“Ninguém fala português, e ainda ficam ofendidos com isso”
Inês, uma jurista que habita com o marido e os filhos a poucas dezenas de metros deste restaurante, na Rua da Madalena, não se sente particularmente “aberta”: “Acho uma falta de respeito por quem aqui vive. Há uns anos, abriu aqui na rua uma geladaria que só tinha a lista de sabores em italiano e em inglês. Os gelados são ótimos, mas durante os primeiros anos recusei-me a ir lá por essa razão.” Suspira. “As lições da pandemia parecem ter sido esquecidas rapidamente. Nessa altura, o que sobreviveu foi o comércio e restauração que não se viravam só para o turismo; nesse período valeram-lhes os clientes residentes.”
Também Carolina, que vive na Baixa desde que nasceu, se enfurece com “a crescente presença de estabelecimentos novos, bem como alguns antigos, onde não se fala português”: “Recuso-me a comunicar em inglês nessas situações, não porque não saiba, mas porque considero isso vergonhoso. Quando um estabelecimento se recusa a atender em português, simplesmente vou embora e não volto.” Como exemplo de um local assim, menciona o The Folks: “Ninguém fala português lá, e ainda ficam ofendidos se alguém lhes refere isso.”
Assente a prática, cabe questionar a legalidade. Podem negócios de porta aberta comunicar, através da publicidade exterior, apenas numa língua estrangeira? Não se trata, no limite, de uma discriminação dos clientes falantes de português? (Note-se que o Código da Publicidade, que é lei, proíbe a publicidade em língua estrangeira, a não ser que os bens e produtos publicitados se dirijam exclusivamente a estrangeiros).
Não foi fácil tentar responder a esta questão. A primeira entidade que o DN contactou foi a Câmara de Lisboa – supondo que quem governa a cidade deverá ter-se dado conta da tendência e, consequentemente, saber se é ou não legal e até, quiçá, ter uma estratégia. Mas não: o departamento de comunicação da autarquia despachou o assunto interpretando as perguntas como dizendo respeito a “atribuir licenças de utilização/ocupação da via pública, licenças de afixação de publicidade de natureza comercial, quando a mensagem está relacionada com bens ou serviços comercializados no próprio estabelecimento ou ocupa o domínio público contíguo à fachada do mesmo”: “Esta matéria é competência das Juntas de Freguesia, nos termos da Reorganização Administrativa de Lisboa (…).”
Miguel Coelho, presidente da Junta de Santa Maria Maior, que inclui grande parte dos bairros mais “turísticos” do centro de Lisboa, fica perplexo com a remissão: “Não, isso não é connosco.” E faz uma sugestão: “Já falou com a União das Associações de Comércio de Lisboa?”
Sim, o DN já tinha contactado a UAC. Cuja presidente, Carla Salsinha, certifica: “Não é um tema que nos tenha chegado, não temos queixas de consumidores. E os nossos associados que estão na Baixa acham que isso não é um problema para os consumidores.” Ainda assim, a representante dos comerciantes tem poucas dúvidas de que “a priori tem de ser tudo em português, no que respeita a informação e publicidade.” Quem tem a incumbência de fiscalizar, porém, duvida. “Tivemos uma reunião com o inspetor geral da ASAE e colocámos a dúvida. Ele disse que não há nada de específico na lei.”
E não é que é ilegal e até há sanções?
A Direção Geral do Consumidor (DGC) discorda: “O n.º 3 do artigo 7.º da Lei de Defesa do Consumidor refere que ‘a informação ao consumidor é prestada em língua portuguesa’, concretizando-se o direito à informação, que se encontra consagrado no n.º 1 do artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa.”
