Pré-publicação do livro "Revolução Inacabada"
12 fevereiro 2024 às 06h52
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A alheira de Mirandela não existe?

Há já vários livros sobre o que mudou após o 25 de Abril de 1974. E o que não se alterou? O jornalista João Pedro Henriques explora respostas a essa questão neste ensaio, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O DN prépublica hoje um dos capítulos da obra, que vai para as livrarias no próximo dia 19.

Luís de Sousa (n. 1973), outro cientista político do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, doutorado (tal como António Costa Pinto) no Instituto Universitário Europeu de Florença, foi em 2009 um dos fundadores - e seria o primeiro presidente - da secção portuguesa da Transparência Internacional, uma ONG global de combate à corrupção sediada na Alemanha e que todos os anos, desde 1995, divulga o seu «Índice de Perceção da Corrupção» (IPC). Trata-se, de acordo com a organização, de um «índice composto [que] resulta da combinação de fontes de análise de corrupção desenvolvidas por outras organizações independentes, e classifica de 0 (percecionado como muito corrupto) a 100 (muito transparente) 180 países e territórios.»

No último IPC, lançado em 2022, Portugal, com 62 pontos, encontrava-se na 33ª posição desse ranking (a Dinamarca lidera, ou seja, é percecionado como o país menos corrupto de todos). O nosso país, declara a organização, não registou «evoluções significativas na última década, e desde 2012 que apresenta variações anuais mínimas» - portanto, não piora mas também não melhora. No contexto da UE27, Portugal está mais ou menos a meio da tabela (13.ª posição), sendo 64 pontos a avaliação média. Luís de Sousa é, com efeito, um dos maiores especialistas portugueses em questões de corrupção e, tendo crescido na cidade transmontana de Mirandela (distrito de Bragança), tem uma revelação para fazer que quase nos tira o chão dos pés: a alheira de Mirandela não existe. Ou, citando com todo o rigor: «A alheira de Mirandela não era feita em Mirandela.»

E explica: «Mirandela é um vale fechado extremamente quente no verão, algumas vezes com temperaturas superiores a 40 graus, e muito frio no inverno. “Nove meses de inverno, três de inferno”, dizemos nós, os da terra.» Ora, com condições meteorológicas assim, dificilmente se reuniriam as condições para a produção da alheira - pelo menos antes da industrialização introduzir tecnologias que contornaram estes impedimentos. «A alheira não era feita em Mirandela, era feita à volta de Mirandela, nas terras mais altas.»

Então, alheira de Mirandela porquê? «O que Mirandela tinha era a estação de comboios, que levava as alheiras da região para todo o lado.» E assim ficou «de Mirandela», pois era de lá que vinha. Não era, porém, necessariamente lá produzida: «As alheiras só são de Mirandela porque ali havia um entreposto comercial.»

Interessante. Mas que tem isto a ver com corrupção? E, sobretudo, o que tem a ver com eventuais continuidades da ditadura para a democracia no fenómeno da corrupção?

Luís de Sousa afirma então que a estação de comboios de Mirandela serviu para que seguissem da cidade transmontana para Lisboa «inúmeras caixas de alheiras». Estas «chegavam à mesa de muitos deputados e diretores de serviço», sendo que «ainda hoje existe essa mentalidade das ofertas e hospitalidades», matéria em que, assegura, os transmontanos «são brutais»: «Não há hipótese: nunca vão de mãos vazias, aquilo é um investimento contínuo.»

Quer dizer: «Não há necessariamente um quid pro quo [uma coisa pela outra]. Vai-se pondo manteiga, vai-se adoçando e eventualmente, numa ocasião qualquer no futuro, pode-se sentir a necessidade de pedir um favor. É um investimento, capital social negativo.» Provavelmente, ditado pela necessidade de compensar a enorme distância a que Trás-os-Montes está dos centros políticos - com o esquecimento que isso implica, dentro do princípio «longe da vista, longe do coração» - com medidas extra de envolvimento dos poderosos.

Ora isto tem, no léxico da ciência política, um nome técnico: «corrupção não transativa» ou «corrupção paroquial». Num ensaio intitulado A Democratização da Corrupção em Portugal - algumas notas exploratórias - que o próprio autor ainda não sujeitou aos pares por o considerar ainda numa fase «demasiado sketchy [provisória, em esboço]» -, Luís de Sousa integra a corrupção paroquial numa continuidade da ditadura para a democracia. As coisas eram assim antes e continuaram assim depois.

