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Sociedade
03 novembro 2024 às 01h35
Leitura: 9 min

Please wait to be seated: a Lisboa que só fala inglês e está a violar a lei

Há na capital cada vez mais estabelecimentos que ostentam comunicação exclusivamente em inglês. Dir-se-ia o Algarve dos anos 1980. Se alguém questiona, sai um atónito “qual o problema?”. A ideia, garantem, não é ofender ou afastar os portugueses, até porque “vocês são muito bons em línguas”. Quem diria que é ilegal?

Na esquina em frente, num painel de azulejos, as palavras de um dos mais eloquentes portugueses de sempre – “Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. (…) Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal, para morrer, o mundo” – sobre outro português cuja eloquência se fez lenda: Santo António de Lisboa, ou Fernando de Bulhões, alegadamente nascido nesta rua, e cuja língua, exposta num relicário, é adorada por multidões na Basílica de Pádua.

É então numa rua assombrada pela beleza daquele sermão de Padre António Vieira e da partida como destino que está, à porta de um estabelecimento, esta tabuleta. Please wait to be seated (Espere que lhe indiquem uma mesa). Cá fora, em cartazes afixados na parede, publicitam-se os produtos da casa: Cold brew; Ice Latte; Homemade lemonades. Na porta de vidro, em duas folhas A4, a lista da casa, toda, de alto a baixo, em inglês, incluindo avisos como We don’t charge extra for the oat milk. Prices are in euros, including VAT e the food served may contain substances that may cause allergies or intolerances (“Não cobramos mais pelo leite de aveia. Os preços são em euros e incluem IVA. Os produtos servidos podem conter substâncias que podem causar alergias ou intolerância”). Em todo o exterior do estabelecimento, a única palavra portuguesa visível é a que publicita o sistema de segurança instalado: “Alarme.”

Parece haver poucas dúvidas de que não é a uma clientela portuguesa que se dirige este lugar – e faz pouca questão de o disfarçar. Porém, o rapaz que num fim de tarde arruma o banco que costuma estar cá fora  surpreende-se com a questão. “Não percebo o problema. Lá dentro temos menus em português. E como sabe Portugal é sobretudo um país turístico”. A ideia de que a comunicação visível, sendo só numa língua estrangeira, tende a afastar os portugueses – até porque há, incrivelmente, portugueses que não falam inglês – surge descabida a este português. “Nunca tivemos queixas”.

Ao pedido do contacto de alguém responsável, sugere que passe noutro dia mais cedo. E o DN assim faz. Dentro do café – chamemos assim a este estabelecimento denominado The Folks (“O povo”, “As pessoas” ou, em tradução muito livre, “Os gajos”), identificado no site respetivo como “cafetaria”, um de cinco com o mesmo nome no centro da cidade e que, informam-nos, é detido por um cidadão azerbaijanês cujo nome não nos é transmitido – a comunicação é, como lá fora, exclusivamente em inglês. No balcão, dois recipientes com açúcar estão assinalados brown sugar e white sugar. As embalagens, que se supõe serem de café, expostas nas prateleiras não têm qualquer identificação ou rótulo em português.

Questionada (em inglês, porque não fala português) sobre o porquê deste império de uma língua estrangeira numa cidade portuguesa, a simpática jovem nepalesa indicada como gerente, de seu nome Sabi, abre mais os grandes olhos bonitos. “Nunca ninguém tinha perguntado isso”, diz, repetindo o que já o empregado português: “Ninguém se queixa. E temos imensos clientes portugueses, que sempre recebemos muito bem.”