E este departamento estatal prossegue debitando a – quem diria – vasta legislação que obriga ao uso do português: “O Decreto-Lei n.º 238/86 de 19 de Agosto [cujo título é, precisamente, “Determina que as informações sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional devam ser prestadas em língua portuguesa] estabelece a obrigatoriedade de todas as informações sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional, quer as constantes de rótulos, embalagens, prospetos, catálogos, livros de instruções para utilização ou outros meios informativos, quer as facultadas nos locais de venda ou divulgadas por qualquer meio publicitário [que é o que importa para o objeto deste artigo], serem prestadas em língua portuguesa. O mesmo diploma prevê, no artigo 2.º, que nos casos em que estejamos perante informações escritas redigidas em língua ou línguas estrangeiras aquando da venda de bens ou serviços no mercado nacional é obrigatória a sua tradução integral em língua portuguesa, devendo, conforme os casos, o texto traduzido ser aposto nos rótulos ou embalagens ou aditado aos meios informativos.”
Esta exigência legal, refere esta Direção Geral, consta igualmente do artigo 26.º do Regime Jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração (RJACSR)” – o qual, titulado “Informação em língua portuguesa”, dispõe: “Todas as informações sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços, oferecidos ao público no mercado nacional, quer os constantes de rótulos, embalagens, prospetos, catálogos ou livros de instruções ou outros meios informativos, quer as facultadas nos locais de venda ou divulgadas por qualquer meio publicitário têm de ser redigidas em língua portuguesa”.
“É preciso que os consumidores saibam”
E – é isso que toda a gente quer saber por esta altura do texto, certo? – o incumprimento destas disposições, sublinha a DGC, é objeto de sanção: “No que toca às obrigações previstas no Decreto-Lei 238/86, a sua violação configura contraordenação económica grave punível nos termos do RJCE (regime jurídico das contraordenações económicas). Já para “o direito à informação estabelecido no artigo 7.° da Lei de Defesa do Consumidor não se encontra estabelecida sanção, uma vez que a Lei de Defesa não dispõe de regime sancionatório.”
Sim, a pergunta seguinte é: “Fiscalizar o cumprimento da legislação em causa é da competência de quem?” A resposta surpreenderá muita gente. A começar pela entidade que, segundo a DGC, tem essa função: “Tratando-se de estabelecimentos de restauração e comércio, cabe à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) assegurar o cumprimento das disposições citadas, com exceção do artigo 7.º da Lei de Defesa do Consumidor que contempla um dever geral que é densificado noutra legislação.”
Surpresa porquê? Bom, porque o DN também questionou a ASAE. E esta, certificando que “até ao momento, não há registo de qualquer denúncia sobre a matéria nesta Autoridade”, considera que só pode intervir quando se tratar de “informações específicas sobre a natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional e não apenas meras indicações genéricas informativas, como por exemplo ‘Please wait here’”.
Não se incluirá o exemplo dado pela ASAE nas “características dos serviços”, nos termos do artigo 26.º do Regime Jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração? Não é “característica” de um serviço exigir aos clientes que façam fila à porta à espera de mesa?
Como já se percebeu, a ASAE acha que não. E esqueceu-se de responder a duas das perguntas do jornal: se não pode, dada a existência do fenómeno descrito, efetuar fiscalizações sem que estas sejam suscitadas por queixas específicas, e, caso o cidadão se depare com o tipo de situação descrita, que deve fazer para que a ASAE atue.
Dada a baralhada e o óbvio desconhecimento da lei evidenciado pelos comerciantes, autarquia, consumidores e, até – atrevamo-nos a assinalar – ASAE, não faltará uma melhor e mais clara regulamentação?
A DGC acha que não: “O enquadramento jurídico atual já dá resposta a estas situações, pelo que, no limite, caberá assegurar o cumprimento da lei por via dos mecanismos de fiscalização já previstos”. Mas, até porque assinala não ter recebido “queixas em número expressivo sobre esta matéria”, admite que “pode ser necessária uma maior divulgação desta matéria junto de empresas e, principalmente, dos consumidores”.
Sublinhando: “É preciso que os consumidores saibam que, sempre que verificarem o incumprimento destas regras, podem e devem fazer uma reclamação, quer seja no livro de reclamações físico ou eletrónico.”
E pronto, já sabe: não espere para se sentar a não ser que o aviso esteja em português. E, caso lhe chamem a atenção, reclame.