João Pedro Henriques, jornalista do DN, é o autor deste Revolução Inacabada: o que não mudou com o 25 de Abril, que explora temas como o elitismo político ou o machismo na justiça.
Leonardo Negrão / Global Imagens

Recentemente, surgiram nas livrarias portuguesas dois livros importantes para o retrato do compadrio nacional como algo de antes, de depois, de agora - e afinal de sempre, que nenhuma revolução consegue derrotar, por mais que essa revolução tenha, como aconteceu com o 25 de Abril, virado o país do avesso e substituído literalmente da noite para o dia toda uma classe política por outra completamente nova.

Em Salazar Confidencial (Ideias de Ler), lançado em maio de 2023, o jornalista Marco Alves (n. 1977) revelou a «história secreta da rede de cunhas e favores do Estado Novo» vasculhando os arquivos do ditador disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT).

Segundo escreveu, citando a contabilização do ANTT, «cerca de seis mil pessoas escreveram ao governante desde que este assumiu funções no ministério das Finanças, em 1928, até ao princípio do fim, quando caiu da cadeira, em 1968.» Ora «deste imenso arquivo, num trabalho de consulta e transcrição que decorreu em 2021 e 2022, foram considerados relevantes para este livro 2446 processos individuais, de onde se analisaram 70243 páginas de cartas, cartões, relatórios, fotografias ou outro tipo de documentos.» Se for feita exceção à correspondência de Salazar com outras «personalidades marcantes do regime» (como o cardeal Cerejeira, os ministros Marcelo Caetano, Mário de Figueiredo, Armindo Monteiro, Pedro Teotónio Pereira ou Daniel Barbosa), «todo este material nunca tinha sido tornado público ou tratado em livro», tendo sido isso, na explicação do autor, «o que motivou também a escolha do termo “Confidencial” para o título», palavra que, além do mais, era «frequentemente escrita em cartas endereçadas a Salazar para que ficasse claro o carácter não oficial do que se seguiria.»

Marco Alves leu tudo e concluiu: «Salazar acedeu a dezenas de pedidos, o que por vezes se traduziu num ato de justiça e caridade mas noutras mais não estava a fazer do que a contornar as regras e a usar a máquina do Estado para resolver os seus problemas e os dos seus amigos.» Portanto, o que aparece no livro é «um Salazar desconhecido do grande público», «longe da pureza» que sempre foi transmitida acerca da sua «reputação»: «um governante espartano, rigoroso e ético na gestão da causa pública» e um homem que, como Marco Alves recorda, fazia questão de dizer: «Devo à Providência a graça de ser pobre.»

O facto é que «durante muito tempo, largos setores do país mendigaram a Salazar um cargo, uma casa, uma promoção, uma esmola, uma pensão, uma transferência» e até a sua «intervenção direta em processos judiciais a decorrer», por exemplo pedindo-se-lhe a libertação de um preso político (mas sempre como se o ditador fosse «externo ao assunto, alheio à questão, um juiz imparcial»). Tal ocorrência «foi transversal a toda a sociedade: ministros, amigos, familiares, visitas de casa, deputados, polícias, juízes, advogados, padres, duques, baronesas, professores, médicos, administradores, militares, ex-colegas, artistas e operários.»

Mais: quem «não fez este jogo e a quem lhe desobedeceu não lhe restou a alternativa a não ser a perseguição, a prisão ou o desprezo.» Foi o caso de Aristides de Sousa Mendes, expulso da carreira diplomática em 1940 por ter, como cônsul em Bordéus, salvo milhares de judeus em fuga concedendo-lhes vistos para Portugal, contrariando ordens explícitas do Governo de Salazar (que na altura até acumulava o cargo de Presidente do Conselho com o de ministro dos Negócios Estrangeiros). De nada lhe serviu ter escrito em 1945 ao Presidente da República, Oscar Carmona, pedindo-lhe que intercedesse «junto do Governo» para que este o reintegrasse na carreira diplomática visto ter ficado, depois de expulso, na mais «cruel miséria» bem como «gravemente doente».

Manifestamente, pela carta revelada em Salazar Confidencial, Sousa Mendes não escreveu ao Presidente da República tratando o ditador como uma «figura reverencial, justa, magnânima e superior» ou identificando-o como «senhor doutor, senhor professor, excelentíssimo senhor, excelência» e muito menos por «querido amigo, chefe, prezadíssimo, senhor presidente, mestre». Tratou-o simplesmente por «Salazar» («salvei assim muitos milhares de pessoas mas caí no desagrado de Salazar por não ter obedecido às suas ordens»). Óscar Carmona remeteu de facto a carta ao chefe do Governo e este arquivou-a. Aristides de Sousa Mendes não foi reintegrado na carreira diplomática e morreria na miséria em 1954.