A ideia de que pode haver folks portugueses que nem sequer entram no The Folks porque não dominam o inglês ou porque acham disparatado, quiçá até ofensivo, um negócio situado em Portugal desprezar assim a língua do país, não fazendo o menor esforço para comunicar nela, nunca pelos vistos ocorreu a Sabi, ou ao colega que, furioso com as perguntas do jornal, resmunga em espanhol. Perante a insistência em saber quem tomou a decisão de transformar este local, antes ocupado por uma funerária, num sítio onde o português, apenas admitido nos menus que vão às mesas, passou à semi-clandestinidade, e se ao fazê-lo teve o cuidado de certificar que a lei local o permite, Sabi remete para o “management”. Sugere que as perguntas sejam colocadas por mensagem no Instagram da cadeia – o que é feito, sem qualquer resultado, apesar de Sabi garantir que “quando influencers querem fazer qualquer coisa connosco, é essa a via que usam, e respondem-lhes logo”. Se calhar só sendo influencer, então.

Nesta geladaria na Rua da Madalena, na Baixa, toda a informação exterior sobre os sabores não é em português. FOTO: Leonardo Negrão

“Deve ser para vender aos turistas, não é? Aos estrangeiros”

A uns 20 ou 30 metros, no Largo de Santo António da Sé, perto da igreja do mesmo nome e do museu dedicado a Bulhões, o Dear Breakfast (Querido Pequeno-Almoço) tem também à entrada uma tabuleta do mesmo tipo da do The Folks, em inglês. Mesma questão, mesma estranheza. O responsável que vem ao encontro do DN não é afinal assim tão responsável – remete para o Instagram da “marca” (há mais queridos pequenos-almoços pela cidade), com o mesmo resultado obtido no The Folks: zero. Igual sucede com o email enviado para o endereço constante no cartão da casa, e com a mensagem enviada à gerente, cujo número o jornal conseguiu obter. “Vou ver do seu email, desculpe não termos respondido”, diz ela. Para nunca mais voltar ao contacto.

O DN não escrevera algo de especialmente acintoso: “Estive hoje no vosso estabelecimento. Gostaria de saber qual a razão de terem toda a comunicação escrita exterior do estabelecimento em inglês, quando estão num país cuja língua é o português. A ideia é apenas terem clientes que falam inglês? Informaram-se sobre a legalidade dessa opção? Se possível, gostaria de falar com alguém da gerência para perceber o conceito”.

Não, não foi possível. Também não é possível saber o que tem a dizer a dona de uma loja de roupa na Rua da Madalena, Lucky Simon’s, que tem um cartaz à porta em inglês a anunciar saldos. A jovem lojista, que não tem autorização para facultar o contacto da patroa, esboça um sorriso embaraçado quando responde “Deve ser para vender aos turistas, não é? Aos estrangeiros.” Ao lado, a porta fechada da galeria Prime Matter informa quem domine o idioma britânico da sua current exhibition, das suas opening hours, dos seus contacts e de que para visitar é ring the bell ou make an appointment.

Tudo normal? É o que parece achar a bretã Béa (de Béatrice), do Café Crêperie Chez Béa, que abriu portas há dois meses na mesma rua do The Folks. Ela e o marido, uruguaio, ficam estupefactos, até agastados, com a questão do DN. “Esta zona é muito turística, 90% das pessoas que passam são estrangeiras. Se andar por aí, vê todas as tabuletas em inglês”, justificam. “Mas temos clientes portugueses e temos o menu em português lá fora”. Têm sim: de um lado da porta está uma folha A4 com o menu português e do outro lado o menu inglês. Porém, no cavalete colocado na entrada as ofertas do dia declinam-se apenas em inglês.

“Não percebo o problema”, repetem.“Praticamente toda a gente fala inglês.” Quando revelam que já exploraram restaurantes noutros países – França, desde logo, e Espanha, na Catalunha – são perguntados sobre se nesses locais também punham cartazes à porta apenas em inglês. “Bom, os franceses não falam língua nenhuma a não ser a deles”, responde Béa, com uma careta. E a Catalunha, completa o DN, é a Catalunha – um lugar onde o idioma é matéria política. Béa concorda. “Já os portugueses são incríveis, falam as línguas todas, são muito bons em línguas. Quem me dera que os franceses fossem tão abertos como os portugueses.”

