por Lisboa, Andorinha, Companhia Católica, Frente Anti Racista, Greve Climática Estudantil, Rede 8 de Março, SOS Racismo, entre outras.  

A carta elenca uma série de episódios racistas e xenófobos registados no país recentemente. É o caso de agressões em Olhão contra grupos de imigrantes em janeiro do ano passado, que levou o presidente da república a ir pessoalmente pedir desculpas à uma das vítimas. Na ocasião, o chefe de estado também  declarou que “não há nada que justifique esse tipo de tratamento desumano, antidemocrático e criminoso, que não pode ser aceite na sociedade portuguesa”. 

É também lembrado o homicídio do cidadão indiano Gurpreet Singh, em Setúbal, morto com um tiro no peito enquanto estava em casa. Um caso que chegou a ser noticiado como tendo motivações rcistas mas que, segundo fonte da PJ disse ao DN, nao ter elementos que o comprovem.

“Até agora, a PJ não possui indícios de motivação racista no crime”, garantiu fonte desta polícia judicial ao DN. 

Os tiros também atingiram um outro morador. A arma foi deixada no local e dois suspeitos de nacionalidade portuguesa foram presos um mês depois.

São elencados ainda as situações de exploração de imigrantes e o caso de sete militares da GNR serem acusados de 33 crimes relacionados com maus-tratos a estrangeiros em Odemira. É citada também “uma campanha de desinformação e ódio, em especial nas redes sociais”, em que fala-se de “invasão, insegurança, ódio religioso e da necessidade de mostrar que estão a mais e não são bem-vindos”. O grupo afirma que “as ruas de Portugal são cada vez menos seguras para as pessoas imigrantes.

A manifestação em causa a 3 de fevereiro é organizada pelo militante neonazi Mário Machado, já condenado mais de uma vez por incitamento ao ódio e à violência. Ele conta com apoio de simpatizantes da xenofobia, inclusive com financiamento para a causa. A manifestação prevê o uso de archotes, tochas e parafina líquida, refere a carta e confirmou o DN. Nesta semana foram instalados pelo país faixas e cartazes com frases como “Portugal aos verdadeiros portugueses” e “Stop Islam”. A carta “Contra o racismo e a xenofobia, recusamos o silêncio” enviada hoje às autoridades finaliza com a frase “O silêncio das instituições é cúmplice. Não o acompanharemos nem o legitimaremos”. 

amanda.lima@globalmediagroup.pt

Notícia retificada às 21.05 de 25 de janeiro: retira "motivações racistas" no caso do homicídio de um cidadão indiano em Setúbal.

Confira o documento na íntegra

Contra o racismo e a xenofobia, recusamos o silêncio

Exmo. Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,

Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República, Augusto dos Santos Silva

Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, António Costa,

Exmo. Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, José João Abrantes,

Exmo. Sr. Ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro,

Exma. Sra. Ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva,

Exma. Sra. Procuradora-Geral da República, Lucília Gago

Exma. Sra. Secretária de Estado da Igualdade e Migrações, Isabel Almeida Rodrigues,

Exmo. Sr. Presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, José Reis,

Exma. Sra. Presidente do Observatório do Racismo e Xenofobia, Teresa Pizarro Beleza

Em janeiro de 2023, Portugal foi confrontado com notícias relativas a ataques contra imigrantes, em Olhão, praticados por jovens portugueses que, durante um mês, terão agredido 15 imigrantes de origem asiática. Quando ainda se pensava estarmos perante um ato isolado, o Ministro da Administração Interna descreveu o ato como uma “agressão bárbara”, um “comportamento inadmissível e inaceitável” que deve ser “exemplarmente punido”. O Presidente da República (PR) deslocou-se a Olhão, manifestando “repúdio indignado” por agressões “xenófobas e intolerância inaceitáveis”, pedindo desculpa à vítima das agressões, declarou que “não há nada que justifique esse tipo de tratamento desumano, antidemocrático e criminoso, que não pode ser aceite na sociedade portuguesa”.

No início de fevereiro de 2023, no Bairro da Mouraria em Lisboa, duas pessoas morreram e 14 ficaram feridas na sequência de um incêndio que deflagrou num prédio. Todas as vítimas eram de origem asiática, levando o PR a afirmar que “num momento em que a economia portuguesa apela à vinda de imigrantes por falta de mão-de-obra, tem de se ter noção que isso implica estruturas adequadas para acompanhar aqueles que chegam e para evitar situações extremas”.