A outra publicação recente importante para o estudo deste tema intitula-se O Compadrio em Portugal (Fundação Francisco Manuel dos Santos), onde o jurista João Ribeiro-Bidaoui (n. 1976) revisita, «procurando agora uma linguagem menos científica», a sua tese de doutoramento em Sociologia, a saber Anatomia da Cunha Portuguesa, publicada em 2020 pela Guerra & Paz.

O autor afirma que se preocupou em «encontrar um aspeto sólido de referência comparativa que fosse anterior ao 25 de Abril, para tentar compreender em que medida as revoluções, as alterações violentas de significação política, sob as bandeiras da igualdade e da liberdade, resultam ou não em transformação dos mecanismos de legitimidade.»

Para isso recorreu à «observação antropológica» que José Cutileiro (1934-2020) conduziu acerca de uma aldeia alentejana (Vila Velha, Reguengos de Monsaraz) na sua tese de doutoramento feita em Oxford (1968), «A Portuguese Rural Society», publicada em Portugal apenas em 1977 sob o título «Ricos e Pobres no Alentejo». E, na verdade - afirma Ribeiro-Bidaoui - «o que então se verificou pode ser igualmente observado nos mais ou menos coloridos corredores da Lisboa de hoje». É uma conclusão «naturalmente desapontante»: «Parece haver uma resiliência aos tempos, às mudanças ou às influências dos sistemas políticos, económicos ou aos contextos sociais, mais ou menos urbanos. Mudam-se os tempos, mas as vontades não parecem mudar muito.» Posto noutros termos: «Se considerarmos momentos como o 5 de Outubro de 1910, o 28 de Maio de 1926 ou o 25 de Abril de 1974 como ruturas de significações e de estruturas sociais e políticas, é notável que o compadrio e as suas cunhas tenham permanecido razoavelmente imunes a essas alterações - mais democracia política e económica não parece ter resultado em menos compadrio ou em menos cunhas.»

Assim, «um olhar sobre a cunha e sobre as justificações e denúncias que sobre ela fazemos demonstra que na sua origem está sempre, entre outros aspetos, a falta de transparência e/ou excesso de relacionalidade ou de compadrio, de todos os tipos - não só relações políticas/partidárias, mas também filiais, de colegas de escola ou de faculdade, entre outras.»

Portanto, «quanto menos transparência houver, mais operativo se torna o compadrio - um potencia o outro. É o compadrio, mais do que o Estado de direito e as suas normas, que determina grande parte da nossa vida em coletivo, do nosso projeto de comunidade. E, como tal, aquele gera aristocracias, dinastias, monarquias e oligarquias, interdependentes, que reduzem a necessidade de “se ter de provar”, de “dar provas”, criando uma cultura de acomodação, rentista e, portanto, dividida entre os instalados na poltrona e os que passam a vida a andar, a correr - cansados.» Em suma: «Confiamos mais em quem conhecemos do que em processos supostamente públicos e legítimos.»

Dos questionários que conduziu para o seu doutoramento, Ribeiro-Bidaoui concluiu que «os portugueses sabem bem que o compadrio e as suas operações são uma ofensa e um desafio a um princípio de igualdade de tratamento, e reconhecem que tal pode resultar em ações injustas e prejudiciais ao bem comum.» Com efeito, «nenhum português anuncia nas redes sociais as cunhas que mete e aceita. Nenhum funcionário público inclui nas suas avaliações de desempenho as instâncias de compadrio que facilitou ou de que foi alvo. Nenhum político [...] intervém na Assembleia da República ou numa qualquer assembleia municipal anunciando o seu envolvimento em episódios de compadrio.» «A verdade», contudo, «é que esses mesmos cidadãos, portuguesas e portugueses, também reconhecem circunstâncias em que tal se justifica, nomeadamente em contextos mais familiares e particulares, como se vivessem em dois universos distintos. A ideia de inevitabilidade ou eternidade resulta de uma certa perenidade temporal do compadrio, comprovada por relatos e referências literárias ao longo dos séculos, fosse em Lisboa ou no interior alentejano, e apesar das notórias transformações estruturais vividas pela humanidade ao longo das últimas centenas de anos, que incluíram várias revoluções filosóficas, religiosas, políticas e sociais.» Deste modo, «a única conclusão que daí se deve retirar é que todas essas alterações sociais e políticas não resolveram as nossas pobrezas. O ativismo político que resultou em várias revoluções apenas serviu para substituir elites no acesso ao bolo público.»

Revolução inacabada: O que não mudou com o 25 de abril
João Pedro Henriques
Fundação Francisco Manuel dos Santos
96 páginas