“Se andar por aí, vê as tabuletas todas em inglês”, diz a francesa Béa. “Aí” é a Baixa de Lisboa. FOTO: Leonardo Negrão

“Ninguém fala português, e ainda ficam ofendidos com isso”

Inês, uma jurista que habita com o marido e os filhos a poucas dezenas de metros deste restaurante, na Rua da Madalena, não se sente particularmente “aberta”: “Acho uma falta de respeito por quem aqui vive. Há uns anos, abriu aqui na rua uma geladaria que só tinha a lista de sabores em italiano e em inglês. Os gelados são ótimos, mas durante os primeiros anos recusei-me a ir lá por essa razão.” Suspira. “As lições da pandemia parecem ter sido esquecidas rapidamente. Nessa altura, o que sobreviveu foi o comércio e restauração que não se viravam só para o turismo; nesse período valeram-lhes os clientes residentes.”

Também Carolina, que vive na Baixa desde que nasceu, se enfurece com “a crescente presença de estabelecimentos novos, bem como alguns antigos, onde não se fala português”: “Recuso-me a comunicar em inglês nessas situações, não porque não saiba, mas porque considero isso vergonhoso. Quando um estabelecimento se recusa a atender em português, simplesmente vou embora e não volto.” Como exemplo de um local assim, menciona o The Folks: “Ninguém fala português lá, e ainda ficam ofendidos se alguém lhes refere isso.”

Assente a prática, cabe questionar a legalidade. Podem negócios de porta aberta comunicar, através da publicidade exterior, apenas numa língua estrangeira? Não se trata, no limite, de uma discriminação  dos clientes falantes de português? (Note-se que o Código da Publicidade, que é lei, proíbe a publicidade em língua estrangeira, a não ser que os bens e produtos publicitados se dirijam exclusivamente a estrangeiros).

Não foi fácil tentar responder a esta questão. A primeira entidade que o DN contactou foi a Câmara de Lisboa – supondo que quem governa a cidade deverá ter-se dado conta da tendência e, consequentemente, saber se é ou não legal e até, quiçá, ter uma estratégia. Mas não: o departamento de comunicação da autarquia despachou o assunto interpretando as perguntas como dizendo respeito a “atribuir licenças de utilização/ocupação da via pública, licenças de afixação de publicidade de natureza comercial, quando a mensagem está relacionada com bens ou serviços comercializados no próprio estabelecimento ou ocupa o domínio público contíguo à fachada do mesmo”: “Esta matéria é competência das Juntas de Freguesia, nos termos da Reorganização Administrativa de Lisboa (…).”

Miguel Coelho, presidente da Junta de Santa Maria Maior, que inclui grande parte dos bairros mais “turísticos” do centro de Lisboa, fica perplexo com a remissão: “Não, isso não é connosco.” E faz uma sugestão: “Já falou com a União das Associações de Comércio de Lisboa?”

Sim, o DN já tinha contactado a UAC. Cuja presidente, Carla Salsinha, certifica: “Não é um tema que nos tenha chegado, não temos queixas de consumidores. E os nossos associados que estão na Baixa acham que isso não é um problema para os consumidores.” Ainda assim, a representante dos comerciantes tem poucas dúvidas de que “a priori tem de ser tudo em português, no que respeita a informação e publicidade.” Quem tem a incumbência de fiscalizar, porém, duvida. “Tivemos uma reunião com o inspetor geral da ASAE e colocámos a dúvida. Ele disse que não há nada de específico na lei.”

E não é que é ilegal e até há sanções?

A Direção Geral do Consumidor (DGC) discorda: “O n.º 3 do artigo 7.º da Lei de Defesa do Consumidor refere que ‘a informação ao consumidor é prestada em língua portuguesa’, concretizando-se o direito à informação, que se encontra consagrado no n.º 1 do artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa.”