Nos últimos anos, foram sendo desmanteladas redes de associação criminosa, tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal, angariação de mão-de-obra ilegal, extorsão, branqueamento de capitais, fraude fiscal, ofensas à integridade física, posse de arma de fogo e falsificação de documentos, ligadas ao aliciamento de imigrantes para trabalhar em explorações agrícolas, nomeadamente da zona do Alentejo. Os crimes praticados contra imigrantes chegaram às forças de segurança, levando sete militares da GNR a ser acusados de um total de 33 crimes relacionados com maus-tratos a imigrantes em Odemira.

As imagens dos agentes que filmaram os atos humilhantes e as agressões das vítimas, trabalhadores imigrantes provenientes do sul da Ásia, revelaram, segundo o Ministério Público, um "ódio claramente dirigido às nacionalidades das vítimas e apenas por tal facto e por saberem que, por tal circunstância, eram alvos fáceis". No dia 5 de novembro de 2023, Gurpreet Singh, de nacionalidade indiana, foi o alvo fácil, vítima de um ato de violência extrema em Setúbal, morto com um tiro de caçadeira no peito, que foi disparado através de uma janela, no rés do chão e virada para a rua. A vítima mortal estava no seu quarto, naquele domingo à noite, na casa partilhada com outros cinco imigrantes. Os dois suspeitos da execução do crime, de nacionalidade portuguesa, tentaram matar todos os ocupantes da casa por motivação racista.

Os exemplos podiam continuar, porque há muitos. É manifesto que, nos últimos tempos, a comunidade de imigrantes em Portugal, em especial provenientes do sul da Ásia: Bangladesh, Nepal, India e Paquistão, tem sido objeto de uma campanha de desinformação e ódio, em especial nas redes sociais. Fala-se de invasão, insegurança, ódio religioso e da necessidade de mostrar que estão a mais e não são bem-vindos. As ruas de Portugal são cada vez menos seguras para as pessoas imigrantes.

Sabemos hoje, pelos órgãos de comunicação e pelas redes sociais, que movimentos de extrema-direita estão a organizar uma ação criminosa contra os imigrantes de origem asiática, que elegeram como alvo, para o dia 3 de fevereiro, em Lisboa, na zona do Martim Moniz e Rua do Benformoso, precisamente por serem as “ruas com mais imigrantes do país, sobretudo de origem islâmica”, reinvindicando o fim da “islamização da Europa”.

Sabemos também que a organização anunciou a compra de archotes, tochas e parafina líquida, que tudo indica serão instrumentos usados para aterrorizar as pessoas imigrantes que por ali estiverem. Além de profundamente racista e xenófoba, esta ação põe em causa a segurança das pessoas imigrantes que vivem e trabalham nesta área de Lisboa. É por este motivo que vos dirigimos esta carta aberta, exigindo que todos os responsáveis políticos e institucionais façam cumprir o artigo 13.º da Constituição, o princípio da igualdade, e acionem os mecanismos processuais para que se aplique o artigo 240.º do Código Penal, relativo à discriminação e incitamento ao ódio e à violência. O objetivo é de travar a saída desta manifestação que, por se poder qualificar entre “atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião” se constitui como incitamento ao ódio e à violência e não mero exercício da liberdade de expressão. A moldura penal para este crime é de pena de prisão de um a oito anos.

Com esta carta, pretendemos defender a segurança de todas as pessoas imigrantes em Portugal, combater o racismo, a xenofobia, a hostilidade religiosa e o crescimento do discurso de ódio a que temos vindo a assistir, particularmente vindo de partidos e movimentos de extrema-direita. Queremos dar um sinal inequívoco e público de que atos e organizações sociais, políticas e partidárias racistas e xenófobas são inaceitáveis e queremos demonstrar a nossa solidariedade para com as vítimas de todos os ataques de ódio em Portugal. A negação e inércia sistemáticas são o terreno fértil para a impunidade do racismo e da xenofobia, que têm vindo a escalar e devem ser absolutamente inaceitáveis em qualquer democracia. O silêncio das instituições é cúmplice. Não o acompanharemos nem o legitimaremos.

Janeiro de 2024.