E este departamento estatal prossegue debitando a – quem diria – vasta legislação que obriga ao uso do português: “O Decreto-Lei n.º 238/86 de 19 de Agosto [cujo título é, precisamente, “Determina que as informações sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional devam ser prestadas em língua portuguesa] estabelece a obrigatoriedade de todas as informações sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional, quer as constantes de rótulos, embalagens, prospetos, catálogos, livros de instruções para utilização ou outros meios informativos, quer as facultadas nos locais de venda ou divulgadas por qualquer meio publicitário [que é o que importa para o objeto deste artigo], serem prestadas em língua portuguesa. O mesmo diploma prevê, no artigo 2.º, que nos casos em que estejamos perante informações escritas redigidas em língua ou línguas estrangeiras aquando da venda de bens ou serviços no mercado nacional é obrigatória a sua tradução integral em língua portuguesa, devendo, conforme os casos, o texto traduzido ser aposto nos rótulos ou embalagens ou aditado aos meios informativos.”

Esta exigência legal, refere esta Direção Geral, consta igualmente do artigo 26.º do Regime Jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração (RJACSR)” – o qual, titulado “Informação em língua portuguesa”, dispõe: “Todas as informações sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços, oferecidos ao público no mercado nacional, quer os constantes de rótulos, embalagens, prospetos, catálogos ou livros de instruções ou outros meios informativos, quer as facultadas nos locais de venda ou divulgadas por qualquer meio publicitário têm de ser redigidas em língua portuguesa”.

“É preciso que os consumidores saibam”

E – é isso que toda a gente quer saber por esta altura do texto, certo? – o incumprimento destas disposições, sublinha a DGC, é objeto de sanção: “No que toca às obrigações previstas no Decreto-Lei 238/86, a sua violação configura contraordenação económica grave punível nos termos do RJCE (regime jurídico das contraordenações económicas). Já para “o direito à informação estabelecido no artigo 7.° da Lei de Defesa do Consumidor não se encontra estabelecida sanção, uma vez que a Lei de Defesa não dispõe de regime sancionatório.”

Sim, a pergunta seguinte é: “Fiscalizar o cumprimento da legislação em causa é da competência de quem?” A resposta surpreenderá muita gente. A começar pela entidade que, segundo a DGC, tem essa função: “Tratando-se de estabelecimentos de restauração e comércio, cabe à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) assegurar o cumprimento das disposições citadas, com exceção do artigo 7.º da Lei de Defesa do Consumidor que contempla um dever geral que é densificado noutra legislação.”

Surpresa porquê? Bom, porque o DN também questionou a ASAE. E esta, certificando que “até ao momento, não há registo de qualquer denúncia sobre a matéria nesta Autoridade”, considera que só pode intervir quando se tratar de “informações específicas sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional e não apenas meras indicações genéricas informativas, como por exemplo ‘Please wait here’”.

Não se incluirá o exemplo dado pela ASAE nas “características dos serviços”, nos termos do artigo 26.º do Regime Jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração? Não é “característica” de um serviço exigir aos clientes que façam fila à porta à espera de mesa?

Como já se percebeu, a ASAE acha que não. E esqueceu-se de responder a duas das perguntas do jornal: se não pode, dada a existência do fenómeno descrito, efetuar fiscalizações sem que estas sejam suscitadas por queixas específicas, e, caso o cidadão se depare com o tipo de situação descrita, que deve fazer para que a ASAE atue.

Dada a baralhada e o óbvio desconhecimento da lei evidenciado pelos comerciantes, autarquia, consumidores e, até – atrevamo-nos a assinalar – ASAE, não faltará uma melhor e mais clara regulamentação?

A DGC acha que não: “O enquadramento jurídico atual já dá resposta a estas situações, pelo que, no limite, caberá assegurar o cumprimento da lei por via dos mecanismos de fiscalização já previstos”. Mas, até porque assinala não ter recebido “queixas em número expressivo sobre esta matéria”, admite que “pode ser necessária uma maior divulgação desta matéria junto de empresas e, principalmente, dos consumidores”.

Sublinhando: “É preciso que os consumidores saibam que, sempre que verificarem o incumprimento destas regras, podem e devem fazer uma reclamação, quer seja no livro de reclamações físico ou eletrónico.”

E pronto, já sabe: não espere para se sentar a não ser que o aviso esteja em português. E, caso lhe chamem a atenção, reclame.